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IPCC: se nada for feito, colapso climático é iminente
Novo relatório de painel internacional de cientistas diz que influência humana no clima é “inequívoca” e que aumento de temperatura pode superar 1,5 ºC já em 2040. Muitos efeitos são irreversíveis, mas ainda há tempo de evitar o pior
Por Herton Escobar
Arte: Lívia Magalhães/Jornal da USP
As mudanças climáticas são reais, causadas pelo homem, estão se intensificando numa velocidade espantosa, sem precedentes nos últimos 2 mil anos (pelo menos) e com consequências potencialmente gravíssimas para os seres humanos e o planeta, incluindo a intensificação de tempestades, secas e ondas de calor extremo. Muitas dessas consequências — como o derretimento de geleiras e o aumento do nível do mar — são irreversíveis, até mesmo numa escala de milhares de anos; mas ainda há tempo de evitar uma calamidade climática global, desde que a espécie humana reduza imediatamente, e de forma bastante significativa, suas emissões de gases de efeito estufa para a atmosfera. Sem isso, é “extremamente provável” (95% a 100% de probabilidade) que o aquecimento global ultrapasse a perigosa marca de 2 graus Celsius até o final deste século, com grandes chances de chegar a 1,5°C já nos próximos 20 anos, caso as emissões de carbono permanecerem no nível atual. Num cenário mais pessimista de aumento de emissões, o aquecimento poderia ultrapassar 4°C antes de 2100.
Essas são algumas das mensagens trazidas pelo Sexto Relatório de Análise (AR6, em inglês) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC), cuja primeira parte foi divulgada nesta segunda-feira, em Genebra. É um documento de milhares de páginas, com 234 autores principais (mais 517 colaboradores), oriundos de 66 países (sete deles do Brasil), que destrincha textualmente e graficamente todo o conhecimento científico disponível no mundo sobre as mudanças climáticas globais — uma verdadeira enciclopédia científica, com peso mais do que suficiente para esmagar qualquer resquício de negacionismo que ainda circule por aí.
“É inequívoco que a influência humana aqueceu a atmosfera, o oceano e a terra. Ocorreram mudanças rápidas e generalizadas na atmosfera, no oceano, na criosfera e na biosfera”, diz a primeira mensagem do Sumário para Tomadores de Decisão (Summary for Policy Makers), um resumo executivo dos resultados, que acompanha o relatório. “A mudança climática induzida pelo homem já está afetando muitos extremos climáticos e meteorológicos em todas as regiões do globo”, conclui outro trecho do documento.
Os relatórios completos do IPCC são divididos em três partes, produzidas por diferentes Grupos de Trabalho (GTs), com diferentes enfoques. O que foi divulgado agora é o relatório do GT1, que analisa as evidências científicas da mudança do clima. Os relatórios do GT2, que analisa os impactos da crise climática, e do GT3, que analisa possíveis medidas de combate e adaptação a esse fenômeno, estão previstos para o início de 2022.
Trocando em miúdos, o que está sendo dito é que a culpa pelo aquecimento global é do ser humano, sim, e que não há nenhuma dúvida pendente com relação a isso. Tecnicamente falando, isso não é uma novidade — há muitos anos já existe um consenso científico muito bem estabelecido de que atividades humanas estão superaquecendo o planeta, e que essa elevação de temperatura é responsável pelas mudanças climáticas, cada vez mais intensas, que temos vivenciado nas últimas décadas. Ainda assim, o uso do termo “inequívoco” agrega uma camada adicional de certeza e contundência ao fato. Comparativamente, o relatório anterior (AR5), divulgado em 2013, dizia ser “extremamente provável que a influência humana seja a causa dominante do aquecimento observado desde meados do século 20”.
Não se trata de uma opinião, mas de uma constatação científica. Mais de 14 mil estudos foram analisados na elaboração do novo relatório, e as evidências não deixam dúvidas nem sobre o papel do homem nem sobre a gravidade do problema. O que muda nesse novo documento, em relação ao anterior é, principalmente, o grau de refinamento das análises sobre o que está acontecendo e das projeções sobre o que pode vir a acontecer no futuro, com base nos novos conhecimentos acumulados ao longo desses últimos oito anos. Essa primeira parte do relatório não propõe soluções nem avalia a efetividade de políticas públicas; apenas apresenta as evidências científicas necessárias para embasar a tomada de decisões sobre o enfrentamento da crise climática.
