Nos dois artigos anteriores desta série tratei da inteligência individual. Não propus uma definição de inteligência, o que é difícil e polêmico. Mas propus que podemos caracterizá-la e que isso poderia ser feito através de quatro propriedades básicas:
1) capacidade de armazenar informação (ou memória);
2) capacidade de processar informação;
3) capacidade de “se perceber” como um indivíduo e
4) capacidade de decidir.
Passei pela inteligência microbiana e pelos vegetais (com algumas pitadas sobre os animais). Algumas vezes, esbarrei na inteligência coletiva. Neste terceiro artigo vou aprofundar mais neste último tipo de inteligência, que parece ter inúmeras vantagens adaptativas e estar promovendo uma nova revolução biológica nos últimos bilhões de anos.
Antes de aprofundar, é importante que o leitor saiba que os seres vivos que estão presentes na biosfera de hoje são as versões mais bem-adaptadas a este momento da história natural. Não é correto pensar que as bactérias, os repteis ou as samambaias, por terem aparecido antes na história natural, sejam modelos biológicos ultrapassados. Ao contrário, o simples fato de estarem aqui hoje é evidência de suas capacidades excepcionais de adaptação.
A inteligência coletiva é algo já bem definido em vários grupos de seres vivos. Como a inteligência coletiva não foi considerada nos quatro itens que coloquei no primeiro artigo (e acima), para caracterizá-la preciso adicionar um quinto elemento. Ela é uma característica que tem o conjunto de indivíduos de uma espécie de produzir propriedades emergentes que vão além daquelas que tem cada indivíduo isolado. Seja nos vírus e bactérias, seja nas árvores de uma floresta ou nas populações de insetos ou de seres humanos, estes fenômenos de massa, quando ocorrem apresentam características únicas. Meu quinto elemento será, portanto, a produção de emergência cognitiva.
A noção da sociologia em si, inicialmente discutida pelos filósofos gregos e revelada em tempos modernos por Emile Durkheim, se une ao advento da sociobiologia, que tem como figura icônica Edward Wilson. A sociobiologia é uma discussão sobre as características de massa de populações animais. Ainda que haja entre os animais, plantas e microrganismos algum grau de interação, seja por comunicação pela linguagem bioquímica ou por outros tipos de linguagem, alguns grupos em particular (insetos e mamíferos) se destacam na discussão da sociobiologia. O fato é que há cooperação entre indivíduos da mesma espécie e/ou de espécies diferentes por todo lado. Como nos lembra José Eli da Veiga, em seu último livro Antropoceno e as humanidades, outro biólogo importante nessa discussão é o americano Peter Corning, que explora um ponto crucial no processo evolutivo que parece ter levado à evolução da inteligência coletiva: a cooperação e o sinergismo.
Grupos como as formigas, cupins e até mamíferos possuem espécies consideradas eusociais, termo que significa que a mesma espécie pode apresentar indivíduos reprodutivos e não reprodutivos, ou mesmo castas com formas e funções diferentes, que trabalham em conjunto e com isto têm inúmeras vantagens adaptativas.
Vamos começar pelas bactérias, que já abordei de outra forma, sua inteligência individual, na Parte 1. Nas bactérias, há mais do que satisfazer as quatro propriedades básicas para ser inteligente. Há propriedades emergentes que as caracterizam também como coletivamente inteligentes, o que significa que mesmo em seres tão pequenos (cerca de mil vezes menores do que uma célula de nosso corpo) há formas de trabalho conjunto que surgem pela emergência cognitiva. O fenômeno chama-se Quorum sensing, em português Sensor de Quórum. Além de usarem seus nano-cérebros para guiar cada indivíduo, por exemplo, em direção ao alimento ou para infectar um hospedeiro, os indivíduos bacterianos produzem substâncias que estabelecem comunicação e modulam comportamento coletivo. É como um aviso a todos de que o alimento está em uma determinada direção disparando um movimento em massa naquele sentido. Muitas espécies de bactérias produzem filmes de polímeros para se fixarem em uma superfície e isso é importante, por exemplo, num processo infeccioso. O mecanismo Sensor de Quórum é utilizado para que um grupo de indivíduos trabalhe em conjunto para estabelecer uma “comunidade” e assim aumenta as chances de todos. É importante notar aqui que, quando surge a inteligência coletiva, uma população se reveste de uma espécie de “alma coletiva” e com isso sacrifica parte do seu livre-arbítrio. Como propus no artigo da Parte 1 que mesmo as bactérias apresentam um nível basal de consciência, podemos até pensar que este sacrifício de livre-arbítrio a que me referi é uma certa perda de parte da consciência individual. Isto porque forma-se uma memória coletiva que se torna dominante, modulando a memória individual.
