Isaías Raw, um herói brasileiro

Por Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq

 19/12/2022 - Publicado há 2 anos

Conheci Isaías na década de 1980 e, por motivos que nem consigo imaginar, logo ele me classificou como discípulo, sem nunca, claro, ter tido contato anterior com ele. Discípulos de verdade, como o Colli, o Brentani e outros tinham já me contado uma série de histórias do Isaías, e eu já o admirava à distância. Histórias que iam desde a sua coragem, criatividade e espírito revolucionário até o estranho hábito de secar a ponta da pipeta com a gravata no meio de um experimento.

Com o passar do calendário, fui me aproximando do Isaías e da Zenaide, mulher extraordinária que, além de conseguir acompanhar o ritmo alucinante de vida do marido, criou a ZDelli, boteco judaico que, entre muitos, frequentei durante algum tempo. Zenaide nos adotou, Iolanda e a mim, com o carinho que ela dava sem limites. Assim, tive o privilégio de conviver, de forma variada, mas sem contato diário com Isaías, até que num dia, já faz mais de uma década, me pressionou, como ele sabia fazer, para trabalhar com ele no Butantan. E aí passei a conviver diariamente com ele durante um par de anos.

Viajar com ele era uma aventura emocionante, pois a falta de limites do Isaías quando queria agir ou convencer era para dar medo. Desde entrar sem cerimônia na sala de um ministro até fazer uma crítica mordaz e enfática numa reunião com a diretoria de uma empresa parceira.

O que movia Isaías? Quando paro para tentar sintetizar uma resposta, não consigo me separar da figura de um Dom Quixote, com um livro e uma espada em cada mão, mas, ao invés de se lançar contra moinhos de vento, Isaías os construía. E a estrutura a ser construída, apesar da resistência de muitos, e daí a espada, foi sempre revolucionária. Desde os clubes de leitura, na adolescência, até o Curso Experimental de Medicina da USP, já como catedrático, desde o vestibular unificado até a produção de soros antitetânicos sem bolor no Butantan, passando por tantas iniciativas sempre novas, sempre transformadoras, sempre criativas.

Isaías, ademais, era uma fábrica borbulhante de ideias, sempre com um artigo científico recente na mão e um novo projeto de livro. Isaías também foi um formador desprendido que visava a supervisionar pessoas para que os discípulos o ultrapassassem. Numa entrevista recente ele se orgulhava de ter formado, na USP e no Butantan, jovens que, na sua visão, seriam mais criativos que o mestre.

Muitas das brilhantes construções do Isaías foram destruídas. Às vezes por forças tão conservadoras quanto aquelas que, acusando-o de comunista, o fizeram prender bem no início da ditadura. Documentos impossíveis de acreditar, mas reais, o acusaram de ser o líder de uma célula comunista que operava nos Estados Unidos. Um outro documento, desta vez assinado por alguns laureados pelo Prêmio Nobel dos Estados Unidos e encaminhado para o então “presidente”, conseguiu a sua liberdade.

A tentativa de mantê-lo preso, longe da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pretendia, na verdade, que ele não se apresentasse no concurso de cátedra. Nos anos intervenientes, desde 1964 até a edição do AI-5, entre outras coisas, Isaías virou catedrático da Faculdade de Medicina, levou na calada da noite o seu laboratório para o Instituto de Química da USP, implantou o Curso Experimental de Medicina, publicou vários trabalhos científicos com seus alunos. Com esta resumida lista dá para ver que Isaías foi um revolucionário, e, portanto, não é para se espantar que despertasse a raiva, inveja, desprezo de forças reacionárias que iam persegui-lo, bem com tentar destruir cada moinho de vento construído com amor ao Brasil.

Já com o AI-5 e a resultante aposentadoria compulsória, proibição de ocupar cargo público e outras benesses, Isaías teve que deixar o Brasil. Em Israel e nos Estados Unidos continuou criando e formando, desta vez enfocado no ensino da bioquímica e, claro, na reforma do ensino da medicina.

Retornando ao Brasil, pois Isaías sempre foi um patriota, foi contratado num Instituto Butantan decadente, onde o brilho da pesquisa, tecnologia e produção, que tinham sido mundialmente reconhecidas no início do instituto, tinha decaído brutalmente. Isaías conta, numa entrevista, que os soros imunes produzidos em cavalos eram estocados a temperatura ambiente, emboloravam e, além de ineficazes, podiam causar graves problemas a quem os recebia.

Assim começa uma nova construção, depois de ter visto o desaparecimento do Curso Experimental de Medicina, do instituto que colocou no mercado brasileiro aparelhos médicos nacionais e inovadores e de tantas outras iniciativas que este patriota revolucionário tinha criado.

O furacão Isaías revolucionou o Butantan e, em pouco tempo, o instituto podia se orgulhar de publicar artigos científicos de qualidade seguidos por uma produção que tendia a fazer do Brasil um país onde vacinas e outros produtos imunobiológicos fossem produzidos com conhecimento e tecnologia autóctones.

O que faz com que um homem tenha essa força criativa, uma capacidade de liderança ímpar e, ao mesmo tempo, uma resiliência capaz de ver parte da sua obra destruída e continuar formando gerações construindo organizações e processos revolucionários? Claramente eu não tenho respostas para esta pergunta. Posso, contudo, observar as forças destrutivas que levaram ao fim de tantos moinhos construídos pelo Quixote Isaías. Essas forças reacionárias e muitas vezes covardes, incapazes de celebrar o novo, invejosas das revoluções pacíficas e criativas, não suportam a resiliência de um Isaías.

Finalizo com a esperança que as novas gerações, conhecendo os tantos heróis brasileiros, tenham a criatividade, coragem, força, resiliência e o destemor necessários para mudar e fazer deste país o que o Isaías Raw tentou fazer durante toda a sua vida.


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