Coleção analisa permanência de mitos antigos na pós-modernidade

Disponíveis no Portal de Livros Abertos da USP, volumes analisam os mitos de Frankenstein, Drácula, Fausto e do fim do mundo

 25/08/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 30/08/2023 as 13:16

Texto: Adrielly Kilryann*

Arte: Gabriela Varão**

Capas da coleção Mitos da Pós-Modernidade, que está disponível gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP - Fotos: Reprodução

“Os mitos inspiram modos de viver. Eles cumprem a função de nos colocar, ao mesmo tempo, em frente ao mistério da existência e às nossas trajetórias de vida”, comenta o professor Rogério de Almeida, da Faculdade de Educação da USP, sobre a Coleção Mitos da Pós-Modernidade. Composta de quatro volumes já disponíveis no Portal de Livros Abertos da USP, a coletânea soma mais de 1.172 páginas, que analisam como os mitos de Frankenstein, Drácula, Fausto e o do fim do mundo, mesmo após séculos desde o seu surgimento, ajudam a pensar a vida contemporânea.

Em parceria com Almeida, os professores Alberto Filipe Araújo, da Universidade do Minho, em Portugal, e Marcos Beccari, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), investigaram como antigos e famosos mitos permanecem influenciando sociedades inteiras até hoje. Almeida explica que eles observaram quais mitos estavam diretamente inseridos e eram referenciados recorrentemente em diferentes expressões culturais e no imaginário popular, desde o período em que foram criados até a pós-modernidade.

A análise de mitos em diferentes épocas históricas não é algo novo. “Existem autores que identificam a presença e a permanência de mitos de forma recorrente desde o século 19”, conta Almeida. “Nietzsche, por exemplo, reconhece a presença de Dionísio e Apolo na formulação da cultura ocidental e reivindica a presença e o retorno de Dionísio ao final do século 19. Michel Maffesoli, sociólogo francês, também identifica essa presença de Dionísio no tempo contemporâneo, ao final do século 20. Já Gilbert Durand diz que há, no século 20, a presença do mito de Hermes, que preside as trocas e as comunicações”, exemplifica o professor.

Rogério de Almeida - Foto: Victória Tambara

O professor Rogério de Almeida – Foto: Victória Tambara

Agora, sete anos após iniciarem o projeto, os três professores publicam o último dos quatro volumes da coleção. Mitos da Pós-Modernidade é uma coletânea de artigos de especialistas, pesquisadores e professores sobre como as narrativas de Frankenstein, Drácula, Fausto e o do fim do mundo ainda acompanham a humanidade. “O contributo dos vários autores que colaboram ao longo dos quatro livros é relevante na linha da remitologização, ou seja, da valorização do mito nas suas diversas facetas e manifestações”, conta Araújo.

O professor acrescenta que “os mitos permanecem no imaginário contemporâneo, uns diriam pós-moderno, precisamente pela redundância dos seus núcleos temáticos, como é o caso da obsessão com a imortalidade por parte da sociedade atual”. “Os mitos são dinâmicos”, complementa Almeida. “Eles dão conta das nossas fantasias, expressam os nossos desejos e também os nossos demônios, a esperança e o medo. De certa forma, eles conseguem expressar aquilo que está corrente no imaginário popular de determinada época.” O professor ressalta ainda que o imaginário não é a ideia de algo que não existe, mas sim um conjunto de imagens e conhecimentos que expressam determinados pontos de vista. “O mito do fim do mundo, por exemplo, para além dos dados concretos, é narrado como uma fantasia, com uma perspectiva”, exemplifica.

Segundo Almeida, embora a sociedade não reconheça e não valorize a presença dos mitos diretamente, eles continuam presentes nas narrativas que as pessoas passam de geração em geração. Mitologias milenares que tratam de deuses gregos, africanos e cristãos, por exemplo, permanecem intrinsecamente ligadas a múltiplas culturas ao redor do mundo e da história.

Do nascimento do monstro ao fim do mundo

O Mito de Frankenstein: Imaginário & Educação (2018) abre a coleção com a análise sobre a influência de um dos monstros mais conhecidos da literatura. Escrito e publicado no início do século 19 pela britânica Mary Shelley, Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1818) referencia uma história ainda mais antiga: o mito grego do titã Prometeu. 

As similaridades narrativas expõem a ligação entre ambas as histórias. Prometeu, ao roubar o fogo de Zeus e entregá-lo aos homens, ultrapassa certos limites morais. No caso de Frankenstein, o cientista Victor Frankenstein age de maneira semelhante ao dar vida ao monstro a partir de um corpo já cadavérico. “A história de Frankenstein, assim como a de Prometeu, termina mal. Não há um controle sobre o monstro, o que acaba resultando na morte de seu criador”, explica Almeida.

