Cena do filme Halahaches - Foto: Reprodução

Animações da América Latina contam história e lutas do continente

Mostra do Cinema da USP traz filmes sobre revoluções, desigualdades e ditaduras nos países latino-americanos

12/07/2021

Por: Juliana Alves

Arte: Simone Gomes

Revoluções, guerras, manifestações, desigualdades sociais, imperialismo e ditaduras. Esses são temas narrativos que se relacionam com as lutas da “nossa América”, diferente do olhar do cinema estadunidense. Nesse sentido, a mostra Animações de Nuestra América, do Cinema da USP (Cinusp), “busca lançar uma visão para a produção dos nossos países vizinhos e para as semelhanças dos conflitos que ameaçam a integridade e os direitos da população no nosso continente”, afirma Malu de Castro, curadora do Cinusp e estudante de Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A mostra começa nesta segunda-feira, dia 12, e fica em cartaz gratuitamente até 15 de agosto no canal do Cinusp no Youtube.

Malu conta que as animações selecionadas para a mostra expõem diferentes formas de resistência e luta na América Latina, que vão desde a afirmação do território e a oposição à ditadura até a reafirmação de corpos transvestigêneres.

Nayla Guerra, também curadora do Cinusp e estudante de Audiovisual da ECA, comenta que os filmes mostram várias formas de resistência popular, conduzidas por lideranças camponesas, indígenas, urbanas, ambientais e LGBTQUIA+, por exemplo. De acordo com a curadora, esses filmes são meios de levar conhecimento para o público acerca da luta contra o pensamento e a ação colonial na América Latina. “Nós, brasileiros, temos um desconhecimento muito grande das culturas e dos cinemas dos nossos hermanos e, por isso, pensamos nesta mostra como uma maneira de trazer para nosso público o contato com os outros países da América Latina.”  

Cena do filme Meow! – Foto: Reprodução

Para conhecer a cultura e a história dos hermanos, um bom exemplo é o curta-metragem haitiano Uma Escavação de Nós, de Shirley Bruno, que mescla mito e realidade. Conforme a sinopse do Cinusp, o filme conta a história das sombras do exército de Napoleão que viajam pela caverna misteriosa onde ocorreu a Revolução Haitiana, batalha que se tornou um marco da revolta de escravos mais bem-sucedida da história.

Já dois curtas cubanos, A Imprensa Séria, de Jesus de Armas, e A Maloca, de Mario Rivas, apresentam a temática da Revolução Cubana. O primeiro mostra, por meio de traços bastante geométricos, uma denúncia à manipulação das informações pela imprensa considerada “séria” à época. O segundo é marcado por uma profunda irreverência e forte caráter antiestadunidense. Nele, o “lar” popular, a maloca, transformada ao longo da história, é reiterado como símbolo da resistência do povo contra a presença colonizadora. 

Resistência também é o tema central do filme chileno Arquivos da Revolta. Dirigido por Niles Atallah, a animação utiliza a técnica da rotoscopia – em que filmagens são redesenhadas – para abordar embates entre forças policiais e manifestantes contra o aumento da tarifa de transporte público no Chile, em 2019, também de acordo com a sinopse do Cinusp. Esse confronto resultou no decreto de estado de emergência e deu o controle da capital do país aos militares. A curadora Malu afirma que a técnica utilizada na animação adiciona uma estética poética, diferente do que normalmente o público vê nos noticiários. “As cenas de manifestantes em protesto no Chile viram arte, o que é uma maneira interessante de se construir um legado para a ação política”, ela complementa.

No mesmo cenário da ditadura chilena, Vicenta narra a história de uma mulher campesina em busca de seu filho, que desapareceu após ter entrado para a resistência ao ditador Augusto Pinochet. O filme equatoriano de Carla Valencia Dávila mostra, com desenhos feitos à mão, a força de uma mãe, como inúmeras que perderam seus filhos nas ditaduras latino-americanas.

Cena do filme Tailor – Foto: Reprodução

No curta-metragem argentino Meu Boné Brilha, nota-se que o Estado pode oprimir e segregar por meio da pobreza, num contexto urbano precário e hostil. O documentário de Celeste Onaindia relata entrevistas animadas em rotoscopia de habitantes de Córdoba, na Argentina. O cenário urbano decadente também está presente de forma metafórica na história de um gato, dirigida por Marcos Magalhães. “Em um momento, uma personagem fala que, se ela tivesse um poder, gostaria de ter o poder de despertar as consciências. Espero que esta mostra possa despertar a consciência de nosso público para a importância de conhecermos mais a história, a cultura e as lutas dos diversos países latino-americanos”, ressalta a curadora Nayla.

