Os perigos do constitucionalismo de exceção

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 04/04/2023 - Publicado há 1 ano

O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), vem criando uma crise institucional com base num argumento que começou com uma medida de exceção: por causa da pandemia, Câmara e Senado criaram um rito provisório que permitia ao presidente da primeira casa levar Medidas Provisórias diretamente a plenário, indicando relatores, interferindo em seu conteúdo e reduzindo o tempo de tramitação, para só aí encaminhá-las ao Senado. A regra constitucional que foi alterada em nome da situação emergencial causada pela pandemia prevê que as medidas provisórias sejam inicialmente avaliadas por uma comissão mista composta de modo paritário – ou seja, integrada por um igual número de deputados e senadores.

Insistindo na continuidade do rito excepcional baixado nos tempos da pandemia, Lira alega que, se a Câmara tem 513 deputados e o Senado apenas 81 senadores, haveria uma “sobreposição” deste sobre aquela. Como a alta direção do Senado se opõe à pretensão do presidente da Câmara, Lira prometeu travar a tramitação das medidas provisórias baixadas no final do governo anterior e no atual governo, o que pode levar a uma paralisia decisória, com consequências imprevisíveis. Juridicamente, o argumento de Lira é absurdo, uma vez que o número de deputados na Câmara é alto porque a casa representa o eleitorado, com base na premissa “cada cidadão um voto”. O número de senadores é bem mais baixo porque o Senado representa os Estados. Portanto, são instituições com papéis político-institucionais distintos. Apesar disso, argumentando com base numa exceção jurídica aberta em tempos pandêmicos, Lira quer mantê-la a qualquer preço e não aceita voltar à normalidade constitucional, independentemente dos problemas que isso pode gerar para o País.

A crise deflagrada pelo presidente da Câmara, para tentar manter uma medida tomada em caráter emergencial durante a pandemia, recoloca na ordem do dia uma discussão que foi travada por juristas e cientistas políticos sobre o risco de supressão de importantes dispositivos constitucionais, em razão de uma situação excepcional e emergencial.

A discussão partiu de uma premissa cuja atualidade hoje é exponenciada pela iniciativa de Lira: como as consequências da pandemia são trágicas, quer para a vida das pessoas, quer para o funcionamento da economia, sob a justificativa de combatê-la com eficácia os governos teriam de adotar medidas urgentes e promover intervenções na sociedade, o que encerraria o risco de abrir caminho para a desconstitucionalização dos direitos civis. Neste caso, e essa era a pergunta, se os governantes propusessem medidas de exceção, estariam eles dispostos a abrir mão do sobrepoder que ganharam e a voltar a agir dentro dos limites da ordem legal de tempos normais, quando a pandemia passasse?

O que levou juristas e cientistas políticos a formulá-la era o receio de que governantes populistas e autocráticos tentassem “eternizar” ou naturalizar o que sociólogos do direito chamam, em termos críticos, de “constitucionalismo de exceção”. O medo era que dirigentes tendentes a um autoritarismo furtivo ou a uma democracia iliberal se sentissem estimulados a criar um “novo normal” em matéria de exercício do poder, promovendo uma desconstitucionalização das liberdades fundamentais. Em outras palavras, o temor era que esses governantes enfraquecessem as instituições de controle do regime democrático e que se negassem a devolver poderes que foram concedidos para serem válidos apenas e tão somente enquanto a tragédia da covid-19 não estivesse debelada.

Constituições envolvem o desafio de delimitação de poder e das condições de seu exercício por meio da interpretação, mobilização e acesso a uma corte suprema por parte dos diferentes grupos sociais. Em condições normais, o constitucionalismo democrático é o modo como a representação popular se realiza no plano político. Por serem intrinsecamente instáveis e tumultuadas, situações de emergência e de exceções podem, contudo, ser uma porta aberta para a captura da ordem constitucional por alguns grupos e para a subsequente desqualificação das instituições encarregadas de emendá-la, interpretá-la e preservá-la.

No âmbito da teoria política e do direito constitucional, a discussão não é nova. Há quase um século, Carl Schmitt, o polêmico jurista alemão que subordinava o direito ao poder, e a razão à vontade, já defendia o decisionismo e criticava tanto a constitucionalismo clássico quanto a democracia liberal. A seu ver, eles gerariam um Estado fraco, na medida em que seria obrigado a respeitar direitos civis e garantias públicas e estaria sujeito a muitas obrigações. Valorizando a exceção e não a normalidade, Schmitt dizia que, enquanto o normal não prova nada, a exceção prova tudo. A exceção confirmaria não só a regra, como a regra também viveria da exceção. Na exceção, força verdadeira da vida quebra a crosta de um mecanismo cristalizado na repetição, afirmava.

Como casos excepcionais e situações emergenciais não estão previstos pelo ordenamento jurídico em vigor, eles poderiam, assim, ser encarados como uma conjuntura de extrema necessidade ou um contexto de perigo excessivo para a estrutura e para a funcionalidade do Estado, prosseguia Schmitt. E é justamente para evitar esse risco que, segundo ele, o chefe ou o Führer – o detentor absoluto da força – tem a prerrogativa de decidir sobre o Estado de exceção. O princípio jurídico fundamental é a vontade do Führer ou do chefe, e não a legalidade. Em outras palavras, a ordem jurídico-política expressa sua vontade supralegal, concluía.

Um dos traços marcantes da histórica política brasileira está no fato de que, em alguns períodos, o excepcional se afirmou perante o normal. Foi assim com Getúlio Vargas, quando deu o golpe que criou o Estado Novo e entregou o Ministério da Educação e a redação da Constituição autoritária de 1937 a Francisco Campos, o jurista brasileiro que seguia as ideias de Schmitt. Foi assim em março de 1964, quando os militares depuseram um presidente que ascendeu ao poder pela democracia e pediram a Campos a redação de um Ato Institucional que invocava o “combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo” como pretexto para suprimir a democracia e, por consequência, as liberdades fundamentais. Foi assim, em dezembro de 1968, que um antigo assistente de Campos e também inspirado em Schmitt lançou mais um Ato, o de número 5, que “permitia” à ditadura militar conceder a si própria um poder constituinte permanente, permitindo-lhe legislar com base na ideia schmittiana de Estado de exceção.

Foi assim, também, que Jair Bolsonaro, um capitão reformado tresloucado, que sequer sabe quem foi Schmitt, mas que repetia reiteradamente o que diziam os atos institucionais, tentou aproveitar a eclosão da pandemia para tentar subtrair poderes dos Executivos estaduais e municipais, sob o pretexto de que a emergência gerada pelo advento da covid-19 exigia um comando central forte. Só não teve sucesso porque o STF o impediu.

Foi nesse contexto, como dissemos, que juristas e cientistas políticos indagaram-se, no início da pandemia, o que poderia ocorrer com a democracia se alguns governantes não aceitassem abrir mão do sobrepoder que ganharam e voltassem a agir dentro dos limites da ordem legal, quando a pandemia passasse. Revelando os efeitos da banalização da limitação de direitos e liberdades em razão de situações emergenciais e anormais, a resposta foi dada por Lira, ao tentar perenizar um constitucionalismo de exceção. Esse é um dos fios históricos que liga o Brasil de hoje ao Estado Novo varguista, ao golpe de 1964, à noite sombria do AI-5 e à patética aventura bolsonarista.

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