Ameaçadas de morte, ou os casos Isa Penna, Marcia Barbosa, Mariana Ferrer e Carolina Soares

Por Eva Alterman Blay, Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 10/02/2022 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 10/06/2022 às 16:29
Eva Alterman Blay – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

Em 17 de dezembro 2020 o deputado estadual Fernando Cury foi flagrado pelas câmaras da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo apalpando a deputada estadual Isa Penna quando esta se dirigia à mesa do presidente da casa. Isa reagiu imediatamente. Em consequência instalou-se um procedimento investigativo contra o deputado. Depois de muitas tentativas de ignorar a agressão sexual, o citado deputado foi expulso por seu partido (Cidadania). O Ministério Público ofereceu denúncia por importunação sexual, mas curiosamente ele só foi notificado em outubro, dez meses depois da violência, pois: “Por quatro vezes, em maio e junho, o Tribunal de Justiça (TJ) não conseguiu encontrá-lo, embora Cury tivesse participado inclusive de eventos políticos, incluindo um com o governador João Doria (PSDB) no Palácio dos Bandeirantes“. Nos últimos dias, Isa denunciou à Assembleia que está sofrendo ameaças de morte! Passado mais de um ano ele não foi julgado, não perdeu seu mandato e teve apenas uma suspensão de 180 dias.

Esse modo protelatório que ocorre na principal capital do Brasil revela como todas as violências contra a mulher enfrentam obstáculos machistas e misóginos. Não por acaso levou 15 anos para que o assassino de Marcia Barbosa fosse condenado, e isso só ocorreu quando o caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Durante angustiantes 15 anos a família de Marcia procurou a justiça. A jovem, uma estudante afrodescendente, de família modesta, fora convidada a um passeio pelo deputado estadual Aércio Pereira de Lima. Certamente não imaginava que acabaria estrangulada num motel. A imunidade parlamentar, que vigorava à época, protelou o julgamento do assassino e de seus asseclas. Mesmo depois de perder as eleições, passou a ter um cargo político e conseguiu permanecer livre. Os dados do processo revelam vários artifícios da defesa os quais acusavam a vítima de ser prostituta, viciada em drogas, e até mesmo suicida. Como se esses justificassem matar uma mulher. Por outro lado, a defesa do deputado alegava que ele era um “pai de família” que “se deixou levar pelos encantos de uma jovem” e que, em um momento de raiva, ele teria “cometido um erro”. Usava-se o recorrente artifício de julgar e condenar a vítima como culpada. Na cultura brasileira resistem valores e estereótipos conservadores que a priori condenam a mulher.

Marcia Barbosa só teve seus direitos corretamente analisados quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) demonstrou o uso de estereótipos sobre a condição de gênero ocultando o crime. Mostrou como os estereótipos que desqualificam a condição de gênero “distorcem as percepções e levam a decisões baseadas em crenças e mitos preconcebidos, ao invés de fatos” e levam à vitimização dos denunciantes. A justiça chegou muito tarde: Aércio Pereira de Lima já tinha morrido quando condenado.

Como a priori são sempre culpadas, não se deve acreditar nas palavras de uma mulher. Principalmente se for negra e pobre. Não por acaso são diariamente mortas impunemente. Os estereótipos que as desqualificam tomam formas diferentes e subsistem: são mortas por serem dançarinas de funk, por usarem saias curtas, por engravidarem, por abortarem, por queimarem a comida do jantar, por resistirem à violência física, por quererem trabalhar, por quererem se separar. Os estereótipos persistem e são usados por juízes, advogados, promotores e divulgados pela mídia. Conseguimos mudar algumas leis, mas esbarramos numa mentalidade machista e necro-femicida.

Lendo hoje as inacreditáveis justificativas da defesa do assassino de Marcia Barbosa, me acodem as palavras pronunciadas há poucos meses quando a jovem Mariana Ferrer foi desacreditada num julgamento em que ela denunciava ter sido estuprada. Depois de ser dopada e estuprada, Mariana foi levada para sua casa por uma amiga. Sua mãe cuidou da filha, corretamente guardou a roupa que ela usara e que tinha todos os elementos físicos ligados ao acusado. Mas o “estuprador” contava com dois fatores fundamentais: um agressivo defensor que procurou desqualificar a vítima e que a apresentava como uma mulher jovem, bonita, que trabalhava como hostess. Mais uma vez a roupa, a boca pintada, a exploração das fotos da jovem valeram mais do que o sêmen encontrado na roupa da jovem. As agressões verbais no julgamento foram de tal violência que acabaram resultando na Lei Mariana Ferrer, que impõe, no mínimo, um comportamento civilizado nos julgamentos.

Desde a promulgação da Lei Maria da Penha várias outras leis foram aprovadas. Elas são importantes para normatizar alguns comportamentos, mas só serão efetivas quando conseguirmos extirpar o machismo, os comportamentos conservadores, e atingirmos igualdade entre todas as pessoas independentemente da condição de gênero, classe, etnia, idade ou sexualidade dos seres humanos.

Estava prestes a concluir este texto quando recebo a notícia das agressões que membros do governo federal fazem à jovem pesquisadora Carolina Soares, que avalia a aplicação da Lei Maria da Penha. Não se trata de um acaso, o fascismo tem medo da independência das mulheres. Só isso explica como homens que ocupam cargos no governo federal – Felipe Carmona, Tercio Tomas, André Porciúncula e Gilson Machado Neto – usam suas funções públicas, remunerados com verba que pagamos todas nós, para atacar uma jovem negra, que cursa com mérito uma pós-graduação na Universidade de São Paulo! Mata-se impunemente um imigrante, tenta-se ridicularizar uma pesquisadora, usa-se a internet (Twitter) para ameaçá-la e tirar dela a tranquilidade para prosseguir na tão difícil carreira acadêmica. Nós, que já travamos todas essas lutas, vamos continuar denunciando e apoiando Isas, Marianas, Carolinas… Elas não estão sós!


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