Uma das formas de tratamento do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é buscar, por meio de uso de medicação, aliviar as sensações de medo e de dor nos momentos em que elas reaparecem. Descobrir quais seriam as drogas capazes de surtir efeito contra os sintomas da TEPT é o primeiro passo no caminho do desenvolvimento de novas terapias. Este é o objeto de pesquisa da farmacologista Cristina Stern, atualmente na Universidade Federal do Paraná. Ela investiga os efeitos do uso de canabinoides em ratos que sofrem de TEPT e acaba de publicar um trabalho no periódico European Neuropsychopharmacology. A pesquisa foi supervisionada pelo professor Leandro Bertoglio, da Universidade Federal de Santa Catarina, e também contou com a colaboração do professor Francisco Silveira Guimarães, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.
Guimarães coordena o Projeto Temático “Mecanismos celulares e moleculares envolvidos no papel de neurotransmissores atípicos em transtornos neuropsiquiátricos”, apoiado pela Fapesp, que investiga o uso de canabinoides nos transtornos mentais e rendeu, nos últimos quatro anos, quase 40 publicações científicas. O estresse pós-traumático é um transtorno psiquiátrico que pode afetar pessoas que sofreram algum tipo de trauma como, por exemplo, um assalto, um ato de violência extrema ou a perda repentina de um ente querido. O transtorno acontece quando, diante de uma situação de medo ou de ansiedade, o doente responde de forma desproporcional, voltando a experimentar os mesmos sentimentos de tristeza, pavor, dor ou pânico que sentiu quando passou pela violência ou tragédia original.
“Eu estou muito entusiasmado com os resultados da pesquisa de Cristina Stern”, diz Francisco Guimarães, da USP-Ribeirão Preto. “Somos os primeiros a mostrar que o canabidiol ou sua combinação com o THC interfere na reconsolidação de memórias aversivas, um processo que tem sido associado ao transtorno de estresse pós-traumático. O TEPT acontece principalmente pela formação de uma memória traumática, afirma Cristina, com consequências ruins para a saúde física e mental, o comportamento e o convívio com a família e em sociedade. “Hoje não existe nenhuma terapia farmacológica adequada. O que existe apenas reduz os sintomas, porém sem afetar a memória.”
Em termos neurológicos, a formação de uma memória ocorre quando diversos neurônios no cérebro são ativados e fazem conexões entre si, criando a representação neural de uma memória ou do evento traumático. Quando esta memória é evocada, através da lembrança ou de uma sensação ou experiência específica, ela entra em um período chamado de labilidade. Nesse período, aquela memória passa por um processo chamado reconsolidação. Uma das funções da reconsolidação da memória é a atualização de memórias existentes. “Esse fenômeno dura cerca de seis horas, é o tempo que se tem para tentar interferir em uma determinada memória”, diz Cristina.
Reconsolidação
O objetivo da pesquisa de Cristina Stern com o uso dos compostos farmacológicos visa justamente a tentar enfraquecer essa memória durante o processo de reconsolidação, influenciando o seu armazenamento e a sua futura expressão. Se, por meio do uso de medicamentos, a memória é atenuada, na próxima vez em que for evocada ela será, em tese, mais fraca. No caso dos pacientes com TEPT, esta é a diferença entre reviver os mesmos sintomas do trauma passado ou não mais ser afetado de forma tão grave por aquela lembrança.
A pesquisa foi feita com ratos submetidos a uma situação de estresse. No caso, as cobaias foram retiradas de suas gaiolas e colocadas em uma caixa, onde levaram três pequenos choques elétricos nas patas (o experimento contou com a aprovação do Comitê de Ética no Uso de Animais da UFSC). A seguir, os animais foram recolocados em suas gaiolas. No dia seguinte, as cobaias foram reintroduzidas na caixa de choque e apresentaram sintomas de TEPT, que, no caso dos ratos, se manifesta pela paralisia dos movimentos. “Os animais ficaram totalmente imóveis, o que caracteriza um comportamento clássico de medo”, diz Cristina. “Foi nesse momento que nós administramos a droga nas cobaias.”
A droga administrada por via intraperitonial foi o Δ9-Tetrahydrocannabinol (THC) sozinho ou em solução com o canabidiol, dois dos compostos químicos presentes em maior quantidade na maconha. O resultado foi verificado nas cobaias no dia seguinte ao da administração da droga. Passadas 24 horas, a memória pós-traumática já se reconsolidou e os animais não estão mais sob o efeito da droga. Nesse momento eles são reintroduzidos na caixa de choque. O que se verificou foi que os animais tratados com THC apresentaram sintomas menores de imobilidade do que aqueles que não receberam droga alguma. A atenuação da memória traumática não foi passageira. Com a repetição do experimento, ela se revelou duradoura. “Isso foi verificado 22 dias após uma única administração da droga”, afirma a pesquisadora.
Em uma pesquisa anterior e quase idêntica, Cristina já havia administrado apenas canabidiol nos ratos expostos ao mesmo modelo de memória do medo e verificado os mesmos efeitos benéficos. Dai decorreu a segunda parte dos experimentos, cujos resultados são agora publicados. Na segunda fase, ela fez uso de um composto de THC e canabidiol em quantidades menores, que se mostraram insuficientes para atenuar as memórias traumáticas quando administrados sozinhos.
A associação das drogas resultou nos mesmos efeitos benéficos de atenuação da memória traumática. “Isto é muito importante, porque sabemos que o THC em altas dosagens pode causar efeitos danosos nos consumidores crônicos de maconha. O THC pode aumentar a ansiedade e os efeitos psicoativos nos dependentes da droga, sintomas que o canabidiol não provoca.” O artigo de Cristina A.J. Stern e outros, “Δ9-Tetrahydrocannabinol alone and combined with cannabidiol mitigate fear memory through reconsolidation disruption”, publicado em European Neuropsychopharmacology 25 (6): 958-965, pode ser lido neste site.
Peter Moon/Agência Fapesp