Essa questão ganha relevância à luz da trajetória de figuras influentes como Geoffrey Hinton, que transitou da academia para uma carreira próspera no setor privado. Em março de 2021, a revista Wired trouxe uma reportagem mostrando como Hinton, proeminente pesquisador sobre redes neurais artificiais e deep learning da Universidade de Toronto, vendeu uma startup, fruto de suas pesquisas, num leilão disputadíssimo entre gigantes como Microsoft, Baidu e outras empresas. A Google arrematou por 44 milhões de dólares a promessa incipiente do que viria a resultar nos atuais modelos de linguagem de larga escala como o ChatGPT.
Na mesma direção, o artigo “Analyzing the impact of companies on AI research based on publications”, dos pesquisadores Michael Färber e Lazaros Tampakis, do Karlsruhe Institute of Technology, Alemanha, publicado em novembro de 2023 na revista Scientometrics, apresenta uma minuciosa análise quantitativa das publicações científicas relacionadas à IA e mostram que os artigos mais citados não foram escritos exclusivamente por pesquisadores das universidades, mas sim os que são assinados em parceria com empresas privadas de tecnologias. A origem desse desequilíbrio pode estar no fato de as universidades perderem na retenção de talentos, na falta de infraestrutura e capacidade de processamento e na custódia e acesso aos dados.
As principais conclusões incluem: publicações envolvendo empresas têm um impacto de citação mais alto; as contagens de citação de artigos de pesquisa em IA com autoria corporativa na última década são significativamente mais altas do que as anteriores; e os artigos de cooperação têm impacto de citação comparável ou ligeiramente mais alto do que os artigos puramente corporativos. O texto explora explicações potenciais para essas observações, a saber: o acesso da indústria aos principais talentos acadêmicos na pesquisa sobre machine learning, recursos computacionais superiores e ativos exclusivos de dados, já que estas empresas são as mesmas que administram plataformas de redes sociais e motores de busca. O texto termina com recomendações para academia, indústria e formuladores de políticas, abordando preocupações e sugerindo ações para garantir uma abordagem equilibrada e ética na pesquisa em IA.
À medida que a IA se estabelece como uma das tecnologias mais impactantes de nosso tempo, surge uma indagação crucial: será que a academia ainda pode manter sua posição de liderança no desenvolvimento e pesquisa em IA, em comparação com as empresas privadas na sociedade contemporânea? Recursos importam. Sem financiamento, infraestrutura e talento adequados, a pesquisa acadêmica em IA corre o risco de ficar para trás.
Empresas com seus recursos financeiros, plataformas expansivas e acesso aos principais talentos estão modelando a narrativa da IA. As implicações são duplas: um comprometimento potencial na qualidade da pesquisa e uma dinâmica de poder que favorecerá ao setor corporativo. A IA tem sede de dados, e as corporações possuem vastos reservatórios deles, coletados a partir da atividade dos usuários e operações internas. As universidades, por outro lado, enfrentam obstáculos na aquisição de conjuntos de dados semelhantes. Esse desequilíbrio restringe a pesquisa acadêmica, limitando o escopo e a profundidade de suas investigações em comparação com seus pares corporativos, ricos nesta matéria-prima.
Há que se considerar ainda o silenciamento do dissenso. A abertura e a crítica são pilares do discurso acadêmico, mas a pesquisa privada pode ser envolta em sigilo. À medida que as corporações controlam mais pesquisas em IA, surgem preocupações sobre um efeito inibidor na análise crítica e no debate. Sem o holofote acadêmico, iluminando possíveis armadilhas e dilemas éticos, o desenvolvimento irrestrito da IA pode apresentar riscos imprevistos – ou mesmo calculados a partir de um raciocínio deletério ao bem comum.
Movida exclusivamente pelo lucro, a pesquisa corporativa em IA costuma priorizar aplicações imediatas em detrimento da compreensão fundamental. Isso leva a avanços em áreas específicas, como algoritmos de marketing ou reconhecimento facial, mas negligencia questões teóricas mais amplas sobre a natureza da inteligência e suas implicações éticas. As universidades, com seu foco em pesquisa de longo prazo e investigação crítica, podem equilibrar essa abordagem míope e garantir uma compreensão mais holística da IA.
No entanto, enquanto as corporações podem acumular recursos, a academia tem sua própria arma: plataformas de código aberto. Ao compartilhar pesquisas e códigos abertamente, as universidades incentivam a colaboração global e democratizam o acesso ao conhecimento. Isso fomenta um ecossistema de pesquisa diversificado e vibrante, desafiando os monopólios corporativos e garantindo que os benefícios da IA não sejam limitados a poucos seletos.
Se a universidade é o ambiente responsável pelo desenvolvimento tecnológico que nos levou a este momento, não está tão claro se será ainda capaz de permanecer no controle. É curioso que o mesmo Hinton que representa este deslocamento da academia para o setor privado hoje se declare tremendamente preocupado com a possibilidade de uma superinteligência agressiva, como fica evidente em entrevista para a revista New Yorker, em novembro de 2023. Talvez o maior risco não esteja no potencial das máquinas em si, mas na maneira como elas são controladas, e por quem.
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