Mudança climática nas cidades:
“Precisamos ficar preparados para o pior"

Chuvas e estiagens dos últimos anos demonstram vulnerabilidade das cidades brasileiras aos efeitos do aquecimento global

Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas 

12.02.2020

Texto: Herton Escobar
Diagramação: Cleber Siquette

Era início de janeiro quando o professor Pedro Leite da Silva Dias viu as primeiras notícias sobre uma grande “explosão” de chuvas na ilha de Java, na Indonésia. Para a maioria dos brasileiros, era uma notícia sem importância, sobre um lugar distante, desconectado da nossa realidade. Mas Dias enxergou ali o prenúncio de mais uma possível tragédia nacional. “Macaco velho” das ciências atmosféricas, com quase 50 anos de experiência na área, ele logo pensou: “Essa bomba vai chegar aqui”.

Professor Pedro Leite da Silva Dias – Foto: Air Pollution Conference Brazil

E chegou mesmo. Três semanas mais tarde, uma “explosão” semelhante de chuvas torrenciais começou a desabar sobre Belo Horizonte e outros municípios da Zona da Mata Mineira, sul do Espírito Santo e norte do Rio de Janeiro. As cenas de calamidade do réveillon na Indonésia logo se repetiram aqui: alagamentos, desabamentos, destruição, sofrimento, mortes. Só no Estado de Minas Gerais, mais de 50 pessoas perderam a vida em janeiro por causa da chuva, e mais de 50 mil ficaram desabrigadas.

“A experiência me diz que quando acontece uma explosão assim na Indonésia é bom ficar de olho, porque vai dar algum problema por aqui também”, observa Dias, professor titular e atual diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP.

Não se trata de profecia nem premonição, mas de uma previsão científica, lastreada por décadas de pesquisa acadêmica e trabalho no campo. Além de cientista, Dias é fazendeiro, produtor de café no sul de Minas Gerais — onde depende, também, de uma boa meteorologia para garantir o sucesso de sua lavoura.

A tal “explosão”, no caso, é como os meteorologistas se referem a eventos de chuva intensa que persistem por vários dias, sobre grandes áreas, normalmente detonados por um aquecimento anômalo da água do mar ou pela intrusão de frentes frias na região dos trópicos. Essas “explosões” liberam uma quantidade imensa de energia (gerada pela mudança de fase da água, do estado gasoso para o líquido), que se propaga pela atmosfera na forma de ondas.

“É como quando você joga uma pedra num lago e forma aqueles anéis concêntricos, que espalham a energia na água a partir do ponto onde a pedra caiu”, explica Dias. “No caso da atmosfera, o papel da pedra é feito pela chuva.”

À medida que essas ondas se propagam, elas movimentam massas de ar que vão interferir com fenômenos atmosféricos locais, produzindo anomalias meteorológicas ao redor do globo. Dez dias após a “explosão” na Indonésia, por exemplo, a costa leste dos Estados Unidos foi tomada por uma onda de calor recorde, com temperaturas que passaram dos 20 graus Celsius em Boston e Nova York, em pleno inverno — quando o normal seria estar nevando. Europa, Ásia e Austrália também registraram anomalias no período.

É um exemplo do que os meteorologistas chamam de “teleconexões atmosféricas”; fenômeno pelo qual perturbações do sistema em um ponto do planeta podem surtir efeitos em regiões distantes — numa versão climática (e real) do chamado “efeito borboleta”.

No Brasil, o evento mais marcante desse cenário teleconectado foram as chuvas de janeiro em Minas Gerais. Resumindo: a onda de choque da “explosão” na Indonésia atravessou o Pacífico, passou por cima dos Andes e despejou uma massa de ar seco sobre a Amazônia, que inibiu a formação de chuvas sobre a floresta e “abriu a porta” para um maior fluxo de umidade do Oceano Atlântico para a região Sudeste. Quando essa umidade vinda do Atlântico sul eventualmente se encontrou com a umidade vinda da Amazônia (que deveria ter caído sobre a floresta, mas não caiu, por causa do ar seco), fez-se o dilúvio.

