Celebrações: de amizade e despedidas

“As celebrações garantem a sobrevivência da ‘polis’ porque criam vínculos entre os indivíduos”

Por Janice Theodoro da Silva
26/06/2020

Receber amigos, comer e beber são as melhores coisas da vida. Jogar conversa fora, falar de coisas inúteis, do futebol, do cachorro, de um filme. Observar os detalhes de uma cena, as palavras encarnadas pelo ator, os vários planos, as interrupções de câmera, o ritmo. Como é bom conversar sobre o que se sabe e, especialmente, sobre o que não se sabe. Celebrações são a garantia da amizade, da amizade cívica, como diziam os gregos.

Existem formas diferentes de convívio capazes de estimular a confiança, introduzir discussões e explicitar diferenças. Todas elas favorecem o viver em sociedade.

Foto: Katerina Limpitsouni via unDraw

A primeira regra, para criar o bem-estar na polis (comunidade, sociedades), é permitir aos convivas tecerem juntos os contrários. A regra de ouro sugere: ouvir muito e falar pouco (difícil de aplicar). Quem recebe escuta, completa, soma com as ideias do convidado. Responder a esse desafio, na medida certa, é uma arte. O jantar ou o banquete deve ser pensado para a introdução do convidado no campo da philia (amizade/política), em situação formal de igualdade, com os demais participantes do evento. O convidado deve se sentir em casa, jamais ser interrogado. As palavras devem compor uma pequena história, nunca uma disputa entre as partes, com vencedores e vencidos. O tecido da amizade exige um compartilhar de experiências, uma busca de lugares de identidade. A figura, o daímõn alado, voa de um para o outro em busca de um horizonte comum possível de compartilhar. Os encontros, todos eles, preparam as pessoas para viver na polis.

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Disputas retóricas (quem tem mais razão ou qual o melhor argumento) são muito comuns no Ocidente e causam desacertos enormes especialmente no Oriente, tanto nas relações pessoais como profissionais.  Toda retórica baseada na desqualificação do outro, no uso do não (especialmente no início da frase) prejudica a construção de relações. Possibilidades de alianças, parcerias ou associações dependem de uma dose de entendimento entre as partes, matéria adequada para um bom jantar. O não existe, sim, mas ele é a parte da trama que fica no avesso do tecido.  O sim é o tecido que se vê.

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A oferta de presentes, o comer e o beber juntos são hábitos existentes desde a Antiguidade. Eram formas de fazer alianças, firmar compromissos e, quando possível, evitar o conflito, o mal-estar entre os convivas ou a guerra. Pensar, discutir e encontrar o equilíbrio, formas de concórdia, tanto em uma pequena comunidade como no conjunto das nações, é meta do cidadão atento aos negócios de sua cidade ou nação.

Celebrações, festas e negociações fazem parte de um mesmo pacote: da arte da política. Ela, a política, diz respeito tanto à negociação como ao conflito.  Infelizmente é ele, o conflito, bem mais frequente do que gostaríamos e, por vezes, inevitável. O seu desdobramento mais cruel é a guerra.

A guerra, parte significativa da política estatal, tem gramática própria e avaliação fruto de padrões militares, independentes de outros setores sociais. A guerra envolve o uso da força armada e da violência. A ética militar concebe o conflito entre Estados como inevitável, a natureza humana como incapaz de evitar a competição e o desejo incontido pela obtenção de riquezas e poder. Definido o lugar da política e da guerra podemos voltar para as celebrações.

O militar, como o cidadão, também vai às celebrações e à festa. Ele estará atento avaliando, na circunstância, a estratégia adequada para se dirigir aos convivas: mais ofensiva ou defensiva. Igualdade entre os participantes, nem pensar. Respeito às hierarquias é sempre norma a ser seguida, especialmente nas cerimônias. Pauta para as conversas: políticas nacionais e internacionais, com histórias marcadas pelo perigo, em que o protagonista se destaca pela coragem e pela lealdade (especialmente com os comandados). O militar empenhado, corajoso não raro enfrentou desafios, conhecendo de perto os limites entre a vida e a morte.

Foto: macrovector via Freepik

A educação militar habilita o estudante em determinados conteúdos, deixando de lado as discussões teórico-filosóficas, variações conceituais para analisar a preservação do meio ambiente, questões existenciais e reflexões sobre a condição humana presentes na literatura.

Por que a construção da amizade cívica/philia é tão diferente entre civis e militares?

