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Proteína da saliva do mosquito da dengue tem potencial para tratar doenças inflamatórias intestinais
Resultados dos testes mostraram que a administração terapêutica de AeMOPE-1 melhorou sinais clínicos de camundongos com colite
Por Fabiana Mariz
Um peptídeo (pequena proteína) encontrado em maior quantidade na saliva de mosquitos fêmeas de Aedes aegypti, mostrou-se eficiente para tratar colite, uma doença inflamatória do intestino. O mosquito é muito conhecido dos brasileiros por ser o vetor de doenças como dengue, zika e chikungunya. Esse resultado foi obtido em uma pesquisa liderada pelo Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, em parceria com a Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, Instituto Butantan e os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Estados Unidos.
A administração terapêutica de uma versão sintética do peptídeo em camundongos doentes reduziu a leucocitose (aumento de leucócitos no sangue, que acontece quando há alguma infecção em curso no organismo), a atividade dos macrófagos (células de defesa do organismo do hospedeiro) e a expressão de citocinas (substâncias que participam da inflamação e fazem a comunicação com componentes do sistema imunológico), bem como os níveis de óxido nítrico no intestino dos animais, o que resultou em uma melhora dos sinais clínicos.
O óxido nítrico é um radical livre sintetizado por várias células do nosso organismo, especialmente macrófagos, e desempenha papel importante em doenças inflamatórias intestinais, como doença de Crohn e colite ulcerativa.
Os cientistas mostraram, também, que o peptídeo puro tem sua expressão aumentada em 30 vezes nas glândulas salivares de mosquitos fêmeas quando comparada ao machos, e sua secreção na saliva do inseto induz à produção de anticorpos específicos em animais expostos à picada dos mosquitos.
Por causa das propriedades acima descritas e pelo fato de não haver moléculas semelhantes em outros mosquitos, os cientistas denominaram a molécula de Aedes-specific MOdulatory PEptide (AeMOPE-1), algo como “Peptídeo Modulador Específico do Aedes”, em português.
Nos últimos 30 anos, vários grupos de pesquisa vêm estudando a saliva do Aedes aegypti e já foi possível demonstrar o papel dela e de suas moléculas isoladas em reações alérgicas, agregação plaquetária, vasoconstrição e coagulação sanguínea. Mas até a conclusão deste trabalho, havia poucas informações sobre as atividades biológicas da saliva sobre a inflamação e a imunidade do hospedeiro.
“Utilizamos os bancos de dados de sialotranscriptomas [conjunto de transcritos – RNAs mensageiros – da saliva do mosquito] como um ponto de partida para identificar novas moléculas como a AeMOPE-1, cuja função era até então desconhecida”, explica Priscila Lara, bióloga e primeira autora do estudo.
Dados disponíveis, várias perguntas
Ao Jornal da USP, o professor do ICB Anderson de Sá-Nunes, orientador de Priscila, explicou que a caracterização das moléculas da saliva do Aedes aegypti iniciou-se a partir da década de 1990 e, com ela, foi possível reunir informações e montar vários bancos de dados, que hoje estão à disposição dos pesquisadores. “A base de dados já existe. Cabe ao cientista usar essas informações para elaborar suas perguntas e desenvolver pesquisas in vitro e in vivo.”
Sá-Nunes coordena o Laboratório de Imunologia Experimental (LIE) do ICB e, desde a sua criação, em 2009, sua linha de pesquisa é voltada para o estudo das atividades imunomoduladoras da saliva de artrópodes hematófagos (animais invertebrados que se alimentam de sangue e que são vetores de doenças).
A primeira etapa do trabalho de doutorado de Priscila consistiu em mostrar, in vitro, se o peptídeo AeMOPE-1 estava presente na saliva do mosquito, já que as únicas informações consistentes eram as dos bancos de dados disponíveis (in silico). Depois que as análises mostraram que ela está mais presente nas glândulas salivares de fêmeas do que nas de machos (e somente em insetos adultos), os pesquisadores identificaram que o peptídeo secretado naturalmente na saliva do mosquito foi capaz de desencadear uma produção de anticorpos específicos em animais expostos às picadas dos mosquitos.
