Semânticas da manipulação: IA, fake news e a propagação do conservadorismo

Por Allan Alves Rodrigues, pesquisador da Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP

 20/08/2024 - Publicado há 3 meses
Allan Alves Rodrigues – Foto: Arquivo pessoal
Nos últimos vinte anos, as redes sociais transformaram profundamente a comunicação, interação e consumo de informações. Inicialmente projetadas para conectar pessoas, rapidamente se tornaram pilares de um modelo de negócios orientado por dados, impactando significativamente as dinâmicas sociais e políticas globais. Com a integração crescente da inteligência artificial, as oportunidades e desafios associados ao uso de dados em grande escala foram amplificados.

A inteligência artificial, com sua capacidade de processar grandes volumes de dados e identificar padrões complexos, intensifica as disputas de narrativas e a disseminação de desinformação, especialmente promovidas por movimentos de extrema direita e pelo novo conservadorismo. Essas tecnologias permitem personalizar conteúdos de forma eficaz, explorando vulnerabilidades cognitivas e emocionais dos usuários. Esse uso estratégico é preocupante em contextos em que ideologias conservadoras buscam apoio popular por meio de mensagens simplificadas e polarizadoras.

Para compreender melhor esse fenômeno, quatro conceitos fundamentais serão explorados: a reflexividade social e a dupla hermenêutica, conforme desenvolvida por Anthony Giddens; e a semântica social e autorreferência, pensada por Niklas Luhmann. Giddens argumenta que, na modernidade, a reflexividade social — a capacidade das sociedades de refletirem sobre si mesmas — se intensifica, especialmente através de novas tecnologias de comunicação. Isso está diretamente ligado à dupla hermenêutica, em que os conceitos das ciências sociais moldam as ações humanas, ao mesmo tempo em que as ações humanas moldam esses conceitos. Essa interação é crucial para entender como as fake news e as narrativas conservadoras ganham força em um ambiente digital altamente reflexivo.

Niklas Luhmann introduz os conceitos de semântica social e autorreferência, que são fundamentais para entender como os sistemas sociais operam. A semântica social refere-se aos significados e interpretações que circulam dentro de um sistema social, enquanto a autorreferência descreve como esses sistemas produzem e reproduzem significados com base em suas próprias estruturas, sem depender de referências externas. No contexto das redes sociais, essa autorreferência é intensificada pela inteligência artificial, que age como um catalisador na criação de novas semânticas sociais. Os algoritmos de IA, ao personalizar e filtrar conteúdos para os usuários, reforçam padrões de pensamento existentes, frequentemente ampliando e legitimando narrativas conservadoras, que são continuamente reafirmadas e disseminadas em larga escala.

O crescimento da extrema direita, tanto no Brasil quanto no mundo, está intimamente ligado ao uso eficaz das redes sociais para disseminar fake news e à capacidade de mobilização. Giuliano da Empoli, ensaísta ítalo-suíço, denomina “engenheiros do caos” os estrategistas de marketing digital, como Steve Bannon e Arthur Finkelstein, que assessoraram líderes como Donald Trump e Viktor Orbán. A nova direita utiliza esses espaços de embate narrativo para se configurar como uma proposta radical e contestatória, movimento que já ganhava força nos meios de comunicação tradicionais por meio de jornalistas e intelectuais.

A integração da inteligência artificial nas plataformas de redes sociais não apenas facilita a personalização e segmentação de mensagens, mas amplia o alcance das narrativas conservadoras. Isso representa um desafio significativo para a integridade da comunicação e a capacidade das sociedades de manter debates públicos informados e equilibrados. Portanto, é crucial desenvolver mecanismos de regulamentação e transparência para mitigar os riscos associados a essas tecnologias emergentes, construindo uma nova dinâmica de comunicação. Este ensaio busca entender por que o conservadorismo e as fake news têm ganho força, propondo que a inteligência artificial e o mercado de semânticas sociais desempenham um papel central nesse fenômeno.

Na contemporaneidade, a sociedade enfrenta uma crise sistêmica que se manifesta em múltiplas dimensões: social, política, ambiental e psíquica. Esse cenário gera uma insegurança ontológica, conforme descrito por Anthony Giddens, caracterizada pela incerteza sobre o lugar dos indivíduos no mundo moderno. Essa insegurança é exacerbada pela modernidade reflexiva, que, segundo Giddens, implica constante reavaliação das práticas sociais à luz de novas informações. Essa dinâmica desestabiliza tradições e sistemas de significado estabelecidos, levando a um estado de hiperindividualização.

No contexto dessa crise, o conservadorismo moderno e as dinâmicas de bolhas nas redes sociais oferecem uma alternativa à hiperindividualização. As redes sociais, com suas estruturas algorítmicas, criam ambientes onde comunidades baseadas em valores e crenças podem se formar, proporcionando aos indivíduos uma sensação de segurança e pertencimento. Essa lógica é explorada pela extrema direita, que, através de uma narrativa de resistência ao modelo de democracia liberal em crise, atrai seguidores desiludidos com as instituições tradicionais, percebidas como elitistas.

A extrema direita tem sido bem-sucedida em mobilizar essas dinâmicas, em parte devido ao seu ethos, que combina identidade coletiva com estratégias de marketing digital. Compreendendo as dinâmicas comerciais das plataformas digitais, esses grupos transformam a venda personalizada de conteúdos em uma venda de dinâmicas sociais e narrativas. Isso gera receita para estrategistas digitais, empresas religiosas midiáticas, centros de formação e plataformas de streaming como o Brasil Paralelo. A generalização da forma mercadoria, inerente ao capitalismo contemporâneo, é mobilizada pela direita devido à sua crença nesse modelo.

