Fotomontagem feita por Jornal da USP com imagens de Flickr e Pixabay

O dia em que a “liberdade de expressão” ganhou um dono

Compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk envolveu um acordo de US$ 44 bilhões. Pelo mundo, veículos questionam o que está por trás do argumento de “defesa da liberdade de expressão” que motivou aquisição

 28/04/2022 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 29/04/2022 às 10:44

Autor: Denis Pacheco

Arte: Guilherme Castro/Jornal da USP

Anunciada no final da tarde da última segunda-feira (25), a compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk tomou boa parte do mundo de assalto.

acordo de cerca de US$ 44 bilhões pela rede social com mais de 200 milhões de usuários ativos ao redor do mundo envolveu um drama corporativo que se desenrolou de forma explícita nos últimos meses. A princípio, Musk se tornara um acionista importante da plataforma no começo de abril, porém, poucos dias depois, em seu próprio perfil no Twitter, o bilionário anunciou a intenção de se tornar o único dono da empresa, retirando-a do mercado de ações na sequência. Nesta semana, a rede concordou em se vender para Musk por US$ 54,20 por ação.

Além de agitar o planeta, o anúncio da compra chacoalhou os próprios funcionários do Twitter que, em seus canais de comunicação internos, já questionavam o futuro novo patrão. “Fiquei meio surpreso com o quanto as pessoas pareciam estar desistindo”, declarou anonimamente um dos empregados do Twitter ao jornalista de tecnologia Casey Newton.

Apesar de parte da equipe estar aberta à ideia de um Twitter privado administrado por Musk, as melhorias propostas pelo bilionário como eliminar bots e calibrar, de forma mais transparente, seus algoritmos de recomendação ainda estão longe de serem implementadas.

Outra questão levantada pelos funcionários da empresa que, até então, era de capital aberto, é que parte de suas compensações dependentes de ações públicas não será remunerada quando a empresa se fechar. Ainda assim, a expectativa é que o negócio leve cerca de seis meses para ser concluído. Uma política de não demitir no curto prazo e congelar novos recursos está em discussão. Tudo em prol da futura transformação da rede nas mãos de Musk.

Tanto para os empregados do Twitter, quanto para seus milhões de usuários, a pergunta que fica é: o que acontece a seguir?

Quem está por trás da compra do Twitter

Seus canais estão tagarelando em um canto de seu head-up display, jogando rajadas de informações filtradas para ele. Elas competem por sua atenção, brigando e acenando rudemente em frente ao cenário.

Com esse trecho, o escritor britânico Charles Stross apresentou seu protagonista em Accelerando, livro de 2005 em que o personagem Manfred Macx vive em um futuro povoado pelo excesso de informação.

Um ano depois do lançamento, em 2006, nasceu o Twitter, uma plataforma de microblog que na década seguinte passou a conectar em um só fluxo informacional (a timeline) mensagens de políticos, corporações, celebridades, jornalistas, cientistas, artistas e uma infinidade de usuários ao redor do globo.

Nele, todos nós nos tornamos um pouco como Manfred Macx, navegando entre notícias, opiniões, polêmicas, memes e banalidades, todas disputando – alegadamente de igual para igual – o mesmo espaço.

Nesse contexto, Elon Musk, usuário desde junho de 2009, se tornou um dos mais vocais no espaço virtual. Empresário e investidor, ele é fundador, CEO e engenheiro-chefe da SpaceX, empresa de exploração espacial. Além disso, ele também administra a Tesla, Inc, de carros elétricos, a The Boring Company, uma companhia de infraestrutura e de construção de túneis e a Neuralink, que desenvolve interfaces cérebro-computador implantáveis.

Com um patrimônio líquido estimado em cerca de US$ 273 bilhões em abril de 2022, Musk é a pessoa mais rica do mundo, de acordo com o Bloomberg Billionaires Index e a lista de bilionários em tempo real da Forbes.

Elon Musk e SpaceX - Foto: Flickr

Seu caminho para a fortuna começou já de um ponto vantajoso de berço e galgou pelo mundo da alta tecnologia. Desde 1995, Musk, que nasceu na África do Sul, trabalha próximo ao Vale do Silício e deu o primeiro de uma série de saltos financeiros quando, em 2002, a empresa PayPal, da qual era um dos maiores acionistas, foi comprada pela gigante do comércio eletrônico eBay.

Seu interesse por projetos envolvendo alta tecnologia nasceu, em parte, do amor pela ficção científica. Fã dos livros da série The Culture, escrita pelo falecido Iain M. Banks, Musk possui uma interpretação muito particular do futuro pós-escassez imaginado pelo autor inglês. Nos livros, a humanidade atingiu seu apogeu na Terra e se espalhou pela galáxia. Envoltos em uma utopia comunista, os personagens são livres para explorar suas próprias paixões, muitas delas, misturando expressões de lazer com curiosidade científica genuína.

Entretanto, nas novelas de Banks, a humanidade não possui um líder, o capitalismo se tornou uma memória distante, praticamente bárbara, e a liberdade de pensamento é um pilar impulsionador da humanidade.

De volta ao presente, em que essas proposições ainda não se concretizaram, Musk se posiciona como seu campeão paradoxal.