A coletiva de imprensa do IPCC para a divulgação do relatório foi acompanhada ao vivo por mais de sete mil pessoas. A diretora executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e secretária-geral adjunta das Nações Unidas, Inger Andersen, abriu sua fala ressaltando que as mudanças climáticas são um problema do presente, não do futuro, e que “ninguém está seguro”. “Precisamos encarar as mudanças climáticas como uma ameaça imediata”, destacou ela. “É hora de sermos sérios, porque cada tonelada de CO2 emitida agrava o aquecimento global.”
“É hora de agir, imediatamente”, reforçou o físico brasileiro Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), em um seminário online realizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) sobre o relatório. Sem uma reação imediata de todos os países, no sentido de reduzir significativamente suas emissões de gases de efeito estufa, segundo ele, a meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C pode se tornar “impossível”. As emissões globais de dióxido de carbono, por exemplo, teriam de ser reduzidas cerca de 7% ao ano até 2050. “A receita está dada”, pontuou Artaxo. “O IPCC já colocou claramente o que precisa ser feito.” (Assista ao seminário da Fapesp no final desta reportagem.)
Limite à vista
Uma mudança que chama a atenção no novo relatório é o recálculo da quantidade de carbono já emitida pelo homem e o encurtamento da janela de tempo dentro da qual os pesquisadores estimam que o aquecimento global ultrapassará a marca de 1,5°C acima da temperatura “normal” da era pré-industrial.
Segundo os cientistas, os seres humanos lançaram à atmosfera 2.390 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) entre 1850 e 2019, sendo que a maior parte dessas emissões (entre 80% e 90%) foi gerada pela queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão mineral). Para limitar o aquecimento global a 1,5 °C, esse total não poderia ultrapassar a marca de 2.900 bilhões de toneladas; o que nos deixa um “saldo remanescente” de 400 a 500 bilhões de toneladas de CO2 para serem emitidas nas próximas décadas. No ritmo atual de 40 bilhões de toneladas emitidas por ano, esse limite seria ultrapassado já por volta de 2040, segundo o relatório. A estimativa anterior, publicada em um relatório especial sobre o tema de 2018, era de que essa marca seria superada entre 2030 e 2050.
Ou seja, temos menos tempo ainda do que imaginávamos para reduzir emissões e frear o avanço do aquecimento global. Um aumento de 1,5°C não deixa de ter impactos significativos sobre o clima — tanto é que as mudanças climáticas já estão em curso e causando problemas gravíssimos em todo o planeta —, mas especialistas consideram que este é um limite minimamente seguro, no sentido de evitar mudanças climáticas mais severas, e minimamente factível, do ponto de vista das ações políticas e econômicas que precisam ser tomadas para o seu cumprimento. O objetivo do Acordo de Paris, firmado em 2015 (com base nas conclusões do último relatório do IPCC), é justamente manter o aquecimento global “bem abaixo de 2°C” e, preferencialmente, até um limite máximo de 1,5°C.
“A temperatura global da superfície continuará a aumentar até pelo menos meados deste século em todos os cenários de emissões considerados. As taxas de aquecimento global de 1,5°C e 2°C serão excedidas durante o século 21, a não ser que reduções profundas nas emissões de CO2 e outros gases de efeito estufa ocorram nas próximas décadas”, é outra das mensagens centrais do novo relatório, incluídas no Sumário para Tomadores de Decisão.
“A mensagem do IPCC é cristalina: mudar agora e preparar para o impacto. As piores previsões dos cientistas estão se tornando realidade mais rápido do que o esperado, os pontos de ruptura estão se aproximando e o único nível aceitável de emissões é zero”, declarou a especialista em políticas climáticas do Observatório do Clima, Stela Herschmann.
Até agora, segundo o IPCC, esse aumento foi de 1,1°C em comparação com a temperatura média do período 1850-1900, que é usada como linha de base para representar a temperatura “normal” (natural) do planeta na era pré-industrial, antes da interferência humana. A velocidade de aquecimento observada nas últimas cinco décadas é sem precedentes nos últimos 2 mil anos, segundo os cientistas, e a última vez que a Terra esteve tão quente foi cerca de 125 mil anos atrás. Tudo isso impulsionado, principalmente, pelo aumento da concentração de CO2 na atmosfera, que em 2019 atingiu 410 partes por milhão (ppm) — a concentração mais alta nos últimos 2 milhões de anos, segundo o relatório.
