Depois de corroer estruturas das Forças Armadas, bolsonarismo atinge bases da PM paulista

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 11/03/2024 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 12/03/2024 às 19:56

Durante a redemocratização, ao longo de pelo menos três décadas, as Forças Armadas pareciam ter compreendido sua missão constitucional e se afastado da política. O bolsonarismo, contudo, botou tudo a perder. Os militares voltaram a disputar poder, promovendo uma das mais graves crises fardadas da história recente. Em São Paulo, um processo parecido vem ocorrendo na Polícia Militar, liderado pelo secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, indicado por Eduardo Bolsonaro ao governo Tarcísio de Freitas. As decisões do novo secretário já produziram um racha entre os policiais paulistas, que vem contribuindo para fragilizar e comprometer a credibilidade e a unidade da corporação.

A primeira decisão comprometedora está relacionada ao congelamento dos investimentos nas câmeras do fardamento dos policiais, política criada por oficiais paulistas que vinha ajudando a reduzir a letalidade e a morte de policiais nas ruas, além de produzir provas de crimes em andamento. A medida vinha servindo de referência para outras polícias no Brasil enfrentarem o desafio da elevada letalidade, que desde 2018 causa mais de seis mil homicídios anualmente.

Na sequência, desde o segundo semestre do ano passado, o secretário lançou mão de duas operações na Baixada Santistas, Escudo e Verão, que se tornaram a segunda mais letal da história da PM, atrás apenas do Massacre do Carandiru. Somadas, causaram a morte de 66 pessoas, com denúncias de execuções de vítimas desarmadas e de ameaças aos parentes dos mortos em velórios e enterros. Finalmente, em fevereiro deste ano, o secretário movimentou 34 coronéis de seus postos, incluindo o número dois da corporação, fato inédito na história da PM. Para seu lugar, foi levado um ex-comandante das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), grupo operacional que o inspira pelo histórico de confrontos. Outros postos-chaves foram preenchidos por oficiais que passaram pela Rota.

Não é difícil compreender o perfil do homem por trás das decisões. Como um bolsonarista típico, Derrite costuma ser transparente e dizer o que pensa, mesmo quando suas ideias afrontam a lei e o bom senso. Uma de suas entrevistas mais famosas foi dada em agosto de 2021, quando era deputado federal e conversou com um youtuber por mais de três horas. A condição de parlamentar o deixou à vontade para expor o que pensava com sinceridade.

Derrite, assim como Bolsonaro, teve uma carreira militar marcada por punições. Atuando como tenente, perdeu prestígio por causa de seu voluntarismo nas ruas, que o levou a se envolver em diversos casos de homicídios. Ele vibrava com a adrenalina dos tiroteios, perseguições e mortes, uma visão antiquada que remonta à polícia truculenta dos anos de 1980. Passou a compartilhar suas opiniões nas redes sociais, ganhou popularidade entre eleitores da extrema direita, elegendo-se deputado federal em 2018. Indicado para a Secretaria de Segurança Pública, conseguiu colocar em marcha sua disposição para a guerra e de se vingar dos oficiais legalistas que via como seus perseguidores.

Durante a entrevista no YouTube, Derrite não se cansa de contar histórias de ocorrências que terminaram com a morte de suspeitos. Era o protagonista de pelo menos cinco delas. Mostra simplicidade, usando gírias como “irmão”, “véi” e “tá ligado”, que o ajudam a se aproximar do ouvinte e do entrevistador. Enxerga seus antigos parceiros como heróis, “lendas” como “Gomão, Badanai, finado sargento Frederico, Rogerinho, finado Luizinho, que morreu fazendo bico, finado Pontual, meu brother”. Fica em estado de alerta permanente ao longo da conversa e mostra preocupação ao ouvir barulhos do lado de fora do estúdio. Anda com um carregador e munições extras para sua Glock, que tira da cintura para mostrar durante a entrevista. Perguntado se a arma estava travada, diz que nunca trava porque não se sabe o que pode acontecer em lapsos de segundo.

Ao mesmo tempo que vibra contando suas aventuras como oficial, Derrite não esconde a frustração pela falta de reconhecimento ao longo da carreira. Primeiro, quando foi reprovado no teste psicológico para a polícia e ouviu que nunca seria um policial por causa de seu perfil. Insistiu e conseguiu passar na prova, mas acabou enfrentando percalços. Começou a trabalhar em Osasco, enfrentando as primeiras ocorrências que levaram à morte de suspeitos.