Imprevisibilidade previsível

As previsões meteorológicas do início de janeiro chegaram a prever a ocorrência de chuvas mais fortes em Minas Gerais para o fim do mês, mas não na magnitude observada. “Belo Horizonte estava na área de risco, mas as previsões subestimaram a intensidade do evento”, avalia Dias. O mesmo aconteceu com o temporal de 10 de fevereiro que paralisou São Paulo: os meteorologistas acertaram na previsão de chuva forte, mas o volume de água que desabou sobre a metrópole (114 mm) acabou sendo o dobro do previsto.
 
Essa é uma das grandes dificuldades (científicas, políticas e econômicas) de se lidar, na prática, com as mudanças climáticas: a imprevisibilidade do clima. As previsões meteorológicas hoje são bastante confiáveis para um período de três a cinco dias, mas o grau de incerteza aumenta a partir daí. E por mais que a ciência avance nesse sentido, a incerteza nunca chegará a zero, porque o sistema climático é complexo e caótico demais para se prever “com certeza” o que vai acontecer num determinado dia.
 
“A gente precisa aprender a conviver com a incerteza da previsão; ou seja, trabalhar com previsões probabilísticas e tomar ações com base na probabilidade de ocorrência de um determinado evento”, afirma Dias. 
 
Ao ver a “explosão” na Indonésia, ele previu que algum efeito colateral chegaria ao Brasil, mas não sabia como, onde ou quando exatamente esse efeito iria se manifestar por aqui. Poderia ser chuva — como acabou sendo —, mas também poderia ser seca, dependendo das condições atmosféricas do momento. A grande estiagem do verão de 2013-2014 em São Paulo, segundo ele, também foi um evento extremo desencadeado, inicialmente, por uma “explosão” de chuva no sudeste asiático.
 
Diante das previsões, Dias tomou as precauções que podia em sua fazenda: contratou um equipe para cavar canais adicionais de drenagem em uma área onde ele acabara de plantar café, antes do Natal. Foi a salvação da lavoura. Em um dia, no fim de janeiro, chegou a chover 126 milímetros em 24 horas — uma verdadeira enxurrada, que teria levado grande parte do café novo embora, não fosse pelos canais de escoamento que ele havia feito. “A lição disso é prevenção”, resume Dias. 
 
Dito isso, fica a dúvida: será que os prefeitos de Belo Horizonte, de São Paulo e das outras várias cidades afetadas pelas chuvas das últimas semanas (e dos últimos anos) poderiam ter tomado medidas preventivas para evitar, ou ao menos reduzir, os estragos causados pelos temporais? 
 
Há algumas medidas que podem ser tomadas de forma emergencial — por exemplo, a evacuação de pessoas de áreas de risco, sujeitas a alagamentos e deslizamentos. Mas a adaptação das cidades à mudança do clima exige mudanças muito mais sistêmicas e estruturais do que isso, segundo os especialistas.

Imprevisibilidade previsível

As previsões meteorológicas do início de janeiro chegaram a prever a ocorrência de chuvas mais fortes em Minas Gerais para o fim do mês, mas não na magnitude observada. “Belo Horizonte estava na área de risco, mas as previsões subestimaram a intensidade do evento”, avalia Dias. O mesmo aconteceu com o temporal de 10 de fevereiro que paralisou São Paulo: os meteorologistas acertaram na previsão de chuva forte, mas o volume de água que desabou sobre a metrópole (114 mm) acabou sendo o dobro do previsto.
 