“A escala das mudanças recentes no sistema climático como um todo e o estado atual de muitos aspectos do sistema climático não têm precedentes num período de muitos séculos a muitos milhares de anos”, escrevem os cientistas. (Veja ao final deste texto a lista das 14 declarações-chave do relatório.)
Artaxo ressalta que essa marca de 1,5°C já foi ultrapassada nos continentes, que aquecem muito mais rápido do que os oceanos. Em áreas terrestres, o aumento já está em 1,6°C, comparado a 0,9°C nos oceanos (o que dá uma média de 1,1°C de aquecimento global total, comparado à era pré-industrial). Além disso, em escala global, esse limite só não foi superado, ainda, por causa de um outro problema gerado pelo homem: a poluição do ar urbana, que contém partículas (aerossóis e fuligem, por exemplo) que refletem a energia solar de volta ao espaço e, dessa forma, causam um efeito de resfriamento — oposto ao causado pelos gases de efeito estufa. Segundo o relatório, essa poluição reduziu o aquecimento global até agora em 0,5°C. “Estamos mascarando cerca de um terço do aquecimento que já ocorreu”, ressalta o pesquisador, que é um dos sete autores brasileiros do relatório.
Mapa elaborado pela Nasa mostra o acúmulo de anomalias térmicas registradas no planeta de 2016 a 2020, em comparação com a temperatura média registrada no período 1951-1980 (usada como referência de “temperatura normal”). As manchas vermelhas representam áreas onde a temperatura ficou acima do normal, enquanto que as manchas azuis representam temperaturas abaixo do normal. 2020 e 2016 foram os anos mais quentes já registrados no planeta e 2017, 2018 e 2019 também estão entre os mais quentes da série histórica – Vídeo: NASA’s Scientific Visualization Studio
Eventos extremos
O excesso de CO2 (e outros gases de efeito estufa) produzido pelo homem transforma a atmosfera numa espécie de cobertor mais grosso, que acaba aquecendo o planeta além do desejado. É um cobertor transparente, que permite a passagem da radiação solar mas impede que o calor gerado por ela na superfície do planeta se dissipe no espaço, tal qual os vidros de uma estufa (daí o nome “efeito estufa”, que é um fenômeno natural e essencial à vida, mas que está sendo exacerbado pela ação humana).
Um ou dois graus a mais de temperatura pode parecer pouca coisa, mas é algo que altera profundamente o funcionamento do sistema climático do planeta como um todo. As consequências práticas, segundo os cientistas, não são nada agradáveis: aumento na ocorrência e na intensidade de tempestades, secas, ondas de calor e outros eventos climáticos extremos; derretimento acelerado de geleiras e da calota polar do Ártico; aumento do nível e da temperatura do mar; mudanças drásticas nos padrões de precipitação (chuvas) ao redor do mundo; e várias outras. Tudo isso, claro, com implicações imensas para a produção de alimentos, a segurança hídrica, a conservação da biodiversidade, a qualidade de vida nas cidades, a saúde, a produção de energia e várias outras atividades essenciais à sobrevivência da espécie humana no planeta Terra.
“Olhando especificamente para o Brasil, o que salta aos olhos é uma redução drástica na projeção da precipitação, particularmente no Nordeste e no Brasil central, o que pode ter impactos muito importantes sobre a produtividade agrícola brasileira. Além disso, o aumento do nível do mar terá impactos muito importantes nas áreas costeiras do País”, destaca Artaxo.
Uma das principais inovações deste relatório, segundo ele, é a maneira como ele quantifica a ocorrência de eventos climáticos extremos e os relaciona às mudanças climáticas induzidas pelo homem de forma muito mais clara do que nos relatórios anteriores. De uma forma geral, a projeção é que quanto maior o aquecimento, maiores a frequência e a intensidade de eventos extremos, e maior a probabilidade de eventos que hoje são raros se tornarem relativamente comuns. Eventos de seca que, antes da interferência humana no clima, só ocorriam uma vez a cada dez anos, por exemplo, poderão passar a ocorrer duas a três vezes no mesmo período, num planeta 2 graus mais quente. Eventos de calor extremo que só ocorriam uma vez a cada 50 anos, poderão ocorrer 14 vezes no mesmo período de tempo.
