Em 2023, completam-se vinte anos da promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 9.394/96) para inserir o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no currículo da educação básica. A temática indígena foi incluída, posteriormente, por meio da Lei 11.645/2008.
Numa mirada rápida, a leitura desses dispositivos faz crer que negros e indígenas estavam ausentes dos conteúdos escolares, seja no nível básico ou superior. Todavia, não. As narrativas nacionais nunca obliteraram a presença das populações africanas e ameríndias na constituição do Brasil, mas o fizeram sempre numa perspectiva inferiorizada.
O que a alteração na LDB enseja é justamente o descentramento do currículo escolar, reconhecendo que as populações africanas e indígenas não são apêndices da história nacional, mas artífices, cuja presença não pode ser descrita tão somente a partir da falta, da subalternidade, da incompletude ou da violência.
Do ponto de vista da legislação, os ganhos são muitos. Destaca-se a garantia constitucional da necessidade de adoção de medidas governamentais para a superação das desigualdades de acesso aos bancos escolares (nos seus vários níveis e modalidades), no trabalho (público e privado) e na gestão da coisa pública (no Executivo, no Judiciário e no Legislativo).
Observa-se, de modo mais sistemático, a implementação de políticas em benefício das pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas, nos últimos anos. Do mesmo modo, o termo racismo passou a ser tema comum das falas cotidianas, muito em função de denúncias de injúrias raciais e outros tipos de discriminação propagados nas redes sociais.
Há, entretanto, muitos passos a serem dados. E talvez um dos mais complexos seja reverter o dispositivo colonial que transformou a diferença em dessemelhança, como mostrou Franz Fanon, em Les damnés de la terre, e que leva à produção das desigualdades.
Mesmo com todos os dados demonstrando os efeitos positivos das políticas de reserva de vagas, por exemplo, ainda se ouve vozes que insistem em afirmar que a presença desse “outro” representa uma “ameaça”. Alguns voltam ao velho argumento da suposta quebra da isonomia na concorrência ou da “perda da qualidade”. Embora falaciosos, e talvez por isto mesmo, esses discursos produzem um efeito perverso: a manutenção dos privilégios de um grupo sobre o outro.
Do ponto de vista moral, não se enrubesce a face daqueles que afirmam que a presença de negros e indígenas pode causar perda da qualidade daquilo que se produz em determinados espaços. Esta postura atualiza a posição adotada pelo Estado brasileiro no pós-abolição, em que se incentivou a imigração de cidadãos europeus considerados mais “aptos para o trabalho” em detrimento da população nacional (majoritariamente negra), que construiu o País durante os quatrocentos anos precedentes, por meio de sua mão de obra, conhecimento técnico, epistêmico e científico.
Moralidade à parte, e diante de dados científicos que provam o contrário, há de se perguntar o que sustenta o imaginário de que a presença negra e indígena degenera a qualidade das instituições e das produções?
A resposta é tão complexa quanto a trama das relações raciais no Brasil.
Sem a intenção de simplificar o debate, é possível argumentar que, como se indicou acima, há um processo iniciado durante o período colonial que estrutura um complexo sistema que reconhece e essencializa as diferenças entre os sujeitos, os hierarquiza, subalternizando-os em relação ao colonizador. São dispositivos discursivos, jurídicos, políticos, epistêmicos e religiosos que produzem e materializam a dessemelhança entre os grupos localizados em polos opostos da escala do poder: um na base e outro no topo.
É o não reconhecimento do outro enquanto semelhante, no sentido da igualdade formal, isto é, como sujeito dotado das mesmas potencialidades e detentor de outros princípios de organização societária (que leva a constituir tecnologias, artes, filosofias, ciências etc.) que permite a estabilização das condições epistêmicas que sustentam as desigualdades.
No contexto das relações raciais brasileiras, nega-se sistematicamente o reconhecimento e a valorização da presença negra e indígena nos espaços de prestígio e poder. Mesmo que a atuação de tais personalidades não tenha sido de caráter incidental, prevalece o imaginário da excepcionalidade.
Suporta-se a presença de uns poucos indígenas e negros e rejeita-se a distribuição equitativa dos bens sociais. Por vezes, o próprio desenho da política pública é feito para resguardar aos de sempre os privilégios instituídos historicamente, os quais são lidos sempre na chave do “direito” ou do “mérito individual”.
Uma vez que já temos diagnósticos suficientes mostrando o quão clara é a desigualdade no nosso país, precisamos de políticas mais agressivas que permitam a garantia da qualidade e a configuração de espaços de poder mais coloridos.
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