Brigadistas florestais são atores-chave para o manejo integrado do fogo

Por Kamila de Almeida Piai e Elizeu Chiodi Pereira, pesquisadores do grupo Expossoma e Saúde do Trabalhador (eXsat), Thiago da Costa Dias, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e Kelly Polido Kaneshiro Olympio, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e coordenadora do eXsat

 12/09/2024 - Publicado há 3 meses     Atualizado: 19/09/2024 às 17:05
Kamila de Almeida Piai – Foto: Arquivo pessoal
Elizeu Chiodi Pereira – Foto: Arquivo pessoal
Thiago da Costa Dias – Foto: Arquivo pessoal
Kelly Polido Kaneshiro Olympio – Foto: Arquivo pessoal
Nos últimos anos, com a intensificação das mudanças do clima e extremos climáticos causados por fenômenos como o El Niño, temos observado incêndios florestais devastadores em todo o mundo, como, por exemplo, nos Estados Unidos, Austrália, Canadá, Grécia, Portugal, Rússia, Bolívia, Colômbia, Paraguai e Peru. O Brasil também figura entre esses países que vêm registrando altos índices de ocorrências de incêndios, com grandes extensões de ecossistemas sensíveis ou não ao fogo sendo degradadas todos os anos.

No Brasil, o fogo atinge principalmente a Amazônia e o Cerrado. Segundo levantamento realizado pelo projeto Mapbiomas, entre 1985 e 2022, quase 22% do território brasileiro queimou. Desse total, mais de 68% correspondiam a vegetação nativa, sendo o bioma Amazônia o mais afetado, seguido pelo Cerrado.

Segundo o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), estes incêndios são uma ameaça não só para a biodiversidade, mas também para os sistemas produtivos sustentáveis dos povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia, que dependem diretamente dos territórios que ocupam para manter seus modos de vida. Os incêndios ainda são responsáveis por emitirem poluentes para a atmosfera, que afetam a saúde da população exposta, ocasionando doenças respiratórias e cardiovasculares.

Em decorrência da inalação da fumaça proveniente de queimas, estimam-se cerca de três mil mortes prematuras anualmente no Brasil, além de um aumento em 27% nas internações em decorrência de doenças respiratórias, somente na região Norte do País. De acordo com o Instituto Ambiental de Pesquisas da Amazônia, em 2019, os incêndios na Amazônia foram responsáveis por gerar mais de duas mil internações, com 21% desse total correspondendo a crianças com menos de um ano de idade e 50% a pessoas com mais de 60 anos.

Os problemas podem ser ainda mais graves a depender da intensidade e frequência da exposição, entre outros fatores. A Agência Internacional de Pesquisas sobre o Câncer (Iarc) classificou a exposição à poluição do ar, em 2013, como carcinogênica, devido a associação com o câncer de pulmão.

O fogo é um fenômeno natural em ecossistemas dependentes dele, como o Cerrado e outras savanas, sendo sua ocorrência natural comum há milhões de anos e essencial para a manutenção de habitats e de espécies adaptadas ao regime do fogo neste tipo de vegetação. No entanto, as florestas tropicais úmidas apresentam alta sensibilidade ao fogo e, nestes ecossistemas, os impactos para a biodiversidade podem ser catastróficos.

Embora a estrutura da vegetação desses ecossistemas tenha tendência a inibir a ignição, bem como a propagação do fogo, as atividades humanas, principalmente através das mudanças climáticas, têm alterado o regime de fogo, tornando as florestas tropicais mais propensas a ocorrência de incêndios. Ainda, a medida em que o desmatamento avança, o material combustível é modificado, facilitando a ignição e a propagação do fogo. A cada novo incêndio em determinada região, a vegetação se torna cada vez mais e mais propensa a novos episódios.

Sabemos que as mudanças climáticas somadas as ações de desmatamento potencializam a ocorrência de incêndios florestais, mas é impactante ver de perto grandes áreas que já foram mata da Floresta Amazônica serem substituídas por plantações de milho e soja, ao longo da BR-163. Em visita de atividades de reconhecimento de campo para o meu projeto de doutorado, realizadas em março e abril de 2024, na região de Santarém, no Pará, também pude perceber o grande impacto que a floresta possui sobre a umidade do ar e equilíbrio do clima. Quanto mais perto da floresta, mais intensamente úmido fica, na maior parte dos dias chove à tarde, durante o inverno. Preservar a floresta é fundamental para o equilíbrio do clima e manutenção da biodiversidade e sociobiodiversidade.