“Não está se mudando apenas o clima médio, mas também os extremos climáticos”, disse o pesquisador Lincoln Alves, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que também é autor do relatório do IPCC e foi um dos responsáveis pela elaboração de um atlas digital interativo, que permite visualizar todas essas alterações climáticas. Muitos dos eventos extremos que têm ocorrido nos últimos anos ao redor do mundo, segundo ele, seriam “muito improváveis” de acontecer sem o aquecimento global induzido pelo homem.
“É praticamente certo que extremos de temperatura quente (incluindo ondas de calor) se tornaram mais frequentes e mais intensos na maioria das regiões terrestres desde 1950, enquanto extremos de temperatura fria (incluindo ondas de frio) tornaram-se menos frequentes e menos severos, com alta confiança de que a mudança climática induzida pelo homem é o principal motivador dessas mudanças. Alguns extremos de calor recentes observados na última década teriam sido extremamente improváveis de ocorrer sem a influência humana no sistema climático. As ondas de calor marinhas dobraram de frequência aproximadamente desde a década de 1980, e a influência humana muito provavelmente contribuiu para a maioria delas desde pelo menos 2006”, diz o resumo executivo do relatório.
O relatório reforça também a mensagem de que todos esses efeitos são consideravelmente mais graves com 2°C de aquecimento do que 1,5°C. “Cada meio grau tem uma diferença muito grande em termos de impactos”, pontuou Thelma Krug, pesquisadora do Inpe e vice-presidente do IPCC, no seminário da Fapesp.
Para entender melhor os resultados do relatório, veja os gráficos abaixo, que resumem algumas das principais conclusões e previsões do documento.
Influência humana comprovada
O aquecimento da Terra nos últimos 120 anos é um fato inequívoco, como mostram os gráficos acima. O gráfico da esquerda (a) mostra como a temperatura da superfície do planeta variou ao longo dos últimos dois mil anos, com base em registros paleoclimáticos extraídos de rochas, gelo e sedimentos marinhos. Notem que a temperatura oscila para cima e para baixo, mas não se descola muito da média observada entre 1850 e 1900, que é a linha de base do gráfico (representada pelo 0.0 na barra vertical do gráfico), usada como referência de temperatura normal do planeta, antes do início da interferência humana no clima.
A partir de 1850, as temperaturas deixam de ser “reconstruídas” por meio de registros paleoclimáticos e passam a ser medidas diretamente, por meio de termômetros. A partir daí, o que acontece nesses últimos 170 anos é assustador: a linha do gráfico sobe violentamente a partir do início do século 20, até ultrapassar a marca de 1ºC de aquecimento, no início do século 21. Agora, segundo o relatório, está em torno de 1,1ºC; e continua subindo.
O gráfico à direita (b) mostra uma simulação de como a temperatura superficial do planeta teria se comportado ao longo desses últimos 170 anos com base apenas em fatores naturais (faixa verde), como atividades vulcânicas e incidência de radiação solar — ou seja, como seria a temperatura natural da Terra atualmente, sem a interferência humana. Já a faixa marrom mostra uma simulação de como a temperatura teria se comportado com a somatória de fatores naturais e humanos. Notem como as duas faixas se descolam uma da outra a partir do início do século 20 (ano 1900), e como a faixa da simulação marrom se encaixa perfeitamente com a linha preta, que representa as temperaturas reais, registradas a cada ano desse período — o que indica que a simulação está correta e corresponde à realidade, tanto daquilo que aconteceu quanto daquilo que poderia ter acontecido.
Esse é o primeiro gráfico que aparece no Sumário para Tomadores de Decisão do relatório, e por um bom motivo: ele solidifica uma conclusão que a comunidade científica internacional já defende há muito tempo, de que o aquecimento global que estamos presenciando é um fenômeno antrópico — ou seja, causado pelo homem — e não um fenômeno natural. A culpa é da espécie humana, sim, e dos gases de efeito estufa que ela vem lançando na atmosfera (principalmente dióxido de carbono, metano, óxido nitroso e gases fluorados), em quantidades cada vez maiores, desde o início da era industrial.
Como se pode ver no gráfico, não há precedentes para um aquecimento tão abrupto e tão elevado nos últimos dois mil anos (talvez nem mesmo nos últimos 125 mil anos, se compararmos com reconstruções climáticas ainda mais antigas). Não por acaso, esse superaquecimento coincide com a intensificação de atividades industriais e o aumento das emissões de gases de efeito estufa para a atmosfera ao redor do mundo, principalmente em função da queima de combustíveis fósseis para a geração de energia; pois é justamente o acúmulo desses gases na atmosfera que faz a Terra esquentar.
