Em 10 de agosto o USP Mulheres juntou-se a essas comemorações com a realização de um seminário para discutir os desafios da universidade no enfrentamento da violência contra as mulheres. O tema não é alheio aos estudos acadêmicos. Desde os anos 1980 a produção científica nas universidades brasileiras contribuiu com expressiva produção de estudos e pesquisas sobre a violência contra as mulheres, ajudando na compreensão desse fenômeno em suas dimensões, causas e características. Muitos desses estudos contribuíram para a denúncia da violência como problema social, fundamentaram projetos de políticas públicas, e avaliação da forma como as instituições respondem a essa violência.
Muito recentemente as universidades brasileiras se viram obrigadas a encarar o problema também por outro ângulo: a presença da violência contra as mulheres no cotidiano da vida acadêmica. Na USP em particular, esse processo teve início em 2014, quando ocorreram as denúncias de violência sexual em festas promovidas pelos alunos da Faculdade de Medicina. A partir daquele momento as notícias de violência não pararam de surgir em outras faculdades, outros campi e outras universidades no País.
Devemos essa mudança à Lei Maria da Penha. Ao nomear a violência doméstica e familiar contra as mulheres como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero” (artigo 5º), como “violação dos direitos humanos” (artigo 6º) e ao incorporar nesse rol a violência física, moral, psicológica, sexual e patrimonial (artigo 7º), a lei permitiu mostrar que essa violência não se resume a episódios privados, isolados, resultado de fracassos individuais, mas se apresenta como um problema social que pode afetar qualquer mulher, em qualquer etapa da vida, com diferentes formas de manifestação.
Esse novo enquadramento legal para a violência de gênero tem tornado possível reconhecer que comportamentos misóginos e machistas estão presentes no dia a dia das mulheres, expressos das formas mais brandas (dos assobios e piadinhas com conotação sexual) às mais graves (das agressões físicas, sexuais e dos feminicídios). São comportamentos que por sua recorrência e intensidade formam um amplo espectro de violações aos direitos das mulheres e que as atingem pelo fato de serem mulheres.
As denúncias tomaram a Universidade de surpresa. O que se deve, ao menos em parte, ao preconceito com relação à violência contra as mulheres, que durante muitos anos foi compreendida como problema de quem não sabia dialogar e conviver com as diferenças, presente apenas entre populações desprovidas de condições econômicas e acesso à educação.
Muito recentemente as universidades brasileiras se viram obrigadas a encarar o problema também por outro ângulo: a presença da violência contra as mulheres no cotidiano da vida acadêmica. Na USP em particular, esse processo teve início em 2014, quando ocorreram as denúncias de violência sexual em festas promovidas pelos alunos da Faculdade de Medicina.
A violência era também reconhecida apenas quando tinha a gravidade das agressões físicas e podia ser tratada como crime. Situações que deviam ser encaminhadas no âmbito da polícia e da justiça onde deveriam encontrar a devida punição.
A Lei Maria da Penha mostrou que não é assim. Nem toda violência de gênero é crime. Contudo, isso não minimiza sua gravidade e a importância de haver medidas de responsabilização para quem as pratica. Requerem também medidas para reparação e proteção para quem sente seus direitos violados e medidas de prevenção para que esses comportamentos não se repitam.
Reconhecida como espaço de excelência na produção de conhecimento, de formação profissional e promoção do progresso econômico, político, cultural e social do País, a imagem e vocação das universidades não combinam com a reprodução da discriminação e desigualdade de gênero e por isso essa situação foi negada e mantida na invisibilidade por tanto tempo.
No dia a dia da vida universitária, contudo, a discriminação e a violência de gênero estão presentes nas salas de aulas, nos laboratórios, nas atividades de pesquisa de campo, nas festas, campeonatos e trotes, nas moradias estudantis e afetam o cotidiano de alunas, funcionárias e professoras.
Envolvem o assédio sexual, o assédio moral, as piadinhas de caráter misógino e sexista, o desrespeito, a desqualificação intelectual, a discriminação contra mulheres em espaços e cursos tradicionalmente masculinos, o acesso desigual a recursos de pesquisa e bolsas de estudos, o teto de vidro que inibe a ascensão profissional das mulheres e os estupros.
Essas são algumas das formas de violações relatadas pelas mulheres que conseguem superar o medo, a vergonha e o sofrimento de falar sobre o que sofrem na convivência acadêmica. São experiências protagonizadas por colegas, professores, funcionários e que afetam sua saúde física e mental, inibem seu desenvolvimento intelectual, as impelem para fora da vida acadêmica e, em muitos casos, afetam seu desenvolvimento profissional, além de comprometer seus relacionamentos na vida íntima e social.
Embora não seja um problema novo, a violência no meio acadêmico se apresenta como um novo desafio para a formulação de respostas institucionais. Denunciamos a tolerância social com a violência, mas não podemos esquecer que os espaços institucionais, inclusive as instituições de educação, são parte dessa mesma sociedade.
Nem toda violência de gênero é crime. Contudo, isso não minimiza sua gravidade e a importância de haver medidas de responsabilização para quem as pratica. Requerem também medidas para reparação e proteção para quem sente seus direitos violados e medidas de prevenção para que esses comportamentos não se repitam.
Desde que nascemos, todos e todas nós, recebemos educação baseada em modelos de relacionamentos que reproduzem a desigualdade de gênero e a discriminação contra as mulheres. Não há um dispositivo automático de mudança desses comportamentos quando se ingressa na universidade. Se a sociedade é tolerante, as universidades também serão.
Conscientizar a respeito desse problema é o primeiro passo para a mudança da realidade. Mas falar apenas não basta. O USP Mulheres foi criado com a finalidade de propor e implementar projetos voltados à promoção da igualdade de gênero na Universidade de São Paulo. Para tanto, trabalha em articulação com outros órgãos da administração universitária, em colaboração com a Rede Não Cala!, formada por professoras e pesquisadoras, e em diálogo com os movimentos de estudantes organizados nos coletivos feministas.
Fruto dessas parcerias, o USP Mulheres tem atuado a partir da lógica de enfrentamento integral à violência considerando as medidas necessárias para a prevenção, proteção, assistência às vítimas e responsabilização dos envolvidos nessas situações. As atividades em andamento compreendem a revisão das normas disciplinares para contemplar o enfrentamento da violência e das discriminações com base no gênero, raça/etnia, entre outras; a realização de pesquisa sobre interações entre alunos e alunas na universidade como estratégia para dimensionar a realidade que desejamos modificar; o acompanhamento de projeto para criação de um centro de referência para atendimento de mulheres em situação de violência de gênero, a realização de cursos de capacitação para assistentes sociais e psicólogas e para membros das Comissões de Direitos Humanos; a distribuição de cartilhas e realização de campanhas e eventos, tais como o seminário mencionado.
Nos onze anos da Lei Maria da Penha foi possível contabilizar avanços muito significativos no reconhecimento dos direitos das mulheres viverem sem violência, mas ameaças e obstáculos sempre estiveram presentes e foram enfrentados com base no conhecimento científico e no respeito aos direitos humanos. Esse mesmo caminho será trilhado para enfrentar a violência nas universidades e, dessa forma, contribuir para a construção de relações de igualdade entre homens e mulheres.