O lagarto do Pico da neblina – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Lagartos da Neblina: Cientistas descrevem novas espécies do ponto mais alto do Brasil

Trabalho de pesquisadores da USP revela segredos da biodiversidade do Pico da Neblina, na Amazônia

12/03/2020

Texto: Herton Escobar

Guardados em potes de vidro, dentro de um armário de ferro vermelho no Instituto de Biociências (IB) da Universidade de São Paulo (USP), centenas de habitantes de um “mundo perdido” no alto da Amazônia começam a ter suas identidades reveladas pela ciência.

A história começa com uma expedição ao Pico da Neblina, a montanha mais alta do Brasil, em novembro de 2017. Cientistas da USP passaram três semanas embrenhados na selva, com apoio do Exército Brasileiro, investigando a biodiversidade de uma das regiões mais intocadas e inexploradas da Amazônia, na fronteira do Estado do Amazonas com a Venezuela. 

Voltaram de lá com 2,5 mil exemplares de fauna e flora na bagagem, representando 431 espécies de animais (incluindo répteis, anfíbios, aves e pequenos mamíferos) e 308 espécies de plantas. Entre elas, várias inéditas, nunca antes vistas pela ciência, e diversos novos registros, de espécies já conhecidas, porém nunca antes vistas naquela região, ou mesmo no Brasil.
 
Todo o material coletado foi trazido de volta para São Paulo e depositado nas coleções biológicas do IB, do Museu de Zoologia da USP, e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP (Esalq) da USP, em Piracicaba — acessíveis a qualquer pesquisador do Brasil e do mundo.
 

O armário com répteis e anfíbios do Pico da Neblina no IB-USP – Marcos Santos/USP Imagens

O acervo é tão vasto que levará anos para ser inventariado por completo; mas os cientistas já sabem de cara, por experiência, quais são os exemplares que merecem uma atenção especial. Entre eles, dois lagartos do gênero Riolama, que acabam de se tornar as duas primeiras novas espécies oficialmente descobertas pela expedição: Riolama grandis e Riolama stellata.
 
O trabalho científico que descreve formalmente os bichos — servindo como uma “certidão de nascimento” das espécies — foi publicado em janeiro na revista Zoological Journal of the Linnean Society, uma das mais tradicionais na área de zoologia comparada e evolutiva. 

Mundo Perdido

Os pesquisadores acreditam esses lagartos sejam habitantes exclusivos (endêmicos) dos tepuis, como são conhecidas as montanhas em formato de mesa que pontuam o planalto das Guianas, no norte da Amazônia. O Pico da Neblina e o Monte Roraima são dois exemplos famosos dessas formações amazônicas, que lembram as da Chapada Diamantina, na Bahia.
 
As espécies que vivem no topo dessas mesas são em grande parte diferentes das que vivem nas florestas abaixo delas. São ambientes completamente distintos em termos de temperatura, cobertura vegetal e outras características básicas, que exigem adaptações específicas por parte dos bichos que habitam esses locais. 

Localização do Parque Nacional do Pico da Neblina e do 5º Pelotão Especial de Fronteira (PEF) do Exército, em Maturacá  – Foto: Google Earth

É como se essas montanhas fossem ilhas, dotadas de uma biodiversidade única, fisicamente e ecologicamente isoladas do resto da floresta (como ocorre nas ilhas oceânicas do litoral de São Paulo, por exemplo, que abrigam espécies únicas, distintas do continente). No caso de répteis e anfíbios, pesquisadores acreditam que até 80% das espécies que habitam esses tepuis sejam endêmicas — ou seja, que só existem ali e em nenhum outro lugar do mundo.
 
Foram essas mesas cobertas de névoa, aliás, que inspiraram o escritor britânico Arthur Conan Doyle a escrever o clássico O Mundo Perdido, no início do século 20. O livro conta a história — fictícia, mas com um pé científico na realidade — de uma expedição que descobre dinossauros e outros animais pré-históricos vivendo em isolamento, no topo dos tepuis.
 
