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O trajeto do rap,
dos bailes para as ruas,
e a ocupação dos espaços públicos em SP
Geógrafo busca a história da ocupação do movimento hip hop nas áreas centrais da cidade, suas origens e ligações com o movimento negro
Por Antonio Carlos Quinto / Arte: Camila Paim
Numa cidade como São Paulo, o pleno direito de ir e vir pode ser dificultado pelas longas distâncias entre as periferias e o centro. “As pessoas que moram nos bairros periféricos e nas regiões metropolitanas não vivem as áreas centrais da cidade, a não ser nos movimentos de idas e vindas a seus trabalhos”, diz o geógrafo Ricardo do Ó Plácido. “Mas a cultura hip hop e o rap, que é uma de suas manifestações, possibilitou que os atores sociais das periferias passassem a viver o centro de São Paulo de forma mais orgânica”, conta o pesquisador ao Jornal da USP.
O hip hop é uma cultura, um movimento do qual o rap faz parte como um dos seus quatro elementos principais: o break (dança), o grafite, o DJ e o rap é a música
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Esse movimento de “ocupação” das áreas centrais da cidade pela cultura hip hop e, consequentemente o rap, segundo o pesquisador, foi emblemático nos anos 1980. Como docente de escola pública e morador da periferia, Ricardo Plácido sempre trabalhou com a cultura hip hop e o rap em sala de aula, o que o levou a pesquisar o tema em um estudo de mestrado desenvolvido na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. O trabalho Territórios negros: cartografias e etnicidades na experiência do Rap paulistano (1970-1990) aborda os diversos aspectos do rap e da cultura hip hop, desde suas origens até as formas de ocupação da cidade. O estudo teve a orientação do professor Francione Oliveira Carvalho.
O pesquisador explica que o hip hop é uma cultura, um movimento do qual o rap faz parte como um dos seus quatro elementos principais: o break (dança), o grafite, o DJ (Disk Jockey) e o rap é a música. “A ideia do trabalho é recuperar a história e resgatar a memória. Toda essa cultura vem de articulações, inclusive, com o movimento negro e muita gente que faz e ouve rap hoje em dia sequer sabe disso”, observa o geógrafo.
O break
De acordo com Ricardo, a apropriação no aspecto cultural em São Paulo pela cultura hip hop começa com a dança break. “Eram dançarinos de rua que mostravam seus passos em frente ao Mappin e que depois migraram para a esquina da Rua Dom José de Barros com a Rua 24 de Maio”, destaca. O Mappin era uma loja de departamentos, extinta na década de 1990, que funcionava na Praça Ramos de Azevedo, no centro de São Paulo, em frente ao Teatro Municipal. “Mas é bom lembrar que o dançarino Nélson Triunfo & Funk Cia já fazia essa dança nos bailes do Palmeiras”, lembra o pesquisador. Esses bailes a que se refere reuniam boa parte da comunidade negra no salão da S.E. Palmeiras, o time de futebol da zona oeste da cidade.
Nos anos 1984 e 1985, jovens b. boys e b.girls da periferia e do centro começaram a articular um movimento para ocupar áreas da estação São Bento do Metrô, na região central da cidade.
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A dança do break ainda não era comum nos chamados “bailes blacks”. “Em geral, por conta da vestimenta e do modo de dançar, não eram aceitos nos bailes”, salienta o pesquisador. Foi daí que, saída dessas festas, a dança começa a ir para as ruas. Todo esse movimento, de acordo com o geógrafo, se deu aproximadamente no início dos anos 1980.
Pouco tempo depois, por volta do ano de 1984, jovens b.boys e b.girls da periferia e do centro começaram a articular um movimento para ocupar áreas da estação São Bento do Metrô, na região central da cidade. “Então observamos várias situações de ocupação pela cultura hip hop na região central da cidade. A partir do elemento break, primeiramente nas proximidades da Rua 24 de Maio, e em seguida no pátio da estação do Metrô São Bento”, descreve o geógrafo, lembrando que o espaço do Metrô é o embrião no qual surgem figuras tidas como referências do rap paulistano até os dias atuais, como Racionais MC’s e Thaíde & DJ Hum, entre outros. Vale lembrar que “nos bailes, as equipes atuantes eram a Chic Show, Zimbabwe, Black Mad e Kaskatas, por exemplo. Algumas chegaram a produzir os primeiros discos de rap e a ganhar espaços em algumas rádios”, conta.
Movimento negro
Em busca de subsídios para seu estudo, o geógrafo realizou uma pesquisa historiográfica que o levou às origens do movimento negro em São Paulo e sua ligação com a cultura hip hop e com o rap. “Isso implicou buscar informações sobre a cultura hip hop a partir dos bailes, bem como estudar as redes criadas pela população negra, historicamente espraiada pelas periferias de São Paulo”, destaca o pesquisador.
E foi nessa investida que ele passou a estudar, entre essas diversas redes, como times de futebol e associações negras, também os cordões que deram origem às escolas de samba. “E em todos esses locais havia pessoas ligadas ao movimento negro”, diz. Ricardo lembra de um disco gravado no ano de 1974 intitulado “Nas quebradas do mundaréu”, que tem a participação de sambistas paulistanos: Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro.
Neste trabalho de memória, Ricardo entrevistou pessoas ligadas à cultura hip hop e ao rap. Entre elas, Sharylaine, apontada até hoje como uma das primeiras cantoras de rap de São Paulo, e o dançarino da Funk Cia e MC, Don Billy, que participou do primeiro disco de rap produzido pela equipe Kaskatas, o LP A Ousadia Rap. Outro entrevistado por Ricardo foi o rapper e filósofo Clodoaldo Arruda. “Ele foi um dos fundadores de uma das primeiras posses de São Paulo, conhecida como Sindicato Negro, que se reunia na Praça Roosevelt, também na região central da cidade”, conta o geógrafo, lembrando que o coletivo duraria dois anos e viria a se unir, na virada da década de 1980 para 1990 ao Instituto da Mulher Negra – Geledés.
“Foi a partir daí que o rap passou a levar a pauta racial para as massas da periferia. Antes do Geledés, as letras do rap eram mais ligadas às festas, para animar os bailes. “Com a chegada da discussão que o Movimento Negro já fazia, via Geledés, assim como o trabalho de base feito pelas posses nas periferias, desde então é visível as denúncias contra o racismo nas letras de rap”, descreve o pesquisador. Cabe lembrar que dessa parceria entre o Geledés e os jovens rappers oriundos do Sindicato Negro, por meio do projeto Rappers, teríamos a elaboração de uma das primeiras revistas voltadas para a cultura hip hop, chamada Pode Crê!.
Mais informações: e-mail pazpaoeterra@hotmail.com, com Ricardo do Ó Plácido