Cenários futuros
Por mais sofisticadas que sejam as simulações feitas pelos cientistas, não há como prever exatamente o que vai acontecer no futuro — porque esse futuro, obviamente, é influenciado por uma enormidade de variáveis, não apenas climáticas, mas também econômicas, políticas e sociais. Por isso, em vez de fazer uma única previsão, o cientistas sempre trabalham com diversos cenários, buscando projetar o que pode acontecer no futuro em diferentes circunstâncias.
Para este relatório, o IPCC elaborou cinco novos cenários de emissões de gases de efeito estufa para o período 2015-2100, incluindo: dois cenários mais otimistas, em que as emissões decaem rapidamente nas próximas décadas; um cenário intermediário, em que as emissões permanecem estáveis até 2050 e diminuem gradativamente a partir daí; e dois cenários mais pessimistas, em que as emissões continuam a crescer até o fim do século. (Esses cenários são identificados pela sigla SSP, que significa Trajetória Socioeconômica Compartilhada, em inglês.)
No cenário mais otimista de todos (linha azul clara do gráfico), as emissões antrópicas de dióxido de carbono decairiam rapidamente nas próximas décadas, chegando a “emissões líquidas zero” por volta de 2050, e tornando-se negativas a partir daí — o que exigiria não só a redução de emissões, mas também a implementação de medidas capazes de remover o excesso de carbono já acumulado na atmosfera, como o plantio de árvores em larga escala por todo o planeta; ou seja, o homem passaria a tirar mais carbono do atmosfera do que acrescenta. No segundo cenário otimista (azul escuro), isso também aconteceria, mas só a partir de 2080.
No cenário intermediário (amarelo), as emissões ainda cresceriam um pouco nos próximos anos e começariam a diminuir só a partir de 2050, mas não o suficiente para chegar a zero antes de 2100. Nos dois cenários mais pessimistas (vermelho e violeta) as emissões continuariam subindo nas próximas décadas, porém em intensidades diferentes.
O gráfico acima mostra como a quantidade de CO2 emitido por ano evoluiria nesses diferentes cenários. Os números à direita indicam o aumento de temperatura projetado para cada cenário no curto prazo (período 2021-2040), médio prazo (2041-2060) e longo prazo (2081-2100). Em todos eles, na melhor estimativa dos cientistas, o aquecimento atinge ou ultrapassa a marca de 1,5ºC já nos próximos 20 anos — o que não significa que isso seja um futuro inexorável, pois a probabilidade de acerto das previsões não é de 100%, mas é um indicativo fortíssimo de que esse limite será rapidamente ultrapassado já nas próximas décadas, a não ser que haja uma ação imediata e contundente da espécie no sentido de mudar essa trajetória.
No cenário intermediário, o mundo ultrapassaria 2ºC de aquecimento por volta de 2050 e, mesmo reduzindo suas emissões a partir daí, chegaria ao final deste século com 3,6ºC de aquecimento, o que implicaria mudanças climáticas extremas e potencialmente catastróficas para a espécie humana e todos os ecossistemas da Terra. (A temperatura continua aumentando mesmo após a redução das emissões por causa do acúmulo histórico de gases-estufa na atmosfera, que tem efeitos de longa duração.)
O cenário que melhor representa a trajetória atual do mundo, segundo Artaxo, é o SSP3-7.0 (linha vermelha do gráfico), no qual o aquecimento global ultrapassaria 2ºC por volta de 2050 e chegaria a 3,6ºC no fim do século — com potencial para chegar a 4,6ºC.
Mar em fúria
Uma das consequências mais impactantes e mais irreversíveis do aquecimento global é a elevação do nível do mar, causada por uma combinação de aumento da temperatura da água (que aumenta o volume dos oceanos, por um processo físico de expansão térmica) e do derretimento em massa de geleiras, tanto em terra quanto nos oceanos.