“Os bichos que vivem no topo, em geral, não têm nada a ver com o resto da Amazônia”, diz o herpetólogo Miguel Trefaut Rodrigues, professor titular do Departamento de Zoologia do IB. Passados dois anos da expedição, ele ainda lembra com entusiasmo da euforia de desembarcar de helicóptero naquele mundo perdido das alturas. “Foi uma sensação incrível. Desde o início, a gente via um monte de bicho que não tinha ideia do que era”, conta. “Era uma coisa nova atrás da outra.”
Os dois lagartos Riolama são apenas os primeiros de várias espécies inéditas de animais e plantas que os pesquisadores trouxeram do Pico da Neblina e ainda esperam descrever, à medida que forem inventariando o material coletado. Para decretar uma espécie como “nova” não basta olhar para ela e dizer que é diferente: é preciso fazer uma comparação minuciosa (morfológica e/ou genética) com exemplares de espécies semelhantes (às vezes guardados em coleções de outros países), para se certificar de que, realmente, se trata de algo inédito; e então publicar uma descrição detalhada do nova espécie em revista científica especializada — como fizeram os autores neste caso. O primeiro autor do trabalho é Renato Recoder, herpetólogo do IB.
 
A lista de prováveis outras novidades inclui uma corujinha e diversas outras espécies de répteis e anfíbios; entre eles, um sapinho que os pesquisadores encontraram em cima de uma pedra, a 2.995 metros de altitude, bem no topo do Pico da Neblina. “Esse veio, literalmente, do ponto mais alto do Brasil”, diz o biólogo Agustín Camacho, também do IB.
 
Uma nova expedição está prevista para ocorrer em novembro deste ano numa região ainda mais remota e inexplorada, da Serra do Imeri, cerca de 80 km a sudeste do Pico da Neblina, também com apoio do Exército Brasileiro.

Infografia: Beatriz Abdalla/Jornal da USP. Fotos: Reprodução/Canal USP.

Pioneirismo

A expedição de 2017 da USP foi a primeira a explorar cientificamente a porção mais alta da Serra da Neblina, acima de 2 mil metros de altitude, além de uma região mais baixa, no entorno da base do 5º Pelotão Especial de Fronteira (PEF) do Exército, em Maturacá. Ambas as áreas ficam dentro do Parque Nacional do Pico da Neblina e da Terra Indígena Yanomami. O trabalho contou com o apoio de índios e foi acompanhada por uma equipe de jornalismo da USP.
 
Os dois novos lagartos Riolama foram coletados na região da Bacia do Gelo, próxima ao Pico da Neblina, onde os cientistas passaram 10 dias acampados. O nome dá uma ideia do gradiente de temperatura que os pesquisadores tiveram que enfrentar — e ao qual os lagartos estão adaptados para sobreviver — em plena Amazônia: 28 Cº durante o dia, 3 Cº à noite.
 
O Riolama grandis, como sugere o nome, é o maior deles, com quase 9 cm de comprimento de corpo (não incluindo a cauda). Já o Riolama stellata tem menos de 5 cm e recebeu esse nome em função dos pontinhos claros que tem espalhados pela lateral do corpo, que fazem lembrar um céu estrelado. Antes delas, quatro outras espécies de Riolama já haviam sido descritas por outros pesquisadores — todas elas coletadas em tepuis, acima de 1,8 mil metros de altitude.

O lagarto Riolama stellata, uma das novas espécies identificadas no Pico da Neblina – Foto: M.T. Rodrigues/IB-USP

O lagarto Riolama grandis, uma das novas espécies identificadas no Pico da Neblina – Foto: M.T. Rodrigues/IB-USP

Aos olhos de um leigo, são lagartos aparentemente comuns, sem nenhuma característica particularmente bizarra ou extravagante. Cientificamente, porém, por serem espécies endêmicas dos tepuis, são peças importantes no quebra-cabeça que os pesquisadores buscam montar para reconstituir a história evolutiva do Planalto das Guianas e do Pantepui — como é chamado o conjunto ecossistêmico de todos os tepuis.
 
Nenhuma espécie de Riolama é conhecida da parte baixa da floresta. As análises genéticas feitas pelos pesquisadores indicam que o gênero começou a se diversificar cerca de 28 milhões de anos atrás, no Oligoceno, numa época em que o Rio Amazonas ainda desaguava no Pacífico e a paisagem ao redor era completamente diferente. A floresta amazônica como a conhecemos hoje ainda não existia.
 
Isso reforça a  chamada “hipótese do platô”, uma das três possibilidades levantadas para explicar a diferenciação das espécies do Pantepui. Segundo essa teoria, as espécies que hoje vivem restritas ao topo dos tepuis são relíquias evolutivas de um processo de isolamento, causado pela erosão dos planaltos ao redor. O resto do terreno baixou, e os bichos e plantas que ficaram “presos” no topo dos tepuis foram se distanciando evolutivamente daqueles do andar de baixo, que tiveram que se adaptar a condições ambientais completamente distintas. Como ilhas num oceano de floresta.

Grupo de pesquisa no campo da expedição do Pico da Neblina – Foto: Reprodução/Canal USP