A inteligência artificial surge como uma continuação desse processo, ampliando as capacidades de personalização e segmentação de conteúdo. A IA tem o potencial de criar realidades de signos paralelas ou concorrentes à materialidade factual, moldando percepções e crenças de maneiras novas e imprevisíveis. Esta capacidade de criar narrativas alternativas mantém os usuários engajados e mobilizados, beneficiando as big techs ao gerar dados valiosos que alimentam o ciclo de personalização e monetização. No entanto, sem regulamentação adequada, o risco de manipulação e desinformação continua a crescer, exigindo uma resposta coordenada de governos, sociedade civil e das próprias empresas de tecnologia.

Em suma, a crise sistêmica da modernidade liberal, intensificada pela modernidade reflexiva, cria um terreno fértil para a ascensão do conservadorismo e da extrema direita. As redes sociais e a inteligência artificial são componentes centrais nesse processo, oferecendo novas formas de engajamento e identidade coletiva que desafiam as estruturas democráticas tradicionais. A necessidade de desenvolver mecanismos de regulamentação e transparência é urgente para mitigar os riscos associados a essas tecnologias emergentes e proteger a saúde do discurso público e a estabilidade das instituições democráticas.

Como considerações finais, observamos que o avanço das redes sociais e da inteligência artificial representa uma continuidade no modelo de negócios orientado por dados, com impactos profundos na sociedade. A ausência de regulamentação e transparência, aliada ao aumento da desinformação e à ascensão do novo conservadorismo, impõe desafios significativos à democracia e ao debate público. É crucial desenvolver políticas eficazes para mitigar esses riscos e garantir que as tecnologias emergentes sejam empregadas de maneira ética e responsável. A insegurança ontológica e a modernidade reflexiva demonstram como a busca por segurança e significado pode ser explorada por narrativas conservadoras e pela manipulação tecnológica. As inteligências artificiais, ao criarem realidades paralelas, intensificam essas dinâmicas, exigindo uma resposta coordenada de governos, sociedade civil e empresas de tecnologia para proteger os valores democráticos e a integridade do debate público.

Vivemos uma crise sistêmica abrangente que afeta aspectos sociais, políticos, ambientais e psíquicos, gerando o que Anthony Giddens descreve como insegurança ontológica. Essa insegurança é alimentada pela constante transformação e complexidade do mundo moderno, exacerbada por rápidas mudanças tecnológicas e pela globalização. Em meio a essa crise, a modernidade reflexiva, conceito desenvolvido por Ulrich Beck, intensifica a necessidade de os indivíduos serem cada vez mais autorreflexivos e autônomos. Isso leva a uma autorregulação contínua, em que as pessoas são forçadas a reavaliar constantemente suas identidades e valores, sem a âncora de significados comuns amplamente compartilhados.

Essa fragmentação de significados impacta profundamente a base central dos sistemas sociais: a comunicação, conforme analisado por Niklas Luhmann. Em um mundo onde os significados não são mais partilhados de forma homogênea, a comunicação se torna mais complexa e menos eficaz em conectar indivíduos e grupos. A falta de consenso sobre verdades e valores comuns mina a confiança nas instituições sociais e políticas, fundamentais para o funcionamento de uma democracia liberal.

A crise da democracia liberal é marcada por suas contradições internas, particularmente a incapacidade de se abrir a uma dinâmica verdadeiramente popular e inclusiva. As instituições democráticas, muitas vezes percebidas como elitistas e desconectadas das necessidades reais do povo, enfrentam crescente ceticismo e desconfiança. Esse cenário cria um terreno fértil para o surgimento de movimentos de extrema direita, que canalizam a insatisfação popular de maneira similar ao fascismo histórico. Esses movimentos exploram a insegurança ontológica e a falta de significados comuns ao oferecer narrativas simplificadas e identidades coletivas que prometem restaurar a ordem e a segurança. Eles se aproveitam das falhas da democracia liberal para se apresentarem como alternativas viáveis, muitas vezes recorrendo a retóricas populistas e autoritárias. A ascensão dessas forças políticas desafia os valores democráticos fundamentais e ameaça aprofundar ainda mais as divisões sociais.

Nesse contexto, a inteligência artificial e as redes sociais desempenham um papel crucial. Elas não apenas refletem, mas também amplificam as dinâmicas de fragmentação e polarização. As plataformas digitais, ao priorizarem o engajamento sobre a veracidade, criam bolhas informativas que reforçam crenças existentes e promovem a desinformação. A falta de regulamentação e transparência nesses sistemas tecnológicos contribui para a manipulação e o abuso, exacerbando a crise de confiança nas instituições.

Para enfrentar essa crise sistêmica, é imperativo desenvolver políticas que promovam a transparência e a responsabilidade nas tecnologias emergentes, além de fortalecer as instituições democráticas para torná-las mais inclusivas e representativas. Somente através de um esforço coordenado entre governos, sociedade civil e o setor privado será possível mitigar os riscos associados à modernidade reflexiva e à insegurança ontológica, protegendo a integridade da comunicação e os valores democráticos em um mundo cada vez mais complexo e interconectado.

A democracia não está morrendo, mas sua expressão moderna liberal revela contradições cada vez mais evidentes. Sem uma ponte de comunicação reinventada entre Estado e sociedade civil, essa lacuna será aprofundada. A solução passa por regulamentação e debate sobre as novas tecnologias, mas por um viés cidadão. Se o papel de consumidores não for substituído pelo de cidadãos inseridos nos debates e produções de conhecimento, as desinformações continuarão sendo um problema de risco sistêmico.

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