No Brasil, a Política do Fogo Zero, instituída até o final do século passado, foi responsável por aumentar em grandes quantidades o combustível vegetal em território nacional, provando-se ineficiente como estratégia para a prevenção e combate a incêndios. Isso fez com que o Governo Federal passasse a considerar outra abordagem para lidar com o fogo, levando em conta a sensibilidade de ecossistemas à ocorrência de incêndios, os fatores culturais atrelados ao uso do fogo e técnicas de prevenção visando a redução do combustível acumulado. Essa abordagem é denominada Manejo Integrado do Fogo (MIF), que integra a experiência e o conhecimento do uso tradicional do fogo por povos originários, além de pesquisadores e de gestores envolvidos no combate e prevenção dos incêndios, principalmente, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama/Prevfogo), ligados ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. A denominação Manejo Integrado do Fogo (MIF) passou a ser utilizada pela The Nature Conservancy, com a Iniciativa Global para o Manejo do Fogo, em 2006.

No Brasil, o MIF começou a ser implementado em 2014, por iniciativa do ICMBio nas unidades de conservação federais e do Ibama/Prevfogo em territórios indígenas e quilombolas. Recentemente, o Governo Federal instituiu a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo através da Lei Federal nº 14.944, de 31 de julho de 2024. Os objetivos da Política Nacional do MIF são “disciplinar e promover a articulação interinstitucional relativa ao MIF, reduzir a incidência e os danos dos incêndios florestais no território nacional e restaurar o papel ecológico e cultural do fogo”.

O reconhecimento e a valorização dos saberes e das práticas tradicionais por populações do campo, da floresta e das águas também são priorizados pela Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta, instituída pela Portaria n° 2.311/2014. Há mais de 11 mil anos o fogo é utilizado pelos povos originários do Brasil e o seu uso controlado vem sendo aprimorado desde então. Muitos países implementaram leis que proíbem o uso tradicional do fogo, mas estas leis não geram engajamento da população local, que muitas vezes precisam do fogo para manter seus modos de vida; e não consideram o papel ecológico do fogo em vegetação que é dependente dele, como o Cerrado e a outras savanas, o que pode alterar a disponibilidade do material combustível a médio prazo e gerar incêndios de grandes proporções.

O MIF atua na conservação da biodiversidade e da sociobiodiversidade, ou seja, dos ecossistemas naturais e sistemas produtivos e modos de vida tradicionais sustentáveis. Os princípios norteadores do MIF são o manejo do fogo, com ações de prevenção e combate; respeito ao conhecimento e práticas do uso cultural do fogo por povos indígenas e tradicionais para manter seus modos de vida; e o conhecimento sobre a ecologia do fogo nos diferentes ecossistemas.

Para a implantação do MIF em um território, é necessário realizar ações sistemáticas de mapeamento e registo dos incêndios; realizar ações de educação ambiental e recuperação de áreas degradadas, além de integrar o conhecimento técnico ao conhecimento prático tradicional da região, já que é com a participação de toda a comunidade local que se pode construir um plano de MIF que atenda às necessidades e interesses de todos que ocupam o território, de forma a conservar a biodiversidade e a sociobiodiversidade.

Para o MIF, ainda se faz necessário formar brigadas e capacitar os brigadistas florestais, bem como realizar a aquisição de ferramentas e equipamentos adequados; realizar ações de prevenção com uso de técnicas como aceiro, queima controlada de roçados e queima prescrita em áreas de risco, além de combater incêndios.

As brigadas florestais são compostas por trabalhadores contratados e voluntários. Os brigadistas florestais voluntários exercem tal atividade por forte sentimento de pertencimento e de proteção do território que ocupam. Segundo o mapeamento realizado pelo Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), o número de brigadas voluntárias no País representa um contingente muito expressivo, são cerca de 198 brigadas voluntárias e comunitárias mapeadas, o que representa aproximadamente 50% do total de brigadas no País.