Essa é uma das grandes dificuldades (científicas, políticas e econômicas) de se lidar, na prática, com as mudanças climáticas: a imprevisibilidade do clima. As previsões meteorológicas hoje são bastante confiáveis para um período de três a cinco dias, mas o grau de incerteza aumenta a partir daí. E por mais que a ciência avance nesse sentido, a incerteza nunca chegará a zero, porque o sistema climático é complexo e caótico demais para se prever “com certeza” o que vai acontecer num determinado dia.
 
“A gente precisa aprender a conviver com a incerteza da previsão; ou seja, trabalhar com previsões probabilísticas e tomar ações com base na probabilidade de ocorrência de um determinado evento”, afirma Dias. 
 
Ao ver a “explosão” na Indonésia, ele previu que algum efeito colateral chegaria ao Brasil, mas não sabia como, onde ou quando exatamente esse efeito iria se materializar por aqui. Poderia ser chuva — como acabou sendo —, mas também poderia ser seca, dependendo das condições atmosféricas do momento. A grande estiagem do verão de 2013-2014 em São Paulo, segundo ele, também foi um evento extremo desencadeado, inicialmente, por uma “explosão” de chuva no sudeste asiático.
 
Diante das previsões, Dias tomou as precauções que podia em sua fazenda: contratou um equipe para cavar canais adicionais de drenagem em uma área da fazenda onde ele acabara de plantar café, antes do Natal. Foi a salvação da lavoura. Em um dia, no fim de janeiro, chegou a chover 126 milímetros em 24 horas — uma verdadeira enxurrada, que teria levado grande parte do café novo embora, não fosse pelos canais de escoamento que ele havia feito. “A lição disso é prevenção”, resume Dias. 
 
Dito isso, fica a dúvida: será que os prefeitos de Belo Horizonte, São Paulo, e das outras várias cidades afetadas pelas chuvas das últimas semanas (e dos últimos anos) poderiam ter tomado medidas preventivas para evitar, ou ao menos reduzir, os estragos causados pelos temporais? 
 
Há algumas medidas que podem ser tomadas de forma emergencial — por exemplo, a evacuação de pessoas de áreas de risco, sujeitas a alagamentos e deslizamentos. Mas a adaptação das cidades à mudança do clima exige mudanças muito mais sistêmicas e do que isso, segundo os especialistas.

Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas 

“Roleta russa” climática

Ainda que não seja possível prever exatamente onde e quando cada evento climático extremo vai acontecer, é possível dizer com certeza que a frequência desses eventos está aumentando, e que a tendência — segundo os melhores e mais confiáveis modelos de previsão climática disponíveis — é que eles continuem se tornando cada vez mais frequentes e intensos à medida que a temperatura do planeta aumenta. Ou seja, a probabilidade de uma cidade qualquer sofrer com extremos de temperatura, chuvas e estiagens nos próximos anos é imensa. Mais cedo ou mais tarde, todos serão atingidos pela mudança do clima. Portanto, todos precisam se precaver.
 
“É uma roleta russa”, diz o diretor do Instituto de Biociências (IB) e coordenador do programa USP Cidades Globais, Marcos Buckeridge. “Precisamos ficar preparados para o pior.”
 
“Era óbvio que uma tempestade dessa dimensão chegaria a São Paulo, após os desastres em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Os eventos extremos gerados pelas mudanças climáticas vieram para ficar e serão cada vez mais contundentes. O governo não pode mais continuar negligenciando essa questão”, escreveu o urbanista Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, em artigo publicado no site da Folha de S. Paulo, no fim da tarde de 10 de fevereiro, com a cidade ainda debaixo d’água.  
 
Chuvas fortes, estiagens e ondas de calor (ou frio) sempre existiram e continuarão a existir — isso não é novidade; faz parte da variabilidade natural do clima. A mudança trazida pelo aquecimento global está na frequência e na intensidade com que esses fenômenos ocorrem, elevando drasticamente o risco que eles oferecem para os grandes centros urbanos. As tragédias não decorrem do clima propriamente dito, mas da interação desses extremos climáticos com uma série de problemas urbanísticos e sociais das cidades brasileiras — que também não são novidade, mas se tornam mais agudos, dolorosos e difíceis de remediar à medida que o clima fica mais extremo, com mais frequência.
 