Há coletivismo também no caso das plantas, cuja inteligência abordei no artigo da Parte 2. Sendo uma colônia de folhas, as decisões de diferentes partes do corpo de uma árvore podem ser distintas, já que estarão expostas a diferentes condições ao longo de um único dia. A forma de integrar as informações entre órgãos é provavelmente similar a um enxame, um fenômeno bem conhecido em insetos, peixes e pássaros. Mecanismos análogos aos Sensores de Quórum das bactérias (porém bem mais sofisticados) ocorrem também entre as plantas. Elas podem se utilizar da “linguagem” química ou mesmo através dos contatos que têm com microrganismos do solo, para comunicar a outros indivíduos da mesma espécie sobre a disponibilidade de nutrientes, água e o ataque de algum patógeno. Bem recentemente, foi proposto pela primeira vez que as samambaias do tipo chifre-de-veado consistem em uma espécie eusocial. Nessas plantas, há dois tipos de indivíduos, um que é reprodutivo e outro que se diferencia para exercer funções de assimilação de nutrientes. A descoberta é de 2021. Portanto, há muito o que investigar para caracterizar melhor o fenômeno. Também, se pode vislumbrar que existam muitas outras espécies vegetais que sejam eusociais, mas simplesmente não observamos com o cuidado necessário ainda.
Sabemos que o comportamento dos animais na forma de enxame tem regras simples que, quando combinadas, geram comportamentos complexos. Um exemplo interessante é o dos gansos migratórios, que viajam naquela famosa forma de V. Esta forma facilita o voo em conjunto (inclusive usado na aviação de caça para economizar combustíveis), já que os ganços são pesados e têm de fazer um esforço grande para voar milhares de quilómetros. Quando uma família voa junta, os pais podem se reversar na frente (que exige maior esforço) e deixar os mais jovens, e ainda mais fracos e inexperientes, atrás.
Entre as várias espécies de animais sociais, algumas das mais impressionantes são as formigas. Há pelo menos 200 espécies entre as cerca de 18 mil conhecidas que são exemplos notáveis de eusocialidade. Num formigueiro há diferentes castas de indivíduos com diferentes funções. A rainha tem função reprodutiva e põe ovos que se desenvolvem para formar operárias e soldados. Esses dois últimos não têm funções reprodutivas, mas são da mesma espécie (possuem o mesmo código genético) e contribuem para a formação do formigueiro que pode ter milhões de indivíduos. Ao buscar comida, as formigas usam como sinais químicos de comunicação substâncias chamadas feromônios. Através deste tipo de contato, um indivíduo consegue distinguir, por exemplo, se outro indivíduo que ele encontra provém do mesmo formigueiro ou não. Há toda uma divisão de trabalho entre as formigas que funciona de forma análoga, mas mais complexa, que o Sensor de Quórum das bactérias. Um comportamento curioso de formigas é chamado formiga-de-correição (veja um interessante artigo no Jornal da USP) em que formigas cegas formam uma enorme corrente migratória de coleta de alimentos. Todo o comportamento delas é comunicado por feromônios e o trabalho conjunto forma estratégias sofisticadas para obter alimentos. A consciência coletiva deste tipo de formiga pode levar à morte. Elas podem cair num ciclo infinito de autopercepção de seu próprio feromônio e irão andar em círculos até morrerem de fome. Enquanto isso, a rainha pode continuar pondo ovos e produzindo novos indivíduos que a manterão alimentada.