Quando tinha 24 anos, tentou alcançar seu sonho de ingressar na Rota, que ele via como a “seleção brasileira” da polícia. Não foi aceito por causa da elevada quantidade de homicídios no currículo, algo que ele via como prova de coragem e de disposição para o patrulhamento. Ficou profundamente decepcionado. “Você não é um exemplo para ser oficial da Polícia. Nunca irá trabalhar no Batalhão Tobias Aguiar”, disse o comandante que o rejeitou. Derrite fala que esperava encontrar no comando da Rota um oficial com “poderes especiais”, mais forte que o “Batman e o Rambo”, mas se deparou um “roda presa”, gíria para policiais avessos ao confronto.

Foi finalmente aceito depois da chegada do coronel Paulo Adriano Telhada ao comando da Rota, em 2009. Assim como Derrite, Telhada tinha fama de ser linha de frente, com diversos tiroteios e mortos na ficha. Derrite era amigo do filho do coronel, tenente Rafael Telhada. Quatro anos depois, ele foi afastado por causa de novos homicídios em ocorrências policiais, como ele próprio assume. Numa delas, seis pessoas morreram, e policiais comandados pelo tenente foram acusados de torturar suspeitos. Mas ele se sente injustiçado e conhece os culpados de seu infortúnio. “É a política”, resume.

Dois anos depois de sair da Rota, quando dava curso para soldados, o tenente passou um áudio entre os alunos falando das transferências de policiais envolvidos em ocorrências letais. Na mensagem, que acabou vazada para a imprensa, ele dizia achar “vergonhoso” um policial não ter participação em pelo menos três mortes durante cinco anos nas ruas. Como se as mortes em serviço fossem prova de compromisso. Precisou se desculpar da fala quando passou a ser cotado para a Secretaria de Segurança. No cargo, contudo, tomou decisões que mostraram suas convicções.

Desde o começo, a escolha de Derrite como secretário de Segurança causou burburinho. Um tenente influencer, com perfil psicológico temerário, que acredita em heróis, avesso a hierarquias, iria comandar oficiais que vinham conseguindo pensar a PM a partir de estratégias mais inteligentes, que evitavam mortes desnecessárias, tanto entre a população como entre os próprios policiais. A disposição para o confronto e o uso da violência, afinal, sempre se mostraram contraprodutivos. Desde o massacre de 111 presos no Carandiru, em 1992, que serviu de inspiração para os criminosos criarem o PCC. Passando pelo Massacre da Castelinho, em 2002, em que a polícia simulou um roubo e convenceu integrantes do PCC a alugarem um ônibus para realização do assalto em Sorocaba. Doze pessoas acabaram executadas nesta ação. No fim desse ano, Marcola assumiu o comando do PCC e iniciou sua grande expansão.

Entre 2011 e 2012, quando Derrite ainda estava na Rota, houve novos confrontos e mortes tanto entre integrantes do PCC como na polícia. Nada que abalasse a capacidade da facção em chegar às fronteiras do continente e conquistar ampla participação no mercado internacional. De outro lado, os principais abalos contra o grupo têm ocorrido a partir de investigações financeiras do Ministério Público e da Polícia Federal. A guerra parece servir para fortalecê-los.

Apesar das evidências, Derrite permaneceu fiel ao seu perfil narcisista, imaturo e truculento, talvez como prova de fidelidade à memória de seus amigos finados, discurso que mobiliza parte da tropa. É assim que ele vem conseguindo rachar e fragilizar a corporação, com a ajuda de projetos que pretendem aumentar os salários dos policiais e comprar apoio em massa dos policiais. Nem mesmo o ponderado Gilberto Kassab, secretário de Relações Institucionais, parece conseguir evitar a autossabotagem e demover o abalo e o retrocesso na corporação.

Um grupo armado, disposto a se engajar em uma guerra, ameaça entrar para a disputa política em São Paulo. No Rio, a trajetória foi bem-sucedida e deu nas milícias, que atualmente mandam no Estado. A distopia paulista começa a ganhar forma.

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