No oceano sustentável o mar e a pesca devem estar para peixe

Por June Ferraz Dias, professora do Instituto Oceanográfico da USP, e Tássia Biazon, pesquisadora da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano

 08/11/2021 - Publicado há 3 anos
June Ferraz Dias – Foto: Arquivo pessoal
Tássia Biazon – Foto: Arquivo pessoal
Atum, salmão, tilápia, camarão… As opções de pescado em um restaurante são variadas. Mas como esses diferentes alimentos chegam até a nossa mesa? De onde eles vêm? Que impactos a produção de pescado causa? O pescado, que compreende os peixes marinhos, de águas interiores e os frutos do mar, é a principal fonte de proteína animal no mundo, contribuindo com a segurança alimentar de uma população rumo aos dez bilhões. Contudo, a capacidade do oceano em suprir tais demandas está cada vez mais comprometida, em especial devido à sobrepesca e à poluição.

Elaborado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o documento “O estado mundial da pesca e da aquicultura” revela a importância do oceano para alimentar o planeta. Dados atuais mostram que só em 2018, 179 milhões de toneladas de pescado foram produzidas mundialmente, com valor estimado em US$ 401 bilhões.

Nesse período, as principais espécies marinhas consumidas foram a anchoveta peruana (Engraulis ringens) e o salmão do Atlântico (Salmo salar), além de espécies de bagres, sardinhas, tilápias e atuns. Enquanto a anchoveta peruana é capturada na natureza, o salmão do Atlântico vem da aquicultura, que consiste na produção de organismos aquáticos em cativeiro. Do total de pescado produzido em 2018, segundo a FAO, 82,1 milhões são da aquicultura, que aumentou 527% em relação à década de 1990. Já a pesca apresentou 96,4 milhões de toneladas, com aumento de apenas 7% no mesmo período.

Esses números nos trazem um alerta. O esforço de pesca vem aumentando – número de pescadores, quantidade de barcos, horas em mar, petrechos de pesca mais eficientes etc. –, mas a produção pesqueira não. Na verdade, houve uma redução de 24,2% dos estoques pesqueiros capturados em níveis biologicamente sustentáveis. Um estoque pesqueiro é definido como um grupo de organismos da mesma espécie, que compartilham características como habitat e taxas de crescimento e de mortalidade. Contudo, estoques que não são manejados ou são manejados inadequadamente não estão se recuperando. Além disso, capturas não reportadas, subnotificadas e ilegais dificultam a avaliação e a gestão da atividade.

Os relatórios da FAO apontam que, há uma década, pelo menos 30% dos estoques globais estão comercialmente extintos, 60% no limite da exploração sustentável e só 10% se mantêm resilientes, ou seja, capazes de se recuperarem. Para ser mais sustentável, o manejo da pesca deve considerar diferentes características biológicas das espécies, como o período reprodutivo, a expectativa de vida, a taxa de crescimento e as condições ambientais onde vivem.

No Brasil, temos um cenário atual sombrio em que não há dados oficiais de estatística pesqueira, que trariam informações sobre o esforço de pesca e os tipos e quantidade de pescado descarregado, por exemplo. Praticada ao longo de 8.500 km de costa, bem como em diversos rios, estuários, lagos e lagoas, a atividade pesqueira brasileira é regida pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca (Lei 11.959/2009). No modelo de crescimento produtivo, adotado pelo país, a política pesqueira tem favorecido a pesca extrativa industrial e a aquicultura. Embora a pesca artesanal tenha tido melhorias, elas não foram suficientes para reduzir sua vulnerabilidade socioambiental.

Isso nos leva a refletir que nem tudo que cai na rede é “peixe” e que a pesca necessita passar por uma transformação para ser mais sustentável. E nós, consumidores, temos um papel importante nesse caminho. Precisamos ser conscientes para fazermos escolhas sustentáveis.

Um conhecimento necessário é sobre os impactos da pesca. Em muitas pescarias, além das espécies-alvo, os petrechos de pesca acabam capturando espécies não-alvo, conhecidas como fauna acompanhante ou “bycatch”. Esses organismos podem ser comercializados como subprodutos ou descartados no mar. O que determina o descarte é seu valor comercial ou a proibição de seu descarregamento. Como exemplo, a pesca do camarão produz entre 5 e 10 kg de bycatch para cada quilograma de camarão capturado.

O consumidor também deve saber quais espécies estão ameaçadas para evitar que sejam comercializadas. Por exemplo, das aproximadamente 170 espécies de elasmobrânquios (tubarões/cações, raias e quimeras) da costa do Brasil, 32,4% estão em alguma categoria de ameaça de extinção e duas estão regionalmente extintas. Além disso, muitos desses organismos possuem características que os tornam mais vulneráveis (ciclo de vida longo, idade avançada de reprodução e pequeno número de crias). Portanto, ao incluirmos carne de cação na dieta, reconhecidos predadores de topo na teia trófica marinha, estamos consumindo uma espécie chave para o ambiente cuja ausência altera significativamente a composição de espécies de presas e o funcionamento dos ecossistemas marinhos.

Informações científicas sobre as espécies consumidas também são muito relevantes. Os atuns e bonitos representam mais de uma espécie, vivem na coluna de água e são nadadores velocistas que vêm sofrendo os efeitos da desoxigenação da água do mar provocada pela elevação da temperatura da água do mar. O salmão chileno, a tilápia e o camarão cultivados no Brasil são espécies exóticas, originárias de outro país – fator que pode causar impactos ecológicos e conflitos sociais com pescadores artesanais, como no caso do cultivo de camarão no nordeste brasileiro.

Assim, saber escolher o que se come dá um papel de protagonista da sustentabilidade a cada um de nós, consumidores. Nossas escolhas têm impacto na saúde do oceano! Quando o consumidor opta por produtos sustentáveis ele age na cadeia produtiva, levando os fornecedores a buscar pescado ambientalmente responsável. Iniciativas como o “Seafood Watch” oferecem três opções entre pescados, classificando as espécies em melhores escolhas, boas alternativas e espécies a se evitar agora, baseadas no manejo adequado da pescaria, danos ao habitat, estado de explotação e condições adequadas de cultivo. Infelizmente essa iniciativa ainda não está completamente disponível, mas grupos de pesquisadores e empresários vêm trabalhando para sua implementação.

Com a ciência e a atitude da sociedade é possível transformar a pesca e o consumo mais sustentáveis, de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Para tanto, iniciativas governamentais e corporativas também são necessárias, como diminuir a sobrepesca, limitar o bycatch, preservar o habitat, combater a poluição, eliminar a pesca ilegal, prevenir o escape de espécies cultivadas para o ambiente natural, mitigar as mudanças climáticas de origem antrópica, rastrear o pescado e praticar o manejo pesqueiro.

Para termos ciência, necessitamos de um programa nacional de estatística pesqueira e estratégias de rastreamento do pescado, por exemplo. O levantamento rigoroso das espécies descarregadas e a avaliação de quantidade e peso capturado permite conhecer a capacidade produtiva da pesca extrativa, da mesma forma como é feita em outros setores, como na agricultura. Para termos atitude, necessitamos repensar nosso papel enquanto cidadãos e agentes de transformação da realidade ambiental, social e econômica que dialoga com o uso sustentável dos recursos do mar.


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