O papel das mulheres na crítica de arte é tema da nova Revista do IEB

Publicação do Instituto de Estudos Brasileiros da USP traz dossiê que reconta trajetórias de vida e projetos intelectuais muitas vezes subestimados

 Publicado: 14/06/2024

Texto: Luiz Prado
Arte: Beatriz Haddad*

“As contribuições para este dossiê, ainda que pontuais sobre um tema que ainda merece ser mais explorado, formam um conjunto de possibilidades de entendimento do circuito do sistema das artes, dentro dessa perspectiva de contribuição feminista”, escrevem as organizadoras Talita Trizoli e Ana Paula Cavalcanti Simioni – Foto: Revista do IEB/registro de Ana Vohs

A história da arte, como conhecemos, é marcada pela ausência da participação feminina em muitos de seus espaços. Um deles é o reservado à crítica. Seja pelo impedimento proporcionado por estruturas institucionais ou por conta de apagamentos históricos, sabemos os nomes de muitos homens que se dedicaram a essa tarefa – David Hume, Denis Diderot, Immanuel Kant, Friedrich Schiller, Charles Baudelaire, John Dewey, Walter Benjamin, Theodor W. Adorno, só para ficar em alguns medalhões –, mas são poucas as mulheres que surgem nas listas.

Com sua edição de número 87  que acaba de ser lançada  a Revista do IEB, publicação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, busca justamente discutir essa ausência e lançar luzes nos trabalhos de algumas dessas personagens. Esse é o tema do dossiê A Crítica de Arte Feita por Mulheres e seus Desdobramentos Institucionais, coordenado por Talita Trizoli, pós-doutoranda do IEB, e Ana Paula Cavalcanti Simioni, professora do IEB, onde leciona Sociologia da Arte. A revista está disponível na íntegra, gratuitamente, neste link.

Conforme destacam as organizadoras na introdução do dossiê, a função do crítico – termo usado propositadamente no masculino pelas autoras – se transforma ao longo da história. Compete a ele definir parâmetros de valor que organizam o sistema artístico, tanto a respeito do que é aprovado como arte quanto de que maneira se deve avaliá-la. De um “analista qualitativo” da produção, no início, o crítico se transformou em um militante em prol de determinados programas estéticos na virada do século 19 para o 20 e, atualmente, se vê em um hibridismo no qual crítico, artista, curador e galerista se confundem.

Nesse papel, que mudou várias vezes entre o século 18 e o final do século 20, as organizadoras apontam que estiveram presentes muitas mulheres. Críticas de arte, pesquisadoras, estetas, historiadoras, professoras e gestoras, como, aqui no Brasil, Aracy Amaral (1930), Gilda de Mello e Souza (1919-2005), Yvonne Jean (1911-1981) e Maria Eugênia Franco (1915-1999).

“As contribuições para este dossiê, ainda que pontuais sobre um tema que ainda merece ser mais explorado, formam um conjunto de possibilidades de entendimento do circuito do sistema das artes, dentro dessa perspectiva de contribuição feminista”, escrevem as autoras. “Os textos não apontam para, necessariamente, uma mudança de paradigma, mas trazem histórias de vida, projetos intelectuais e contribuições de agentes do sexo feminino que foram fundamentais para a consolidação do sistema artístico, no Brasil e fora dele, e cujas atuações não foram ainda plenamente estudadas e reconhecidas.”

É o o caso de Diná Lopes Coelho (1912-2003), cuja trajetória é contada por German Alfonso Nunez, pós-doutor em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Diná foi secretária geral da Bienal de São Paulo e diretora do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, onde criou a mostra anual Panorama de Arte Atual Brasileira. Apesar de dedicar décadas de vida à articulação, gestão e curadoria no campo da arte, foi alvo de esquecimento e desvalorização de seu papel, segundo Nunez.

Imagem retirada da resvista (Figura 3 – Diná Lopes Coelho montando exposição no Museu de Arte
Moderna, 1974. Biblioteca Paulo Mendes de Almeida do MAM)

Diná Lopes Coelho montando exposição no Museu de Arte Moderna, em 1974 – Foto: Biblioteca Paulo Mendes de Almeida do MAM/extraída da Revista do IEB

“Diná era tão inserida nos circuitos institucionais da arte paulista que sua importância parecia ser óbvia”, escreve o pesquisador. “Ainda assim, apesar dessa sua atuação, praticamente nada na literatura, salvo algumas poucas passagens, notas e entrevistas, existia sobre essa mulher. Desse passo inicial uma pergunta nos parecia óbvia: como e por que esse esquecimento?”