Já o clássico da animação brasileira Meow! expõe um gato que recebe refrigerante de uma mão que pretende modificar seus hábitos de consumo. O curta satiriza a ditadura e a homogeneização dos hábitos de consumo impostas pela globalização, que também traz exclusão e violência.

Em Avó Grilo, uma senhora também é o centro do filme boliviano, inspirado na história milenar do povo ayoreo. O diretor Denis Chapon descreve essa senhora com uma característica mágica, um canto agudo capaz de fazer chover e trazer a fartura. Um dia ela é expulsa de sua comunidade e sai viajando pelo interior até chegar à cidade grande, onde seu dom é manipulado por empresários para gerar seca e miséria para todos – uma referência à chamada Guerra da Água de 2000, conflito sobre a privatização da água no país.

Já em Halahaches, de Alejandra Jaramilloé narrada a história de Telkoy, um jovem inseguro do povo selk’nam, que se prepara para seu rito de iniciação, uma tradição sagrada em sua comunidade na Terra do Fogo, no extremo sul do Chile. Na animação chilena dublada no idioma do povo indígena selk’nam, o jovem deve completar sua transição de menino a homem e terá que escolher entre aceitar a crença dos homens ou arriscar sua vida para proteger o que acredita. Conforme a sinopse do Cinusp, o filme é um registro da resistência dessa etnia que foi quase exterminada num processo de genocídio entre os séculos 19 e 20. 

Cena do filme A Imprensa Séria – Foto: Reprodução

No mesmo sentido de expor as tradições dos povos originários, a mostra traz também uma animação do México dirigida por Dominique Jomard, Itziguari, A Lenda Purepecha. Produzido a partir de ilustrações feitas por crianças do povo purépecha, o filme é um dos episódios de uma série de animações que remetem à tradição oral de histórias e anedotas com cunho moral, interpretadas pelos próprios autores dos desenhos. A narrativa apresenta o mito da origem da chuva.

Levar a cultura da região por meio da técnica stop-motion – em que os modelos são fotografados e movimentados quadro a quadro – é a intenção do curta chileno Cantar com Sentido – Uma Biografia de Violeta Parra e do curta argentino Balada para Satã. O primeiro se refere à vida da cantora e artesã Violeta Parra, ícone da cultura chilena e do cancioneiro popular da América Latina. Repleto de cor e poesia, o diretor Leonardo Beltran introduz de forma lúdica, para públicos de todas as idades, as produções da artista. Na segunda produção, os diretores Antonio Balseiro e Carlos Balseiro apresentam uma estética da animação “realmente impressionante, a mistura de stop-motion e o movimento de atores, gerando um resultado muito sofisticado”, ressalta Malu. Nesse filme, um gaúcho e sua esposa, assustados, acreditam se tratar de uma maldição de Satã. “Mal sabem eles que existem invenções humanas muito piores do que qualquer maldição demoníaca”, destaca a sinopse do Cinusp.

Cena do filme Balada para Satã – Foto: Reprodução

Mistura de animação e live action – a ação dos atores reais -, o curta brasileiro Tailor retrata a vivência da marginalização imposta às pessoas trans em diferentes espaços. Com direção de Cali dos Anjos, essa realidade se reflete na própria produção audiovisual, com a presença muito limitada de pessoas transgênero em funções de poder. Transitando entre lúdico e realidade, através de memórias, relatos e afetos, rompe-se o silêncio imposto a essas vozes e corpos. O trabalho do cartunista transgênero Tailor, no qual compartilha a vivência e os desafios de outras pessoas trans, serve de ponto de partida para explorar a pluralidade dessas vozes dentro do cinema. 

“O nosso objetivo com a mostra Animações de Nuestra América é que o público desfrute das histórias, que reproduzem uma ternura com o lugar de onde somos. A maior parte dos filmes contém um afeto que perpassa a hereditariedade, a capacidade de construir uma comunidade e o apego com a terra”, descreve a curadora Malu. Para ela, até mesmo o humor e a sátira, também presentes nos filmes, são capazes de despertar boas emoções. 

A mostra Animações de Nuestra América, do Cinema da USP (Cinusp), está disponível no canal do Cinusp no Youtube desta segunda-feira, dia 12, até 15 de agosto.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.