Mesmo com apenas alguns poucos exemplos, vemos que o desenvolvimento da inteligência coletiva se apresenta como um aditivo à inteligência individual. As espécies possuem as características necessárias para serem chamadas de inteligentes. Mas algumas têm algo mais; uma propriedade emergente que lhes permite formar enxames com propriedades que não existem em cada indivíduo. Já no caso da eusocialidade, parece haver uma fragmentação do indivíduo com a produção de múltiplos “sub-indivíduos” que maximizam o desempenho ecológico da espécie e a tornam mais bem-adaptada.
Parece não haver dúvidas de que a eusocialidade é uma novidade evolutiva importante e relacionada à inteligência coletiva de certas espécies. Há toda uma discussão sobre se o Homo sapiens seria uma espécie eusocial, já que há divisão de trabalho que caracteriza a civilização como a conhecemos. Apesar de Edward Wilson ter proposto que seríamos uma espécie eusocial, outros autores discordam e a conclusão até o momento é que somos apenas parcialmente eusociais. Mas um fato inegável é que, a nossa espécie pode produzir efeitos migratórios análogos ao da formiga-de-correição. Inclusive possui a propriedade de constituir massas artificiais que podem fazer com que indivíduos da mesma espécie entrem em guerra, levando grande parte dos indivíduos à morte.
Nos seres humanos, é notável o que chamarei aqui de “efeito de massa”. Ao usar este termo de forma genérica, gostaria de lembrar a propriedade da massa de perder parte do seu livre-arbítrio em prol do coletivo.
Vou definir o “efeito de massa” como o surgimento de formas diversas de populações se intercomunicarem e produzirem propriedades emergentes com características que não podem ser encontradas em seus indivíduos. Nos estudos relacionados à teoria das massas, examinada por Sigmund Freud em seu livro Psicologia das Massas e Análise do Eu há vários pontos importantes discutidos que pertencem obviamente à psicanálise. Mas neste artigo vou usar como âncora apenas o ponto colocado por Freud, com forte base em Gustav Le Bon, que é a formação do que Freud chama de “massas artificiais”, que podem ter como líder um indivíduo, uma ideia ou um símbolo. Este ponto singular, é inegável que um fundamento biológico seja crucial na psicologia das massas de Homo sapiens.
A pergunta central para discutirmos a inteligência coletiva é se ela contém elementos que embasam o que Freud chama de teoria das massas. Ele usa o Eu (também chamado de Ego) como base e diz que uma massa se forma quando um líder substitui o Eu-ideal de vários indivíduos. Estes últimos, em conjunto passam a se identificar com um líder (que pode ser simplesmente uma ideia e não uma pessoa) e podem se enamorar ou mesmo serem hipnotizados por ele.
É fascinante conectar a discussão da teoria das massas com a sociobiologia, que trata de fenômenos nitidamente relacionados com o que chamo aqui de inteligência coletiva. Mais fascinante ainda pensar que a eusocialidade, cuja essência está na inteligência como caracterizei no artigo da Parte 1, pode conter a origem da política e até mesmo da democracia.
A nossa inteligência é especial, sem dúvida, mas é bom sermos um pouco mais humildes e lembrarmos que a inteligência surgiu bem cedo nos organismos mais simples. Talvez seja inclusive um dos pilares da vida na Terra. Além disso, os efeitos de massa podem ocorrer em todos os seres vivos. Os processos evolutivos nos trouxeram até aqui. Nessa jornada, criamos uma torrente exponencial de conhecimento que não tem precedentes. A pergunta que fica é: para onde vamos depois dessa fase?
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