A refração do arquivo, a marca material da narração

Por Lucas Sloboda, doutorando do Instituto de Psicologia da USP

 Publicado: 25/06/2024
Lucas Sloboda – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Inscrito em uma cerâmica ou em um livro sagrado, o que chamamos de arquivo é, antes de tudo, um acontecimento, seja ele grande ou pequeno, mas suficiente para se tornar marca material em uma narração. Enganam-se, todavia, aqueles que acreditam que o acontecimento reside unicamente na exterioridade de seu relato. Como nos lembra Arlette Farge em O sabor do Arquivo: “Nessa relação estreita entre a palavra dita e a vontade de criar o verossímil se instaura o acontecimento”.

No arquivo, o acontecimento cria-se na interioridade de sua microfísica, feita tanto de palavras como de silêncios. Estes, especialmente, serão os interstícios que mais poderão dizer, pois, dizendo apenas aquilo que habita o espaço verossímil aos enunciados passíveis de constituírem o arquivo, o silêncio diante do real é estrategicamente tecido. Não por acaso, Trouillot intitula seu livro como Silenciando o passado: poder e a produção da História: frente aos discursos correntes postulados como verossímeis acerca do processo histórico de Revolução Haitiana, o autor encontrará em seus silenciamentos os caminhos pelos quais o poder operacionalizou o que poderia ser digno de configurar um acontecimento histórico e, por sua vez, seu registro de verdade fixado nos arquivos. Nesse sentido, afirma Foucault: “A história torna-se história daquilo que os homens chamaram as verdades e de suas lutas em torno dessas verdades”.

O arquivo constitui-se, portanto, como um diapasão histórico, a redoma de um feixe de luz que destaca singularidades em forma de acontecimentos. No entanto, tais singularidades não remontam, tão somente, a grandes eventos históricos. Nós mesmos somos matéria viva dos arquivos, aprisionados pelo poder de verdade que enquadra os tempos históricos com certa forma de racionalidade, com certas estratégias de governamentalidade e de condução das condutas dos indivíduos. Afinal, o arquivo é tanto responsável por fazer dizer quanto por refratar o que pode ser dito sobre o real e seus seres semoventes no tempo histórico ao qual pertencem. Não registra, portanto, a totalidade dos fenômenos observáveis, mas o conjunto de práticas que os elegeram como objetos de descrição e de formação de saberes.

Não existe arquivo fora das relações de poder, pois os objetos que ele ilumina em seus registros tornam-se inteligíveis pelos focos estratégicos de luz que posiciona sobre eles. Os enunciados que porta, engendrados pela verossimilhança que o poder lhes submeteu, serão responsáveis por criar, burilar e legitimar objetos sociais, normas jurídicas, espaços legítimos de transgressão ou punição, subjetividades e seus sujeitos, em suma, realidades nas quais o poder assentará seus dispositivos históricos. A palavra dita, o objeto fixado, o vestígio deixado tornam-se os recursos de apreensão do real instaurados pelo poder, sendo o arquivo um de seus dispositivos privilegiados. Mais uma vez recorrendo à clareza analítica de Farge acerca da noção de arquivo, constatamos que “sua leitura provoca de imediato um efeito de real que nenhum impresso, por mais original que seja, pode suscitar”.

Em vista da complexidade do arquivo, de tantas as fechaduras com as quais nos deparamos ao tomá-lo em mãos e que recusam qualquer lógica mimética, simples e ingênua, entre seu registro e a “verdade dos fatos”, como, então, proceder diante dele? Neste ponto, mais uma vez recorro a Arlette Farge, quando diz ser preciso livrar-nos pacientemente da “simpatia natural que se sente por ele, e considerá-lo como um adversário a ser combatido, um pedaço de saber que não se anexa, mas que perturba. Não é simples abrir mão da facilidade excessiva de encontrar um sentido para ele; para poder conhecê-lo, é preciso desaprendê-lo, e não imaginar reconhecê-lo logo na primeira leitura”.

Se o arquivo, como o discurso, é sobremaneira uma violência imposta sobre a realidade, talvez seja na própria gramática-estética da violência que o arquivo impinge que poderemos encontrar trajetórias de compreensão de sua microfísica discursiva. Nesse sentido, qualquer voo que se descole de seu solo a serviço de imediatas interpretações, perder-se-á no calor do sol. Somente atendo-se aos seus critérios de veracidade será possível apreender sua narrativa, a razão que destaca suas singularidades. O arquivo não se abre, portanto, como uma janela à verdade, mas como um claro enigma, um trajeto a ser percorrido e refletido, arado. Qualquer sentido que dele se extraia, por mais edificante que aparente ser, não corresponde a um tesouro encontrado, mas a uma vereda que se sedimenta pelas mãos daquele que o trabalhou.

Suas idiossincrasias, aos olhares menos detidos, revelam-se maliciosas, traiçoeiras, pois é em sua própria ordem que se racionalizam, tomam sentido. Aos olhares carentes por identificações e reconhecimentos anacrônicos, resta-lhes uma desoladora fechadura intransponível. O trabalho feito sobre o arquivo será sempre insólito, de risco, característica de sua própria condição: somente situando-se em seu tempo histórico é possível dele extrair seus caminhos mais fugidios; no entanto, encontramo-nos estrangeiros a ele, situados em um tempo que não o seu, de modo que apreendê-lo em mãos prescinde restituir-lhe sua entropia nascente. Por isso, lê-lo é uma tarefa distinta à de encontrar os meios de retê-lo, vivificá-lo. Suas personagens, mortais ou metafísicas, arrebatadas agressivamente sem convites prévios, cristalizam-se em seu entalhamento do real, individualizam-se, imagens em biópsia. Logo, àqueles confrontados pelo arquivo, na solidão de um tempo que se sobrepõe ao seu, sobra-lhes a posição do eu-lírico drummondiano em Procura da poesia:

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
trouxeste a chave?

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