Prometeu Trazendo Fogo à Humanidade, Heinrich Fueger (1817) - Fonte: Wikimedia Commons

Para o professor, Frankenstein é um exemplo de como a educação pode atuar através dos mitos. “O monstro é largado à própria sorte tão logo é criado. Ele passa a se autoeducar através de clássicos da literatura, e é assim que aprende questões humanas, como a sensibilidade e o amor.” O contraste entre a falta de empatia do cientista Victor Frankenstein e a sua própria criação, para Almeida, demonstra como a educação não se restringe a um conjunto de conhecimentos adquiridos, mas engloba também valores fundamentais, para que as pessoas se tornem mais humanas.

Outra clássica figura do terror dá sequência à coleção. O Mito de Drácula: Imaginário & Educação (2019) aparece como forma de retratar o desejo recorrente da imortalidade. Segundo Almeida, a possibilidade de prolongar a vida e a juventude indefinidamente é algo que persiste na cultura e no imaginário popular. “Somente nas últimas décadas, tivemos uma onda de filmes, séries e videogames que trabalham a figura do vampirismo, do morto-vivo ou do zumbi.” 

O ator Bela Lugosi em Drácula (1931), de Tod Browning – Foto: Wikimedia Commons

O príncipe Vlad Tepes, que inspirou o Drácula de Bram Stoker

A valorização da juventude é retratada também em O Mito de Fausto: Imaginário & Educação (2020), título do terceiro volume da Coleção Mitos da Pós-Modernidade. Na mitologia alemã, Fausto, seduzido pelo desejo de ser jovem e de adquirir conhecimento, realiza um pacto com o Diabo e, assim, coloca em risco a sua própria existência. “Essa ideia da venda da alma e da consequente punição no inferno, da esfera cristã, é bastante conhecida”, comenta Almeida. 

Com Araújo e Beccari, Almeida identificou, a partir do mito de Fausto, como a narrativa de submeter as próprias vontades em decorrência de uma ambição maior ainda é algo recorrente no imaginário popular. “A gente também pode entender o mito de Fausto a partir de um pacto que se iniciou na Revolução Industrial, em que se busca cada vez mais uma sociedade regida pela produção, pelo lucro, pelo dinheiro, pela ganância”, acrescenta o professor.

O Mito do Fim do Mundo: Imaginário & Educação (2023) encerra a coleção com a abordagem sobre um dos maiores medos que afligem a humanidade. “A gente tem relatos sobre o fim do mundo em várias culturas, como nas dos povos ameríndios, asiáticos, africanos, judaico-cristãos e gregos. Na Bíblia, por exemplo, há o dilúvio como um fim do mundo, mas também a marca de um renascimento, um novo mundo que surge a partir daquele que se encerra”, detalha Almeida.

Ele explica que, inicialmente, os mitos possuíam um forte caráter religioso, mas que ao longo do tempo passaram a ocupar o lugar do “profano” e se tornaram uma forma de expressão cultural e simbólica. “Com o desenvolvimento das sociedades, os mitos deixaram de ser encarnações vivas, isto é, entidades nas quais se crê, e tornaram-se metáforas que expressam determinadas condições humanas.”

Para Araújo, o mito do fim do mundo é “universal, atemporal e trans-histórico”. Ele trata do fim nas suas mais diversas modalidades e dimensões, com forte impacto no imaginário coletivo contemporâneo e inseparável do próprio imaginário religioso. Tem mais a ver com as narrativas míticas antigas ligadas à estrutura mítica escatológica, como os tremores de terra, dilúvios e incêndios gigantescos”, conta o professor.

Pregação e os Fatos do Anticristo, Lucas Signorelli - Fonte: Wikimedia Commons

“No nosso caso hoje, os temores são concretos: não há a ideia de uma punição divina, mas a perspectiva de sérios problemas ambientais e que colocariam em risco a sobrevivência da espécie humana”, complementa Almeida. Eventos como a virada do século no ano 2000, os temores pela chegada do ano 2012 e a iminência de uma guerra nuclear, reacendida recentemente pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia, são apenas alguns dos acontecimentos contemporâneos que incorporam no imaginário popular a possibilidade de um “fim do mundo”, segundo Almeida.

Os quatro livros da Coleção Mitos da Pós-Modernidade – O Mito de Frankenstein: Imaginário & Educação (volume 1), O Mito de Drácula: Imaginário & Educação (volume 2), O Mito de Fausto: Imaginário & Educação (volume 3) e O Mito do Fim do Mundo: Imaginário & Educação – (volume 4) estão disponíveis gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP.

* Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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