Roberto Calasso editou para leitores e o mercado editorial

Por Gutemberg Medeiros, pós-doutorando na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 06/08/2021 - Publicado há 3 anos
Gutemberg Medeiros - Foto: Atílio Avancini

Em 1962, teve início nos EUA um movimento que vem tomando o mercado editorial em mais um capítulo da globalização. A oligopolização desse segmento de mercado se caracteriza por duas vias. Ou forma grupos empresariais com uma editora guarda-chuva a liderar outras chancelas, desde a centralização de procedimentos empresariais de gestão, ou conglomerados com várias mídias com companhias de cinema, TV e até editoras.

O problema em ambas é quando os procedimentos de infraestrutura alcançam os de escolhas do que e como editar buscando ação conjunta do grupo visando apenas à dominação de fatias de mercado. Como afirma o editor argentino radicado na Espanha há mais de 50 anos, Mario Muchnik, trocam o editor por um profissional de marketing.

O escritor e editor italiano Roberto Calasso - Foto: Editora Âyiné via Estadão

Um dos grandes editores da velha ordem acabou de falecer, o florentino Roberto Calasso, um dos últimos desta tradição em médias e grandes editoras, à frente da Adelphi Edizioni. Ele não apenas publicou para os leitores de língua italiana, mas foi referência para colegas na Europa e nos EUA por revelar novos talentos ou retomar tradições e autores esquecidos.

Calasso é mais conhecido no Brasil por suas obras de refinado ensaísmo abordando temas ligados à cultura na modernidade, mitologias grega e hindu, Pierre Klossowski, Marcel Proust, Charles Baudelaire, entre outros. Porém, se destaca K (Companhia das Letras), onde o italiano implementa leitura original e densa sobre a obra de Franz Kafka. A sua especialidade em germanística também foi marcante na sua produção editorial.

Como lembrou em ensaio dedicado ao colega Jorge Herralde (fundador e presidente da barcelonesa Anagrama), foi ele quem deu impulso extraordinário à literatura da Europa central tirando do limbo autores como Nietszche, em 1963, seguindo-se Joseph Roth, Elias Canetti, Robert Walser, Hugo von Hofmannsthal, Frank Wedekind, Karl Kraus, Ludwig Wittgenstein. Além de uma das primeiras antologias de Fernando Pessoa antes do boom proporcionado pelo tradutor e acadêmico Antonio Tabucchi. Na síntese de Herralde, “um catálogo extraordinário de uma editora a priori marginal [Adelphi] que se converteu em central no panorama cultural italiano e internacional, graças ao que criou, inventou, seus próprios leitores”.

No meio editorial, o nome de Calasso confunde-se com o da Adelphi Edizioni e se localiza na tradição anterior de editores renascentistas, com vasta bagagem de leituras e estudos a escolher pessoalmente cada título ou sob recomendação de especialistas afinados com sua visão de ofício de editor. Priorizando a qualidade ao invés da rentabilidade a curto ou médio prazo. E a qualidade não impediu este editor de emplacar best-sellers como Milan Kundera, Leonardo Sciascia e Joseph Roth.

Tal tradição também é de editores que deixaram produção memorialística sobre o que é esta atividade de fundamental importância social em priorizar autores que têm o que contribuir com os debates emergentes de seu tempo e se projetam no futuro. Priorizando, entre outros aspectos, a ficção e a poesia como fundamentais formas de conhecimento. Nessa turma, estão Haven Putnam, Stanley Unwin, Afred Knopf, Kurt Wolff, Carlos Barral, Jorge Herralde, Siegfried Unseld e André Schiffrin.  Em 2020, a Ayiamé publicou seus ensaios memorialísticos A marca do editor.

