Se você não é torcedor do Corinthians, é torcedor da Portuguesa, claro!

Por Fábio Frezatti, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 15/02/2023 - Publicado há 1 ano

Nos projetos de pesquisa quantitativa na área de sociais aplicadas, utilizamos vários tipos de estratégias de uso de técnicas de coleta de dados, e o levantamento (survey) é bastante utilizado. Demanda uma lógica populacional e amostral para que, ao final, o resultado nos proporcione algo em que acreditar e atribuir como inovação. Acreditar que capturará o dado dentro do conceito desejado é muito importante e, sem isso, o trabalho será inócuo.

Nesse sentido, a escala é de vital importância pois existe uma decisão estratégica antes de aplicá-la: o quanto queremos que o respondente entenda, pense e reaja perante a demanda um desenho consistente. Existem vários tipos de escalas, com conceitos, objetivos e potencial de sucesso em obter resposta e uma delas é a escala binária. Ter a resposta informando que alguém está doente ou não, feliz ou infeliz, encontrar organização que atinge seus objetivos ou não, ajuda demais pois permite inferir elementos importantes de forma simplificada. Entretanto, nessa abordagem, o respondente decide o que é “estar doente” e o que seria “não estar doente”, interpretando informações orientadoras. Na escala binária, 0 ou 1, se não é uma coisa, é a outra e é importante entender as limitações antes de se tornar refém de uma escala.

Dentre outras escalas alternativas temos a escala ordinal que permite objetivar, por exemplo, o quanto alguém “está doente” ou o quanto “está feliz” ou o quanto a “organização atinge seus objetivos”. Num outro tipo de olhar, a escala Likert permite, com os opostos semânticos e ponto neutro, inferir algo. Nesse sentido, posso “discordar totalmente que estou feliz”, ou “nem concordar nem discordar”, por exemplo. O poder da argumentação se transforma substancialmente com uma escala diferente. As escolhas das escalas podem trazer elementos relevantes de associações que transformam os dados em informações e novos conhecimentos, afetando decisões e comportamentos. A escala é um meio a serviço das pessoas e a capacidade humana, o talento, é que dimensiona o potencial de inovação da informação.

O que isso tem a ver com nosso cotidiano? Funcionamos em termos de escala, embora nem sempre tenhamos consciência. Por facilidade e economia de energia e tempo, a escala binária aparece com muita frequência nas nossas vidas, para os mais diversos temas, tanto os mais rotineiros como os mais relevantes. Isso nem é bom, nem é ruim. Pode ser as duas coisas. Na prática, o raciocínio binário é uma condição para que as pessoas vivam, decidam e desenvolvam suas atividades sumarizando as escolhas a partir de duas opções: ou é zero ou é um.

A escala binária mental das pessoas, ao mesmo tempo, facilita muito a vida, o dia a dia de todos nós, mas também se torna uma abordagem perigosa dado o seu pressuposto de limites como premissa. Afinal, se vou conversar com alguém sobre futebol, se não é torcedor do Corinthians, é claro que é torcedor da Portuguesa. Não existe outra alternativa e ignora todos os outros torcedores enraivecidos, ofendidos e excluídos. A combinação de elementos muito fortes na sociedade, como as mídias sociais muito ativas, a aceitação de que ter voz seja algo pluralista, pressão e excessiva valorização para rapidez nas respostas, heterogenia nos critérios para definir prioridades, além da geração e consumo viciado de fake news (esporte predileto de algumas pessoas), faz com que a matriz de identidade e de posicionamento de uma pessoa seja algo bastante difícil de se entender.

Na política, religião e vacinas, por exemplo, temos vivenciado várias tensões ocorridas cotidianamente tendo por trás a escala binária. Sem entrar no mérito se é bom ou ruim, se você não apoia algum discurso da esquerda é porque é radical de direita. Se o inverso ocorre, deixando de apoiar a direita, é alguém de extrema esquerda, inclusive provavelmente apoiador de governos totalitários. É como se a conversa só tenha torcedores do Corinthians e da Portuguesa. A simplificação nos conduz a equívocos graves. Isso é pensado exatamente quando se fala em inclusão, que, além de social, racial e de gênero, também tem de comportar outras dimensões de relacionamento e convívio, como etária e intelectual. Se não for assim apenas estaremos vivenciando alteração de hegemonia, o que não teria muita novidade.

O estresse da dualidade política de 2022 é possível de ser entendido. Vivemos um ambiente em que a prática da escala binária foi o padrão para que as pessoas pudessem se relacionar: “Se não se identifica com o candidato A, é claro que apoia o B”. O momento, as mudanças na sociedade e a premência por uma decisão permitem entender a ênfase na escala binária, principalmente no segundo turno das eleições. O problema foi aumentando à medida que os temas política, religião e vacina, dentre outros, foram misturados e interligados num ambiente segmentado de maneira complexa e imediatista de captura de apoiadores.

Isso foi muito penoso para as famílias, amizades e relacionamentos em geral, separações e convívios cessados ocorreram. Olhando mais atentamente, podemos entender que uma pessoa pode ter compromissos democratas e ter valores que o aproximem de Deus, da família e da Pátria. Estamos mexendo com coisas que partem de contextos individuais e coletivos bem distintos, com uma abstração razoável no imaginário das pessoas antes de chegarem a algum nível de operacionalização, novamente, bastante segmentada.

No caso das eleições, elas já ocorreram e seria esperado e desejável um amadurecimento onde o binário não seja obrigatoriamente a única opção para olhar o futuro individual e coletivo. Agora temos governantes eleitos e eles devem honrar a confiança da população agindo com compromisso, acompanhamento e cobrança pela comunidade. Individualmente e no conjunto da sociedade o acerto baseado na visão binária será testado ou ajustado com evidências de interpretações de acertos e erros. Acontece que a escala binária persiste muito acentuada, dentre outros motivos, pela sensação de coisas “mal resolvidas”. A escala binária está muito impregnada no modelo mental das pessoas dada a demanda por respostas, muitas vezes, compulsórias que as pessoas têm.

Entretanto, a premência agora é outra, a dimensão tempo é outra, tanto para questões macros como individuais. Resumindo: podemos respirar e pensar, duas atividades fundamentais aos humanos.

O fenômeno não é novo, mas tem se acentuado no mundo inteiro e o conjunto de mudanças na sociedade, necessidade e pressão por aglutinações partidárias, capacidade de comunicação pelas mídias, momento de decisões nas vidas, tanto individuais como coletivas, evidenciam antagonismo, enfrentamentos e uma sensação de perda de algum “encantamento”.

Acredito que a pacificação de um ambiente decorre e contamina a partir, substancialmente, da reação coletiva perene, germinada individualmente na perseguição de propósitos. Temas complexos precisam ser discutidos e demandam sonhos, confiança, vontade, esperanças e informações adequadas usadas de maneiras adequadas. É muito ruim querer discutir algo e se sentir impedido, sem confiança no ambiente ou sem esperança de avanço em algo, se não para convencimento, ao menos que provoque reflexão.

A escala não tem culpa por qualquer coisa. Ela é um mero mecanismo. São as pessoas que acertam, erram e aprendem. Se nós estivermos sensíveis, a chance para reflexões e mudanças ocorrerá.

A propósito, sem demérito algum quero informar que torço para outro time que não é nem o Corinthians nem a Portuguesa. Pensando bem, os campeonatos seriam bem chatos se a escala fosse binária!

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