Segundo o relatório, o nível global do mar aumentou 20 centímetros entre 1901 e 2018, e é “muito provável” (90% a 100% de probabilidade) que esse aumento é resultado do aquecimento global causado pelo homem, principalmente nos últimos 50 anos. A velocidade com que essa elevação está ocorrendo é sem precedentes nos últimos 3 mil anos, segundo os pesquisadores; e mesmo que os seres humanos zerassem imediatamente suas emissões de gases-estufa, essa elevação continuará em curso por pelo menos mais alguns séculos ou milênios, por causa do tempo que o calor leva para ser absorvido e se dissipar no oceano. Os cientistas estimam que o nível do mar subirá de 2 metros a 3 metros nos próximos 2 mil anos, se o aquecimento global for limitado a 1,5ºC; ou até 6 metros, num cenário de 2ºC.
“É praticamente certo que o nível médio global do mar continuará a se elevar ao longo do século 21”, diz o relatório. O gráfico acima mostra o grau de elevação projetado (em metros) para cada um dos cinco cenários analisados pelo IPCC, até 2100. No cenário intermediário, esse aumento ficaria entre 44 e 76 centímetros. É uma mudança expressiva, que, combinada com o aumento do número e da intensidade de chuvas e tempestades, pode ter efeitos devastadores sobre as zonas costeiras continentais (onde vive a maior parte da população brasileira, por exemplo).
Num cenário mais pessimista (linha pontilhada no gráfico), o nível do mar poderia subir até 2 metros em 2100, e 5 metros até 2150, dependendo de como os mantos de gelo das regiões polares responderem ao aumento da temperatura. É um cenário pouco provável, mas não impossível, e que não pode ser ignorado, segundo os cientistas.
A previsão é que as geleiras continentais e os mantos de gelo polar continuarão a derreter por centenas de anos, assim como o solo congelado (permafrost) da Sibéria, que contém uma quantidade imensa de carbono armazenada dentro dele. Outros efeitos irreversíveis nos próximos séculos incluem o aquecimento, a acidificação e a desoxigenação das águas oceânicas, com impactos gravíssimos para a biodiversidade marinha global.
Ainda que não seja possível frear completamente esses processos que já estão em curso, os cientistas ressaltam que a diminuição das emissões de gases de efeito estufa (e, consequentemente, do aquecimento global) pode reduzir bastante a magnitude e duração dos seus efeitos a médio e a longo prazo. “Existe solução”, pontua Artaxo.
Panorama global
O aquecimento global não se manifesta de forma homogênea em todo o planeta. Segundo o relatório do IPCC, a temperatura de superfície global da Terra aumentou cerca de 1,1ºC desde o início da era industrial, mas esse aquecimento foi maior sobre áreas terrestres (1,6ºC) do que sobre os oceanos (0,9ºC) e algumas regiões estão aquecendo muito mais rápido do que outras. A região do Ártico é a mais preocupante, pois está aquecendo duas vezes mais rápido do que o resto do planeta, e a cobertura de gelo marinho durante o verão vem diminuindo significativamente nas últimas décadas. Até 2050, os pesquisadores estimam que já haverá verões completamente sem gelo marinho na região.
“O relatório é mais incisivo e claro quanto aos cenários nas regiões polares”, diz o glaciologista brasileiro Jefferson Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O gráfico acima mostra as mudanças previstas nos padrões de temperatura, precipitação e umidade do solo em grande escala, para todo o planeta, sob diferentes níveis de aquecimento global. Vejam que a região central da América do Sul — que inclui a Amazônia e todo o Centro-Oeste brasileiro — se torna gradativamente mais quente e seca à medida que a temperatura global aumenta.
Consequências regionais
Esse gráfico mostra como cada região do planeta deverá ser afetada por uma combinação de eventos extremos, num cenário de 2ºC de aquecimento global. Olhando para o Brasil, a previsão é que a região Norte se torne mais quente e seca, o que poderá alterar gravemente o equilíbrio ecossistêmico da Amazônia como um todo. O mesmo aconteceria na região Nordeste, que já é naturalmente muito seca, o que traria impactos gravíssimos para a segurança hídrica, energética e alimentar da região. A região Centro-Oeste, onde está concentrada a maior parte do agronegócio brasileiro, também ficaria mais quente e seca, enquanto que o Sudeste ficaria, além de mais quente, sujeito a mais extremos climáticos de natureza hídrica.
Mensagens principais
Veja abaixo as 14 grandes conclusões listadas no Sumário para Tomadores de Decisão do sexto relatório do Grupo de Trabalho 1 do IPCC (cada uma delas é explicada de forma detalhada no documento):
1. É inequívoco que a influência humana aqueceu a atmosfera, o oceano e a terra. Ocorreram mudanças rápidas e generalizadas na atmosfera, no oceano, na criosfera e na biosfera.