Nesse livro, o primeiro bloco de textos, “Livros únicos”, retoma a trajetória da Adelphi. Fundada em Milão em junho de 1962 por Luciano Foà e Roberto Olivetti, tendo Calasso no time desde a primeira hora até assumir como diretor editorial em 1971. Adelphi é uma palavra grega que significa “irmãos, associados “e expressa a comunhão de propósitos entre os membros fundadores. O princípio que radicou essa editora desde a fundação foi o de “livro único”, mirando uma poética do limite em práxis intensa. Para tanto, cita o clássico tibetano de Milarepa e Alfred Kubin, ou seja, livros que correram o risco de sequer serem publicados. Calasso desvela ao leitor inclusive os posicionamentos estéticos da editora para emoldurar esses livros únicos, desde as concepções modernas de capa até a tipologia.

Calasso problematiza a questão da chamada biblioteca universal digitalizada pelo Google. Essa atividade em escala mundial “implica uma hostilidade contra um modo de conhecimento. O que está em jogo é justamente o mito de eliminar a figura do editor ou de qualquer atravessador entre o livro, agora digitalizado, e leitores pelo mundo. O editor não é mero atravessador, mas alguém qualificado que pesquisa, lê e peneira publicações não apenas como meio de renda”.

O que nos leva a um dos momentos talvez mais altos dessa reflexão no ensaio A edição como gênero literário, o que ele chama de a arte de publicar. Calasso percorre momentos capitais desse ofício – de Aldo Mâncio a Kurt Wolff – para estabelecer que essa tradição de quatro séculos em suma se define pela “capacidade de dar forma a uma pluralidade de livros como se fossem os capítulos de um livro”. Isso é o catálogo, é o livro que o editor deixa como legado – e aqui entra em polêmica velada com a nova ordem editorial dos oligopólios. Enquanto o editor seleciona cada título, construindo ao longo do tempo um catálogo com a sua própria marca, ou revelando autores novos e resgatando tradições esquecidas, trabalhando com o elemento da intuição – infelizmente também abolido nas pesquisas científicas a partir da década de 1970, como lamentava o físico Mário Schenberg –, os profissionais de marketing das grandes companhias buscam ao menos o ROI (sigla em inglês para return over investment, ou retorno sobre investimento) a curto prazo.

Em Cento lettere a uno sconosciuto (2003), Calasso traça a variação do catálogo como gênero literário. “O que é uma editoria senão uma longa serpente de páginas? Cada segmento dessa cobra é um livro. E se considerássemos essa série de segmentos como um único livro? Um livro que inclui múltiplos gêneros, estilos, épocas, mas no qual o progresso se faz naturalmente, sempre à espera de um novo capítulo que, a cada vez, é de outro autor. Livro perverso e polimórfico, em que se olha a poikilía, o ‘heterogêneo’, sem evitar contrastes ou contradições, mas onde até escritores inimigos desenvolvem cumplicidade sutil, que talvez tenham ignorado em vida. No fundo, esse processo peculiar, pelo qual uma série de livros pode ser lida como um único livro, já aconteceu na mente de alguém, pelo menos aquela entidade anômala por trás de cada livro em particular: o editor” (tradução nossa).

Poikilía (variegação ou matizes) é uma noção multifacetada usada pelos gregos para descrever o efeito visual produzido pela montagem de diferentes cores e materiais em determinado objeto, mas também expressa as ideias de variedade e complexidade.

A importância de ler essa tradição memorialística de editores, como a de Calasso, é vital inclusive para não se perder a noção do que é realmente um editor. Tanto que no necrológio de Calasso na imprensa chegaram a chamá-lo de “curador”. Infelizmente essa vertente não ocorreu no Brasil como na Europa e nos EUA. O mais perto disso foi o central trabalho de Jerusa Pires Ferreira na coleção Editando o Editor (Com-Arte) no curso de Editoração no CJE/ECA. Mas os princípios do ofício do editor estão presentes em pequenas chancelas de extrema qualidade, a exemplo das editoras Kinoruss (Neide Jallageas), Kalinka (Moissei e Daniela Mountian) e Patuá (Eduardo Lacerda).


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