“Em defesa da liberdade de expressão”

“A liberdade de expressão é a base de uma democracia em funcionamento, e o Twitter é a praça pública digital onde são debatidos assuntos vitais para o futuro da humanidade”, afirmou ele em um tweet logo após a compra. “O Twitter tem um tremendo potencial – estou ansioso para trabalhar com a empresa e a comunidade de usuários para desbloqueá-lo.”

O argumento (defesa da liberdade de expressão) não é novo no repertório de Musk, que possui mais de 83 milhões de seguidores. Não por acaso, ele próprio já se envolveu em polêmicas, inclusive jurídicas, por se manifestar de forma controversa na plataforma. No ápice da pandemia, por exemplo, ele ativamente duvidou da gravidade da covid-19 e questionou as medidas de isolamento, tanto no mundo, quanto na Califórnia, local onde uma de suas fábricas de carros elétricos estava localizada.

A natureza das declarações tem agradado especialmente dois públicos: os fãs de Musk e a direita internacional, que se sente preterida pela direção das grandes empresas de tecnologia, em especial, nas interpretações do que se considera censura de seu direito de expressão e do que moderadores e checadores de fatos consideram fake news.

Nos últimos anos, o empresário passou longe de ser o único a discutir os limites do princípio da liberdade de expressão. As redes, centrais durante a discussão, têm cada vez mais assumido um duplo papel: o de arena de debate e o de pivô das conversas. Somente neste ano, o Brasil tem lidado com inúmeras facetas, particularmente na esfera política e envolvendo discursos de ódio.

Em sua coluna no Jornal da USP, o professor Renato Janine Ribeiro explicou a diferença entre discurso de ódio e liberdade de expressão: “A liberdade de expressão existe para que a gente melhore a qualidade das nossas escolhas. É importante que não haja um único discurso autorizado, mas discursos bem diferentes entre si e, inclusive, que irritem ao outro, mas estejam dentro de um limite básico, que é o limite de respeito ao outro”.

Renato Janine Ribeiro - Foto: Reprodução/Vermelho

Renato Janine Ribeiro - Foto: Reprodução/Vermelho

A “falta de respeito” de Elon Musk diante de autoridades políticas, por exemplo, está devidamente registrada no próprio Twitter que, em diversas instâncias, detém o poder de punir discursos de ódio, mas que agora estará a mercê do futuro dono.

Só mais um barão da mídia?

Não é a primeira vez que bilionários manifestam interesse em fazer parte da esfera midiática de forma ativa.

Em 2013, Jeff Bezos, o bilionário fundador da Amazon, comprou por US$ 250 milhões um dos mais importantes jornais americanos, o Washington Post. A compra de Bezos foi creditada com a revitalização do jornal, que triplicou seu tráfego na web e retornou à lucratividade em três anos.

Não muito tempo depois, Jack Ma, fundador do grupo chinês Alibaba, comprou o South China Morning Post, publicação de Hong Kong, que teve papel importante durante o tumulto que envolveu a interferência do governo chinês na autonomia da cidade costeira.

Nos EUA, jornais como o Boston Globe, o Los Angeles Times e a revista centenária The Atlantic também possuem milionários locais como seus donos. Contudo, todos os exemplos citados são – e é importante ressaltar – jornais. Isso significa que todos eles respondem a um cânone secular, estabelecido após décadas de compromisso com princípios éticos frequentemente em discussão. Além disso, todos eles possuem uma localidade expressa em seus respectivos nomes. Ainda que isso possa ser relativizado, seu alcance, embora global por causa da Internet, está atrelado ao seu lugar de origem. No caso do Twitter, um novo tipo de corporação de mídia que, mesmo com sede em São Francisco, nos EUA, não possui as mesmas amarras. Sua base pode ser transportada para países distantes, como acontece com diversas outras plataformas que, por razões econômicas, logísticas ou mesmo legais, muitas vezes se afastam de suas cidades natais.

Jeff Bezos e o Washington Post - Foto: Flickr

Ditando as regras de uma rede que, apesar de ser menor em comparação ao Facebook, tem influenciado políticas públicas de inúmeros países e movido os noticiários internacionais por atrair um grande número de jornalistas, o Twitter detém um poder bastante distinto de veículos tradicionais tendo (ou mantendo) um único dono.

Ainda que um cabal desconhecido de acionistas não seja exatamente a forma mais transparente de se administrar um poder como este, o fato de conhecermos Elon Musk por suas declarações polêmicas, que refletem uma mentalidade incisivamente neoliberal e de culto à personalidade, coloca a compra do Twitter em alerta.

Em artigo opinativo para o The New York Times nesta semana, o articulista e crítico das elites Anand Giridharadas declarou: “É um casamento perfeito para uma era de plutocracia: o Twitter com seus sérios problemas e Elon Musk, a personificação desses problemas. O que acontece quando a encarnação de um problema compra o direito de decidir qual é o problema e como corrigi-lo?”.

Envolto em crises graves como disseminação de fake news, manipulação política de bots e inúmeras denúncias de assédio, o Twitter é uma “praça pública digital” imperfeita e que, nos próximos meses, se tornará ainda menos pública.

Foto: Wikimedia Commons

Anand Giridharadas - Foto: Wikimedia Commons


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