Mérito, notoriedade e representatividade: os dilemas para a indicação ao Supremo Tribunal Federal

Por Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 05/10/2023 - Publicado há 10 meses

O movimento social de negras e negros reivindica que o presidente da República nomeie uma jurista negra para a vaga que se abrirá no Supremo Tribunal Federal com a aposentadoria da ministra Rosa Weber. A mais alta corte do País nunca teve uma mulher negra entre os seus membros. Apesar disto, o presidente da República afirmou no dia 25 de setembro que “gênero e cor não serão critérios para a escolha de novo ministro do STF” e que irá indicar alguém que “possa atender interesse e expectativa do Brasil, que possa servir o Brasil, tenha respeito com sociedade brasileira, que tenha respeito, mas não medo da imprensa”.

Quando se observa o histórico de nomeações e a atual composição do Supremo, pode-se dizer o seguinte: raça e gênero sempre foram critérios para a nomeação no Supremo: a regra é nomear homens brancos.

A contra-argumentação do presidente Lula ante esta reivindicação do movimento negro deve-se a um fato: a normatividade branca e masculina ao se instituir como universal restringe a nomeação classificatória de gênero e raça aos subalternizados, isto é, mulheres e negras e negros. E a tal normatividade se oculta sob o manto da meritocracia expressa de forma normativa pelo critério estabelecido na lei no rito de indicação para o Supremo Tribunal, particularmente a ideia de “notável saber jurídico”.

Aqui há um falso conflito entre o que se considera representatividade (ou falta de) inserida na argumentação do movimento negro e a meritocracia instituída no caráter legitimador do Poder Judiciário, que busca se colocar acima das tensões sociais e sustentar suas decisões por um caráter técnico. Os rituais nas tramitações judiciais em que ministros e juízes sustentam suas decisões (que têm caráter político, pois estabelecem posições ante conflitos socialmente constituídos) em retóricas sustentadas por uma suposta erudição são a expressão de uma enunciação social que expressa seus lugares de fala. Em um momento histórico em que o capitalismo atinge um determinado grau e uma forma de reprodução na qual a esfera pública de deliberação – sustentada pelo seu caráter representativo – se torna disfuncional, os critérios meritocráticos e de notoriedade assumem um lugar de legitimação com fins autoritários que é preciso desmontar.

O tal “notório saber” esconde um espectro de valores político-ideológicos. A palavra “notório” tem origem no latim notorius, que é o particípio do verbo notare, que significa “notar” ou “observar”. No latim, notorius era usado para descrever algo ou alguém que era amplamente conhecido, reconhecido ou notado por alguma característica, qualidade, ação ou evento específico. Com o tempo, a palavra passou a ser usada nas línguas modernas, como o português, para se referir a algo que é notável, evidente, amplamente conhecido ou facilmente observável devido à sua notoriedade. Em resumo, “notório” é usado para descrever algo ou alguém que é amplamente reconhecido ou notado por alguma razão, geralmente devido à sua proeminência ou visibilidade pública. Assim, notoriedade tem um sentido conservador à medida que reforça uma visibilidade pública constituída por um reconhecimento consolidado.

Já a palavra “mérito” tem origem no latim meritus, que é o particípio passado do verbo merere, que significa “merecer” ou “ganhar”. No latim clássico, meritus era usado para se referir a algo que alguém tinha ganho ou merecido por seus esforços, méritos ou ações. Em português, “mérito” também se refere à ideia de ganho ou merecimento com base em habilidades, esforços ou ações. Portanto, a palavra “mérito” manteve seu significado fundamental de “merecimento” desde sua origem no latim até os dias atuais. É usada para descrever as qualidades, realizações e/ou esforços que tornam alguém digno de reconhecimento ou recompensa.

Vejam, ambas as palavras – notoriedade e mérito – se inserem em uma lógica de conservar critérios valorativos estabelecidos e, particularmente, no campo dos esforços pessoais, o que significa que parte do pressuposto de que todos são iguais e que as hierarquias expressam capacidades, competências e habilidades distintas entre os componentes.

O que tais ideias interditam são, primeiro, até que ponto é possível em sociedades fortemente desiguais pensar-se em meritocracia e, segundo, quais são os valores utilizados na régua medidora dos esforços, habilidades e ações. E em que medida estes valores se chocam com a demanda de representatividade agendada pelos movimentos sociais negros?

Quando o presidente Lula fala que um dos seus critérios é uma pessoa que “possa atender interesse e expectativa do Brasil”, aponta uma universalidade genérica destituída dos conflitos sociais históricos e estruturantes que formam esta totalidade na qual se inscrevem os de gênero e raça. Afinal, o Brasil é um país que tem índices de feminicídio alarmantes, com uma mulher morta a cada seis horas, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; e também com o alarmante indicador de um jovem negro morto a cada 21 minutos.

Ao dissociar estes conflitos sociais da caracterização de “interesses do Brasil” postos acima de critérios de “raça e gênero”, indiretamente se institui a meritocracia e a notoriedade como critérios conservadores e legitimadores dos mecanismos opressivos estruturalmente constituídos. Assim, a reivindicação do movimento negro por uma mulher negra no Supremo Tribunal Federal não é apenas busca de “representatividade”, mas reposicionamento dos aspectos valorativos de mérito e notoriedade que, quando dissociados da realidade social, se instituem como mecanismos conservadores. E isto se contradiz fortemente com um governo que se afirma como “progressista”.
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