As atividades imunomoduladoras putativas (hipotetizadas in silico) também foram investigadas. “Em estudos anteriores, o nosso grupo obteve fortes evidências de que a saliva bruta do mosquito modula diferentes células do sistema imunológico. Por isso, o próximo passo foi ver se o peptídeo sintético reproduzia algumas dessas atividades em ensaios in vitro”, explica Priscila.
As possíveis atividades biológicas do peptídeo foram testadas em linfócitos T (células responsáveis pela resposta imune adaptativa), mastócitos (células dos tecidos conjuntivo e de mucosa que participam das reações inflamatórias) e células dendríticas (células responsáveis pelo processamento e apresentação de antígenos), sem resultados satisfatórios.
Já em macrófagos, a AeMOPE-1 inibiu a produção de óxido nítrico e citocinas envolvidas na inflamação. Estudos anteriores mostraram que o óxido nítrico e seus metabólitos estão presentes no intestino, no plasma e na urina de pacientes doentes, e sua superprodução está associada ao aumento da inflamação gastrointestinal.
Mais experimentos
Diante dessa constatação, os pesquisadores decidiram testar o efeito terapêutico do peptídeo sintético (feito em laboratório) em animais com doença inflamatória intestinal induzida. Os experimentos foram realizados na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, em colaboração com a professora Cristina Ribeiro de Barros e o então doutorando Helioswilton Sales.
Cientista tira saliva de mosquito para curar camundongo
Como é que se tira baba de mosquito? Cientistas da USP descobrem que a saliva do Aedes Aegypti pode diminuir doenças intestinais em camundongos e contam como é o processo de retirada das glândulas salivares do mosquito para criar o “extrato de saliva”.
Saliva do mosquito Aedes aegypti acelera dengue no organismo
De acordo com um estudo feito por cientistas da Bélgica e dos Estados Unidos, a presença da saliva do mosquito Aedes aegypti acelera o alastramento do vírus da dengue no corpo das pessoas infectadas. Luiz Tadeu Moraes Figueiredo, professor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, explica a pesquisa internacional.
Os camundongos doentes foram divididos em dois grupos. O primeiro deles recebeu o peptídeo sintético AeMOPE-1 e o segundo, apenas a substância diluente do peptídeo.
Camundongos tratados com AeMOPE-1 apresentaram melhora clínica da doença quando comparados aos animais que não receberam o peptídeo. Uma avaliação mais detalhada mostrou menos sangramento e diarreia e melhor consistência de fezes em animais tratados com AeMOPE-1.
O tratamento com o peptídeo sintético diminuiu, também, a leucocitose nos animais doentes e, consequentemente, houve redução de linfócitos, monócitos e neutrófilos.
Priscila avaliou, ainda, a expressão de citocinas presentes no intestino dos animais. As análises mostraram uma diminuição de IL-6 (considerada um dos principais mediadores da fase aguda da inflamação), IFN-γ (citocina capaz de ativar macrófagos) e CCL2 (quimiocina capaz de recrutar uma série de células inflamatórias, incluindo macrófagos) nos animais que receberam AeMOPE-1. Além disso, houve redução notável na atividade de macrófagos e produção de óxido nítrico no cólon de camundongos tratados com AeMOPE-1, indicando que o peptídeo pode influenciar o acúmulo e/ou funcionalidade dessas células no intestino inflamado.
Futuras aplicações
“Mostramos para toda a comunidade científica que a AeMOPE-1 possui atividade anti-inflamatória em um modelo experimental de doença de importância clínica”, ressalta Sá-Nunes. “No futuro, pensamos em propor essa molécula como potencial terapia não somente para esta doença, mas para outras doenças inflamatórias e autoimunes.”
Para que isso seja possível, há a necessidade de se chegar a uma formulação farmacêutica viável e otimizar rotas de administração para, então, solicitar a patente do peptídeo. “A etapa seguinte é a realização de ensaios pré-clínicos e clínicos”, explica o orientador de Priscila.
“Precisamos firmar parcerias e captar verba para avançarmos para as próximas fases”, completa Sá-Nunes.
Um artigo com todos os detalhes do estudo foi publicado na revista Frontiers in Immunology.
Mais informações: e-mail sanunes@usp.br, com Anderson de Sá-Nunes