Porque a ética desenvolvida em escolas militares (educação) foca, com destaque, o conflito, exigindo do militar uma prática mais marcada pela obediência e lealdade do que na reflexão sobre os princípios éticos conformadores do ser humano. A obediência obriga a acatar o solicitado, sem interrogar sobre as razões ou objetivos de uma missão a ser desempenhada. Os motivos são segurança, manutenção da ordem e um compromisso genérico de defender a nação. O maior conflito está expresso na contradição entre o valor da obediência e da lealdade estimulado na tropa pelos seus superiores e o livre-arbítrio do militar, a possibilidade de desobediência em razão de um princípio ético, próprio do indivíduo. A solução do conflito é difícil, podendo, no limite, resultar em morte por desobediência.

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A formação em escolas militares tem características bastante específicas. Suas práticas são distintas daquelas necessárias para o aprendizado do exercício da cidadania na polis. Nas sociedades democráticas, o indivíduo é educado para discutir, compreender e pactuar com um contrato social por ele assinado. As instituições representam, para o cidadão, a garantia de seus direitos e deveres. Elas possibilitam sua atuação crítica e participativa, desde que mantida a obediência às leis da sociedade em que se vive. Já a educação militar trata, como essencial, o respeito à cadeia de comando, à autoridade, à hierarquia, sem deixar espaço para o questionamento dos pressupostos definidos pelo comando superior. A desobediência, a desordem e a falta de disciplina são os maiores inimigos na corporação. O militar deve ser obediente, realista, conservador e pessimista, atento à proteção do Estado nos períodos de paz, anunciando e preparando da nação para prováveis perigos a curto, médio ou longo prazo.

O papel das forças armadas é servir a um Estado legitimamente constituído, sendo a guerra um instrumento de força necessário para a sua defesa. Do ponto de vista operacional, a segurança, a força e as armas são cerne de sua atividade. O militar é treinado para pensar e usar a violência. Seu interesse pelas armas é justificado em razão de proporcionar vantagens ou desvantagens na defesa ou no ataque. Tendo em vista seus objetivos – a guerra –, a formação de um militar demonstra um estranhamento constante em relação à prática do diálogo, do exercício da dúvida sistemática e da busca incansável pelo consenso.

Para o Estado de Direito, são essenciais discussões sobre o conceito de justiça, os princípios éticos que norteiam a vida social, os direitos humanos e, especialmente, o exercício da dúvida sistemática. A dúvida e a diversidade de posições não se confundem com a desobediência. Portanto, a raiz da formação do cidadão e da formação das Forças Armadas é distinta, especialmente no que diz respeito à operacionalização de funções entre uns e outros.

Para obter uma relação equilibrada, na medida certa, entre o Estado e as Forças Armadas, é necessária a presença de um artífice, o estadista, personagem raro, cuja função não se confunde com a do chefe das Forças Armadas. Ele é responsável pela costura entre uns e outros. O estadista é o bom tecelão capaz de conciliar, usar a diplomacia e, se necessário, reconhecer, em caso de divergências, onde será colocado o limite da negociação, definindo o momento em que se torna inevitável a ruptura ou o uso da força, a guerra.

Foto: Katerina Limpitsouni via unDraw

As variações sobre celebrações e guerras sugerem a pergunta: por que a conversa começou com uma confraternização entre amigos e caminhou em direção das Forças Armadas e da guerra?

Porque a refeição, a celebração e a educação conformam as comunidades políticas. Já na polis cretense, a refeição fazia parte da educação (paidéia). Como nos lembra Pauline Schmitt Pantel, retomando Plutarco (46-126 d.C), a refeição é uma verdadeira escola de temperança. Diz ela, retomando o autor: “‘Era comum as crianças assistirem a essas refeições; eram levadas para elas como para uma escola de temperança; aí ouviam falar de política e assistiam a divertimentos dignos de homens livres’. Em suma, nesses primeiros tempos de vida cívica e, em algumas poleis, por vários séculos ainda, a comensalidade é uma das estruturas de identidade do cidadão”.

Foto: Katerina Limpitsouni via unDraw

Resumo da ópera: a temperança e as diferentes formas de celebração, da vida e da morte, são momentos fundantes de uma sociedade. As celebrações garantem a sobrevivência da polis porque criam vínculos entre os indivíduos. Atualmente precisamos da temperança e da amizade cívica tanto para recompor a polis como para enterrar, com dignidade, os nossos mortos.

Janice Theodoro da Silva é professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.