Neste sentido, o IPÊ, em parceria com o ICMBio, Ibama/Prevfogo, Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima, financiado pela cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ), no primeiro semestre de 2024 realizou uma série de oficinas na região amazônica do Baixo Tapajós, no estado do Pará, com o objetivo de apoiar a construção da Estratégia Federal de Voluntariado no MIF. As oficinas tiveram o objetivo de realizar o diagnóstico sobre a região do Baixo Tapajós para o desenvolvimento das atividades do voluntariado no MIF; realizar cursos de Sistema de Comando de Incidentes (SCI) para fortalecer a eficácia no gerenciamento e comunicação entre as instituições; realizar a criação do projeto político pedagógico (PPP) da Estratégia Federal de Voluntariado no MIF, para orientar a criação das diretrizes de capacitação do MIF nos diferentes biomas do País; e fortalecer a conscientização da sociedade civil sobre a importância fundamental da atuação das brigadas voluntárias e comunitárias na agenda.

Os brigadistas florestais são trabalhadores e trabalhadoras muito necessários no MIF, desempenhando papel essencial no combate a incêndios florestais, assegurando uma resposta rápida e eficaz que minimiza os danos ao meio ambiente. Utilizando técnicas especializadas, como a construção de aceiros, o uso de abafadores, assopradores e bombas costais com água, esses profissionais possuem um olhar treinado e diferenciado para combater o fogo. Ao proteger a biodiversidade e preservar espécies da fauna e da flora, sem recorrer a produtos químicos tóxicos, como os retardantes de chama, eles também preservam o modo de vida dos povos indígenas e das comunidades extrativistas tradicionais da Amazônia, que dependem diretamente dos territórios que ocupam.

A atividade de brigadista florestal, apesar de sua importância para a sustentabilidade e o bem-estar das comunidades e ecossistemas, ainda não é regulamentada. A regulamentação dessa profissão é urgente e essencial para garantir maior segurança a estas pessoas, as quais desempenham um papel vital na proteção dos nossos ecossistemas e na prevenção de catástrofes ambientais. Além disso, é fundamental proporcionar maior proteção à saúde desses trabalhadores e trabalhadoras, que estão expostos a inúmeros riscos, como inalação de fumaça, exaustão, altas temperaturas, acidentes com animais peçonhentos, quedas e queimaduras, entre outros.

Ao reconhecer formalmente a profissão de brigadista florestal e estabelecer normas de segurança e saúde ocupacional, poderemos oferecer melhores condições de trabalho e proteção para esses trabalhadores e trabalhadoras. Assim, garantimos não apenas a eficácia no combate aos incêndios florestais, mas também a preservação da biodiversidade e a manutenção dos modos de vida das comunidades indígenas e tradicionais. A urgência dessa regulamentação reflete a necessidade de valorizar e proteger aqueles que se dedicam a salvaguardar nosso patrimônio natural.

O grupo de pesquisa eXsat (Expossoma e Saúde do Trabalhador), coordenado pela professora Kelly Polido Kaneshiro Olympio, do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP, tem conduzido pesquisas voltadas ao projeto de dois doutorandos do grupo, Kamila de Almeida Piai e Elizeu Chiodi Pereira, e uma pós-doutoranda, Alda Neis Miranda. O projeto está em desenvolvimento, dentre outras áreas no estado do Pará, na região do Baixo do Tapajós, e objetiva estimar os possíveis impactos da exposição ocupacional a incêndios florestais na saúde dos brigadistas florestais. Nos trabalhos, serão realizadas avaliações de biomarcadores de exposição, efeito e estresse oxidativo de 250 participantes do grupo exposto (brigadistas florestais formais, voluntários e comunitários) e 250 do grupo de referência. Também serão realizadas análises do perfil metabólico, proteico e de sequenciamento genético dos participantes, além de análises da composição química da fumaça, em material particulado 2.5 µm, e em cinzas dos incêndios florestais para avaliação da toxicidade e fatores de risco para saúde humana.

O trabalho conta com parcerias nacionais, como o Instituto Evandro Chagas, a Universidade Federal do Pará, a Universidade Federal do Oeste do Pará, e com parceria internacional, com o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, em Portugal. Há também o apoio de instituições ligadas ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, como o ICMBio, o Ibama, por meio do PrevFogo (Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais), além do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde (CGSAT/DSAST/SVS) também apoia oficialmente a execução do projeto. O aporte financeiro é realizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processos Fapesp nº 2023/04212-4, 2023/04803-2, 2023/04877-6 e 2024/01326-1).

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