“Não é correto achar que as mudanças climáticas globais não tenham a ver com o que está ocorrendo agora. Elas não são o único motivo, mas contribuem, junto aos nossos erros de urbanização, para esta situação terrível em que nos encontramos”, afirma Buckeridge. “Os governos não erram apenas agora. Erraram ao ignorar, durante décadas, as advertências dos cientistas. A pergunta agora é: continuaremos a ignorar os avisos?”
 
A canalização de rios e a impermeabilização do solo são problemas graves, que impedem o escoamento natural da água da chuva. As margens dos rios Tietê e Pinheiros alagam porque foram feitas para isso — são as chamadas várzeas, ou planícies de inundação, que inundam naturalmente em períodos de cheia. O problema é que agora, em vez de florestas e campos, elas são cobertas de asfalto; além do fato de o curso desses rios ter sido completamente alterado e suas bordas, cobertas de concreto. A falta de cobertura verde, por sua vez, aumenta o calor e dificulta o escoamento da água nas partes mais internas da cidade.

Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas 

“Os eventos extremos não criam, mas potencializam desigualdades e deficiências que nossas cidades já têm”, diz Gabriela Di Giulio, professora do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública e membro do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade do Instituto de Estudos Avançados da USP, que estuda comunicação de risco, governança e impacto humano das mudanças climáticas (assista abaixo a apresentação dela sobre o tema no USP Talks). 
 

Os vários eventos extremos registrados no Sudeste nos últimos anos, segundo Gabriela, deixam claro que a necessidade de adaptação das cidades às mudanças climáticas não é um desafio para o futuro, mas uma demanda “para ontem”. 

“Os dados estão aí; o aumento dos extremos é uma realidade”, diz o meteorologista José Marengo, coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). “Não é uma projeção para o futuro, é algo que estamos vivendo agora.”

Dados da estação meteorológica do IAG-USP mostram que o número de temporais com mais de 80 milímetros de chuva em São Paulo foi quase seis vezes maior no período de 2000 a 2018 (com 23 eventos) do que nas décadas de 1940 e 1950 (com 4 eventos), por exemplo, segundo um estudo coordenado pelo Cemaden que deverá ser publicado em breve. No caso de chuvas extremas, acima de 100 mm, o aumento foi de quatro vezes no mesmo período (8 contra 2). E só neste ano já tivemos duas tempestades acima desse volume — incluindo a tempestade do último dia 10.

O problema não se restringe às grandes metrópoles. Uma das maiores tragédias associadas a extremos climáticos ocorreu na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, em 2011, quando deslizamentos e enchentes mataram mais de 900 pessoas em municípios como Teresópolis e Nova Friburgo.
 
Outra vulnerabilidade urbana que é exacerbada pelas mudanças climáticas, segundo os pesquisadores, é a desigualdade social. Tipicamente, as populações mais afetadas pelos extremos climáticos são as mais pobres, forçadas a viver em áreas de risco, como encostas de morros e margens de rios ou córregos.
 
“Nós vamos ter que pensar nisso: para fazer as medidas de adaptação no futuro, alguns vão pagar com a vida — e aí não tem preço, não dá para a gente precificar. Do ponto de vista da infraestrutura nós vamos gastar muito mais (…) do que se nos precavêssemos de trabalhar agora”, reforça Buckeridge.
 
“A tragédia deve servir de alerta para que a sociedade se conscientize de que a mudança climática é uma questão que afeta de forma dramática a vida dos cidadãos, que o planejamento urbano é indispensável para enfrentar o problema das enchentes e que apenas medidas estruturais, proporcionais a esse desafio, podem garantir resultados sustentáveis para aliviar os graves efeitos dos eventos climáticos extremos”, resumiu Bonduki.

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