2. A escala das mudanças recentes no sistema climático como um todo e o estado atual de muitos aspectos do sistema climático não têm precedentes num período de muitos séculos a muitos milhares de anos.
3. A mudança climática induzida pelo homem já está afetando muitos extremos climáticos e meteorológicos em todas as regiões do globo. Evidências de mudanças observadas em extremos, como ondas de calor, precipitação forte, secas e ciclones tropicais e, em particular, sua atribuição à influência humana, fortaleceram-se desde o Quinto Relatório de Análise (AR5).
4. O conhecimento melhorado dos processos climáticos, evidências paleoclimáticas e a resposta do sistema climático ao aumento da forçante radiativa fornecem uma melhor estimativa da sensibilidade climática de equilíbrio de 3°C, com uma faixa mais estreita em comparação com a do AR5.
5. A temperatura global da superfície continuará a aumentar até pelo menos meados deste século em todos os cenários de emissões considerados. As taxas de aquecimento global de 1,5°C e 2°C serão excedidas durante o século 21, a não ser que reduções profundas nas emissões de CO2 e outros gases do efeito estufa ocorram nas próximas décadas.
6. Muitas mudanças no sistema climático tornam-se maiores numa relação direta com o aumento do aquecimento global. Elas incluem aumentos na frequência e na intensidade de extremos de calor, ondas de calor marinhas e fortes precipitações, secas agrícolas e ecológicas em algumas regiões, proporção de ciclones tropicais intensos, bem como reduções no gelo do mar Ártico, cobertura de neve e permafrost.
7. Projeta-se que a continuidade do aquecimento global irá intensificar ainda mais o ciclo global da água, incluindo sua variabilidade, precipitação global das monções e a gravidade dos eventos de chuva e seca.
8. Em cenários com emissões crescentes de CO2, projeta-se que os sumidouros de carbono oceânicos e terrestres se tornem menos eficazes na redução do acúmulo de CO2 na atmosfera.
9. Muitas mudanças devido a emissões passadas e futuras de gases de efeito estufa são irreversíveis por séculos a milênios, especialmente mudanças no oceano, nos mantos de gelo e no nível global do mar.
10. Os fatores naturais e a variabilidade interna irão modular as mudanças causadas pelo homem, especialmente em escalas regionais e no curto prazo, com pouco efeito no aquecimento global centenário. É importante considerar essas modulações no planejamento de toda a gama de mudanças possíveis.
11. Com o aumento do aquecimento global, projeta-se que cada região experimentará cada vez mais mudanças simultâneas e múltiplas nos fatores de impacto climático. Mudanças em vários fatores de impacto climático seriam mais difundidas a 2°C, em comparação com o aquecimento global de 1,5°C, e ainda mais difundidas e/ou pronunciadas para níveis de aquecimento mais elevados.
12. Consequências de baixa probabilidade, como colapso do manto de gelo, mudanças abruptas na circulação oceânica, alguns eventos extremos compostos e aquecimento substancialmente maior do que a faixa muito provável avaliada de aquecimento futuro, não podem ser descartadas e fazem parte da avaliação de risco.
13. Do ponto de vista das ciências físicas, limitar o aquecimento global induzido pelo homem a um nível específico requer a limitação das emissões cumulativas de CO2, atingindo pelo menos zero emissões líquidas de CO2, junto com fortes reduções de emissões de outros gases de efeito estufa. Reduções fortes, rápidas e sustentadas nas emissões de CH4 (metano) também limitariam o efeito de aquecimento resultante do declínio da poluição por aerossol e melhorariam a qualidade do ar.
14. Cenários que preveem baixas ou muito baixas emissões de gases de efeito estufa (SSP1-1.9 e SSP1-2.6) levam a efeitos perceptíveis, num prazo de anos, nas concentrações de gases de efeito estufa e aerossóis e na qualidade do ar, em comparação com cenários de alta e muito alta emissão (SSP3-7.0 ou SSP5-8.5). Sob esses cenários contrastantes, diferenças discerníveis nas tendências da temperatura da superfície global começariam a emergir da variabilidade natural em cerca de 20 anos, e em períodos de tempo mais longos para muitos outros fatores de impacto climático.
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