Nunez reconstitui a trajetória de Diná desde sua infância, estudos na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP e inserção nos meios boêmios e intelectuais de São Paulo até seus cargos na Fundação Bienal e no MAM. O pesquisador mostra como Diná precisou afirmar seu lugar como crítica de arte e enfrentar julgamentos a respeito da sua atuação atravessados por preconceitos de gênero. Dessa investigação, Nunez revaloriza a atuação de Diná no cenário das artes nacionais.

“É difícil negarmos a importância de Diná tanto para a Fundação Bienal quanto para o MAM”, escreve o autor. “Igualmente, não seria exagero afirmar que ela teve um papel importante para a arte brasileira do pós-guerra. Sem a sua ideia e sem o seu comando, por exemplo, não teríamos o MAM como conhecemos hoje. Grande parte de seu acervo hoje advém de suas ações, conversas e seleções.”

A professora Paula Ferreira Vermeersch, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), em Presidente Prudente, por sua vez, aborda a história e a crítica feita por mulheres a respeito das artes de Minas Gerais do século 18. Paula examina as contribuições de Judith Martins (1903-2000), Hanna Levy (1912-1984) e Myriam Ribeiro de Oliveira (1943) para o estudo, catalogação e preservação do barroco mineiro.

Segundo a professora, as primeiras analistas do patrimônio histórico e artístico de Minas Gerais foram as pioneiras funcionárias do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “O órgão, fundado em 1937, ficou famoso pela equipe de mulheres que circundava o diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade e que se dedicou a imensas tarefas de catalogação, estudo e propostas de intervenção em diversos Estados do País”, escreve Paula.

Imagem retirada da revista - Mulher deitada na cadeira lendo um livro, s.d. Arquivo IEB, Acervo Caio Prado
Júnior, código de referência CPJ-F10-589

O dossiê aponta que, entre o século 18 e o final do século 20, várias mulheres atuaram na crítica de arte – Foto: Arquivo IEB-Acervo Caio Prado Júnior/extraída da Revista do IEB 

Dentre elas esteve Judith Martins (1903-2000), que ingressou no Iphan em 1936 e três anos depois publicou na revista da instituição seu primeiro trabalho, um estudo bibliográfico a respeito de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814). Mas sua contribuição mais significativa foi o Dicionário de Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX em Minas Gerais (1974). “Sem os dois volumes do Dicionário, nenhuma pesquisa sobre as artes mineiras do Setecentos e do Oitocentos pode ser feita”, registra a professora.

Myriam Ribeiro de Oliveira também tem sua trajetória ligada ao Iphan, mas suas pesquisas começaram bem antes de seu ingresso no órgão, em 1985. Sua tese de doutorado, realizada na Bélgica, intitula-se O Rococó Religioso em Minas Gerais e seus Antecedentes Europeus. De volta ao Brasil, ela publica na revista Barroco, em 1972, um estudo sobre todas as fontes a respeito do Santuário de Bom Jesus dos Matosinhos, em Congonhas. Tendo transitado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Myriam é hoje, salienta Paula, uma das maiores referências sobre as artes mineiras setecentistas.

O dossiê da Revista do IEB traz também um artigo sobre a historiadora, teórica e crítica de arte Icleia Borsa Cattani, personagem importante para a institucionalização da crítica e da teoria de arte moderna e contemporânea no Rio Grande do Sul, segundo Daniela Pinheiro Machado Kern, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

Lady Callcott (1785-1842), viajante britânica que escreveu livros de viagem, esteve no Brasil e também atuou na crítica, é lembrada no trabalho de Maria de Fatima Medeiros de Souza, pós-doutoranda do IEB.

Como contribuição internacional, o texto da curadora do Museo Nacional de Bellas Artes do Chile, Gloria Cortés Aliaga, propõe uma genealogia feminina da crítica de arte do país. Gloria aborda as redes de escritoras e artistas chilenas que se formaram no início do século 19 e ganharam força no começo do século 20, unidas ao movimento protofeminista.

Da Argentina, por sua vez, há o artigo de María Inés Dahan, integrante do Laboratorio de Investigación Sociología del Arte do Instituto Gino Germani da Universidad de Buenos Aires. María Inés investiga a crítica de arte argentina no período pós-ditadura (1981-2003), mostrando como os espaços se ampliaram e se tornaram mais diversificados, tendo como característica importante a maior presença das mulheres no campo. Encerra o dossiê um artigo de Katy Deepwell, professora da Universidade de Middlesex no Reino Unido, que trata das possibilidades de uma história da crítica de arte feminista.

Compõem ainda a edição 87 da Revista do IEB artigos sobre empreendedorismo popular, psicanálise e o acervo pessoal da financista Eufrásia Teixeira Leite, figura histórica ligada às dinastias da aristocracia cafeeira fluminense. Fecham a revista as seções de contos, documentação e resenha de livros.

Revista do IEB, número 87, Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, 254 páginas. A revista está disponível neste link.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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