Bela Vista, o bairro paulistano que era local de luta contra a censura

Por Álvaro Gullo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 Publicado: 27/06/2024
Álvaro de Aquino e Silva Gullo – Foto: Renan Braz/SCS-FFLCH

 

 

O bairro da Bela Vista também é conhecido como Bexiga. Isso porque, no século 18, quando essa região era um varjão de uma bacia hidrográfica composta pelos córregos da Saracura Grande, Saracura Pequena e do Anhangabaú – hoje canalizados –, ocorreu uma epidemia de varíola, doença que provoca pequenas bolinhas na pele conhecidas como bixiguinhas. Daí passou a ser conhecido como o local onde dá bixiga, e o nome Bexiga foi adotado pelos primeiros bondes abertos que passaram a trafegar pelo bairro no século 19.

Quando a Avenida Paulista foi tomando forma e surgiu lá no mirante o famoso Trianon, voltado para o vale onde seria mais tarde a Avenida Nove de Julho, mostrando uma bela vista, o bairro passou a ser chamado de Bela Vista.

O bairro foi considerado um ponto cultural da cidade a partir da inauguração do Cine Teatro Paramount em 1928, com o primeiro filme falado da história do cinema, A última ordem, de Josef Von Sternberg. Ali eram sempre realizados os concorridos bailes do Carnaval, em competição com o Cine Odeon que ficava na Rua da Consolação, com três salas, azul, vermelha e verde. Logo veio o Cine Rex, que ficava na Rua Rui Barbosa, com sessões matinê de três filmes e repetição na sessão noturna. Era um ponto de encontro do bairro acompanhado pelo Cine Esperia, que ficava na Rua Conselheiro Ramalho. O Rex mais tarde virou Teatro Aquarius, e o Esperia virou Teatro Bela Vista.

A grande transformação do bairro ocorreu com a inauguração do TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia criado por Franco Zampari. Ali havia funcionado um salão de danças que se chamava Gabriele Danunzio. Com o TBC vieram atores como Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Leonardo Vilar, Cleide Yacones, Natália Thimberg e outros que depois foram para o Rio de Janeiro e criaram o Teatro dos Sete.

Muito movimento de carros pelo bairro que vinham de todo o Brasil. A primeira peça de teatro que vi foi Mary Stewart, com Cacilda Becker e Cleide Yacones, e mais tarde o grande sucesso que foi a encenação de O Panorama Visto da Ponte. Num casarão ao lado funcionava a sede da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e algumas filmagens eram realizadas pelo bairro. Tônia Carrero e Anselmo Duarte gravaram uma cena do filme Tico Tico no Fubá nas escadarias do casarão, com grande parte da população vendo do outro lado da rua. Mazzaropi gravou cenas do filme Sai da Frente num cortição que ficava na Rua Maria José. Tudo isso era visto pela população do bairro.

Com o tempo os cinemas foram dando lugar aos teatros. O Cine Monark virou Teatro Brigadeiro, onde Marília Pera apresentou um musical baseado na vida de Carmen Miranda. O Cine Arlequim virou Teatro Bandeirantes, e Elis Regina apresentou lá um musical por vários meses. Logo veio o Teatro Maria Della Costa, que apresentou a peça de Artur Miller sobre a vida de Marilyn Monroe denominada Depois da Queda, com Maria Della Costa e Tarcísio Meira. O Teatro Bela Vista surgiu depois da reforma do Cine Esperia e estreou com a peça Hamlet, de Shakspeare, pela Companhia Nydia Licia – Sergio Cardoso. Logo depois veio a Companhia Tonia Celi Autran, com uma peça de Pirandello denominada Seis Personagens à Procura de um Autor. Tivemos nessa época o Teatro Oficina na Rua Jaceguai, com o grupo formado por José Celso Martinez Correia, constituído por atores como Eugênio Kusnet, Renato Borghi, Ety Fraser, Ronaldo Daniel, Myrian Mehler, Itala Nandi.

Nessa época, Ruth Escobar construiu o Teatro Ruth Escobar na Rua dos Ingleses e, dentre outros espetáculos, apresentou o fascinante O Balcão, texto de um autor que criticava o franquismo na Espanha, numa montagem na vertical em que os atores desciam e subiam num vão de três andares do teatro presos em fios controlados por um comandante superior, alusão à ditadura instalada no poder. Como estávamos na época da ditadura e a censura controlava tudo, foi considerada subversiva. Ruth Escobar foi chamada para prestar esclarecimentos no DOI-Codi e lá ficou dois dias, sendo liberada pelo presidente da Ultragás, todo-poderoso que a conhecia muito bem. Cacilda Becker e Walmor Chagas, que se apresentavam no Teatro Cacilda Becker, situado na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, onde ficava no prédio da Sede da Federação Paulista de Futebol, também tiveram sua peça, As Cadeiras, do autor Ionesco, censurada por criticar a alternância do poder pelas mudanças nas cadeiras.

Era a época da ditadura, que censurava tudo. Ruth Escobar começou a fazer várias reuniões em seu teatro, até que organizou uma passeata de protesto contra a censura. Toda a classe teatral se reuniu no Teatro Ruth Escobar e de lá saiu em passeata pela Rua dos Ingleses, descendo a Avenida Brigadeiro Luís Antônio em direção ao Teatro Municipal. Mas, chegando próximo ao Viaduto do Chá, foi dispersada pela Polícia Militar usando cavalaria e cassetetes contra a multidão.

Nessa ocasião, o bairro da Bela Vista era o local de luta contra a censura imposta pela ditadura, que cortava cenas das peças de teatro, prendia quem ousava desafiar as autoridades e sufocava a livre expressão e a crítica que caracteriza a arte cênica.

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