Em estudo com animais, canabidiol age contra dor neuropática, induzindo neuroplasticidade

Aplicação única de CBD em área do hipocampo reduziu alterações de proteínas e células em modelo de ratos com dor neuropática crônica

Canabidiol em gotas. – Foto: CBD-Infos-com/Pixabay

 19/07/2024 - Publicado há 4 meses     Atualizado: 22/07/2024 às 10:57

Texto: Rita Stella
Arte: Brenda Kapp*

Pesquisas têm mostrado o potencial do canabidiol (CBD) no tratamento de diferentes patologias e agora avançam na compreensão dos mecanismos de ação da substância. Resultados de estudo recém-publicado pela Progress in Neuro-Psychopharmacology & Biological Psychiatry sugerem que o CBD produz melhorias funcionais e moleculares no cérebro de animais, possivelmente induzindo neuroplasticidade (capacidade do cérebro de modificar e adaptar sua estrutura).

As pesquisas foram realizadas em modelo animal (ratos) com dor neuropática e comorbidades (depressão e perda cognitiva) relacionadas ao quadro e se concentraram em duas regiões do cérebro, uma área do hipocampo, essencial para a memória (CA1), e a região pré-límbica do neocórtex (com função afetiva e emocional na dor neuropática e na depressão).

Segundo o professor Renato Leonardo de Freitas, coordenador do Centro Multiusuário de Neuroeletrofisiologia (CMN) e do Laboratório de Neurociências de Dor & Emoções (LNDE) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e responsável pelo estudo, o estresse tem papel importante no desenvolvimento de transtornos depressivos com sugestiva participação do hipocampo. Esta região do cérebro

“tem sido estudada há muito tempo como uma estrutura chave para codificação de processos mnemônicos [ligados à memória], contudo, trabalhos recentes também têm evidenciado alterações nessa região em pacientes com dor crônica”.

Renato Leonardo de Freitas - Reprodução: Acervo pessoal
Renato Leonardo de Freitas - Reprodução: Acervo pessoal

A área CA1, informa o professor, é considerada a maior via de saída neural do hipocampo para o neocórtex e a conexão dessas regiões é muito estudada quanto ao funcionamento da memória, à execução de tarefas e também à dor crônica. Como a dor é uma das maiores causas de incapacitação no mundo, para a qual boa parte dos tratamentos disponíveis não é eficaz, de Freitas justifica que “a melhor compreensão dos mecanismos neurais e psicofarmacológicos” é importante na busca por novos medicamentos, como o canabidiol que vem sendo amplamente estudado no tratamento de diversas patologias, considerando seu amplo espectro de ação.

Conexão cerebral está associada à amplificação e cronificação da dor

Fotomontagem do Jornal da USP – Foto: Erin Hinterland/Pixabay

Para além da dor crônica, os pesquisadores também consideraram as comorbidades que normalmente a acompanham: depressão e déficits cognitivos. O modelo estudado foi de ratos com dor neuropática (nervo ciático lesionado). Num primeiro momento, investigaram “as conexões neurais entre o hipocampo dorsal (Hd) e a região pré-límbica (PrL) do córtex pré-frontal medial (CPFM)”, informa o professor de Freitas. O objetivo foi verificar como se dá a conexão e se ela está relacionada não somente com a dor crônica, de origem neuropática, mas também com as comorbidades relacionadas à depressão e prejuízos cognitivos.

Os resultados dessa etapa confirmaram a relação entre as duas regiões do cérebro: o produto usado como marcador celular (dextran biotin), previamente injetado no córtex pré-límbico, foi identificado também no CA1 do hipocampo. Verificaram também que, em presença da dor neuropática, houve aumento da expressão da proteína c-Fos (aparece após intensa ativação neuronal) e do número de astrócitos (se comunicam diretamente com os neurônios, reportando alterações do ambiente cerebral) nas duas regiões (CA1 e CPFM), acompanhada de redução da quantidade de neuroblastos (células que dão origem a novos neurônios) na CA1. Os animais também apresentaram “comportamentos crescentes do tipo depressivo com o comprometimento da memória”, acrescenta o pesquisador.

Ao comentar esses achados, de Freitas ensina que os astrócitos respondem a alterações, seja por lesão do sistema nervoso central, de um nervo periférico ou alguma condição pré-existente, o que pode “acarretar em aumento de substâncias pró-inflamatórias, por exemplo, prejudicando a comunicação com os neurônios”; alterações que, a longo prazo, contribuem para a cronificação da dor. Enquanto isso, o aumento da proteína c-Fos evidencia que essas áreas “estão superativadas, mesmo após 20 dias pós lesão do nervo ciático”. Já a redução de neuroblastos indica comprometimento da neurogênese adulta (nascimento, amadurecimento e integração de novos neurônios no cérebro), importante para o funcionamento adequado do sistema nervoso.

De Freitas conta que seu laboratório tem particular interesse pela região do córtex pré-frontal medial e já demonstrou em outros trabalhos que a ativação dessa área está “associada a amplificação e cronificação da dor, sendo também uma região que se comunica com outras áreas do sistema límbico das emoções, e assim, provocam as comorbidades já citadas”, acrescenta.

Fotomontagem feita por Brenda Kapp com imagens de: OpenClipart-Vectors/Pixabay

CBD recruta serotonina e endocanabinoides

Fotomontagem feita por Brenda Kapp com elementos do Canva

Após o tratamento dos animais com CBD em diferente dosagens, injetadas no CA1 do hipocampo, os pesquisadores verificaram que a concentração de 60 nmol de CBD foi capaz de diminuir as sensações de dor ao toque e ao frio e atenuar os comportamentos associados à depressão, com melhora do desempenho da memória.

Para Ana Carolina Medeiros e Priscila Medeiros, pesquisadoras da FMRP e integrantes da equipe de pesquisa, possivelmente o canabidiol utiliza a via de conexão CA1 do hipocampo com a área pré-límbica do córtex pré-frontal, induzindo neuroplasticidade. Os efeitos do CBD no CA1 dependem da ativação do córtex pré-límbico e recrutamento de receptores de serotonina (neurotransmissor relacionado à sensação de bem-estar) e de endocanabinoides (neurotransmissores receptores de canabinoides).

Essas alterações incluem ainda a reversão dos padrões da proteína c-Fos e do número de astrócitos, observada após uma única aplicação de CBD na CA1, e se traduzem numa melhor “funcionalidade da atividade celular e neuromolecular” nas regiões estudadas.

Ana Carolina Medeiros - Reprodução: Acervo Pessoal
Ana Carolina Medeiros - Reprodução: Acervo Pessoal
Priscila Medeiros - Reprodução: Arquivo Pessoal
Priscila Medeiros - Reprodução: Arquivo Pessoal

Com os resultados, a equipe de pesquisa afirma que o CBD representa “uma perspectiva terapêutica promissora no tratamento farmacológico da dor neuropática crônica e comorbidades associadas, como a depressão e comprometimento da memória”. 

O estudo foi conduzido por pesquisadores da FMRP e da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP), ambas da USP, em conjunto com a Universidade da Campânia “Luigi Vanvitelli”, Itália.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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