Utopias e distopias econômicas

Por Alexandre Macchione Saes, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 27/04/2023 - Publicado há 1 ano

Há mais de 80 anos, o economista John Maynard Keynes inseria na teoria econômica as dimensões de expectativa e incerteza. Contemporâneo da Primeira Guerra Mundial, da gripe espanhola, da Grande Depressão e da descrença sobre o progresso, como prometido pela sociedade liberal do século 19, Keynes buscava compreender a nova realidade a partir de uma nova ciência econômica. Possivelmente A teoria geral do emprego, do juro e da moeda de Keynes foi a obra que melhor captou o espírito daquela época, provocando uma revolução no conhecimento sobre a macroeconomia.

Ao enfrentar o desafio de viver e compreender as primeiras décadas do século 21, os atuais economistas têm lidado com um cenário de incerteza não menos desafiador: crises econômicas mundiais, intensificação das tensões geopolíticas, ampliação do desemprego e da desigualdade social e risco de colapso ambiental (sem falar da pandemia, da radicalização dos discursos de ódio, da desinformação, etc.). Tanto como a geração que sobreviveu ao desafiador contexto da primeira metade do século 20, a nossa deve possibilitar que as utopias fomentem a construção de novos instrumentos analíticos e de novas teorias voltadas para a sociedade que queremos ser.

Mesmo sendo difícil imaginar a publicação de uma obra tão revolucionária como A teoria geral, não há dúvidas de que relevantes contribuições têm sido produzidas para lidar com as incertezas econômicas de nosso tempo. Com o risco de produzir uma simplificação sobre a produção do conhecimento na ciência econômica, arrisco indicar dois caminhos que atualmente têm sido percorridos no âmbito do ensino de graduação dos cursos de Ciência Econômica, isto é, na formação das novas gerações de economistas. Ainda que seja um recorte limitado para observar as tendências da área, afinal a transformação dos cursos é mais lenta que a produção do conhecimento, me parece que a evolução das estruturas curriculares é uma arena relevante de disputa sobre o perfil profissional.

No Brasil, uma das respostas dos economistas ao ambiente de incerteza do século 21 pode ser observado nas reformas curriculares em andamento em algumas faculdades. Como recente matéria publicada no Valor econômico, o movimento de reestruturação dos currículos seguiu no sentido de reduzir a carga horária de disciplinas obrigatórias, mas com o esforço de introduzir disciplinas de Ciências de Dados e Programação.

A recente reforma curricular do curso de Ciências Econômicas da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP é ilustrativa. A introdução de novas disciplinas mais ferramentais, como Métodos Computacionais para Economia, associada à redução de disciplinas obrigatórias, teve como resultado a diminuição da carga horária ou até mesmo a eliminação de disciplinas tradicionais nos currículos da formação básica dos estudantes, como Formação Econômica e Social do Brasil e Introdução às Ciências Sociais. Um curso menos teórico e mais aplicado, como se defendeu à época da reforma.

A resposta para os desafios contemporâneos, nessa acepção, passou a dobrar a aposta no uso acrítico e indiscriminado dos modelos econômicos neoclássicos. Uma “economia aplicada” capaz de oferecer os mais precisos instrumentos para alocar mais eficazmente os recursos escassos da sociedade. Um quase neopositivismo, em que a ciência econômica estaria na fronteira de uma ciência exata, em que os modelos econômicos e as ferramentas estatísticas, alicerçados na racionalidade dos indivíduos, seriam capazes de captar o pleno funcionamento da sociedade. Uma reforma seletiva, que reduziu o espaço para a formação humanística, o diálogo com outras áreas e o espírito crítico dos economistas.

No exterior, ainda que o perfil dos cursos de graduação de Economia seja muito semelhante ao que as reformas curriculares têm perseguido no País, alguns movimentos de estudantes e pesquisadores sugerem uma revisão ao processo de instrumentalização da economia. Isto é, tais movimentos têm buscado questionar a abordagem matemática excessiva, em detrimento da análise qualitativa e da compreensão dos fatores políticos, sociais e culturais que influenciam a economia.

Em suma, o ensino de Economia é denunciado como abstrato e desconectado dos problemas sociais e ambientais do século 21, o que pode levar os estudantes a não compreenderem a aplicação prática das teorias e conceitos aprendidos na realidade complexa e conturbada que os cerca. Criticando o enfoque excessivo do ensino na teoria neoclássica, tais movimentos apontam para os limites dos modelos econômicos, por falharem em considerar fatores como poder, distribuição de renda e conflito social na análise econômica. A falta de pluralidade de ideias acaba por limitar a discussão de diferentes abordagens teóricas e metodologias.

Entre os movimentos que ilustram o questionamento dos rumos do ensino e da teoria econômica podemos lembrar o “movimento por uma economia plural”, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), que defende a ampliação da diversidade de ideias e abordagens no ensino de economia. O objetivo é promover a inclusão de abordagens heterodoxas, a maior atenção para questões sociais e ambientais e uma abordagem mais crítica da própria disciplina. Ainda nos Estados Unidos, em Harvard, anos depois da crise de 2008, os estudantes de Economia organizaram uma saída em massa da aula de Gregory Mankiw, autor do mais vendido manual de introdução à economia, contrários ao viés ideológico oferecido pela disciplina.

A Europa também foi espaço de outras experiências. Na Sorbonne, as manifestações se deram contra a influência da indústria financeira na produção do conhecimento na academia. Na Inglaterra, a Cambridge Society for Economic Pluralism reforçou o debate sobre a diversidade de ideias na disciplina, defendendo a inclusão de diferentes abordagens teóricas e metodologias nos currículos.

Numa outra dimensão de crítica à formação dos economistas, estudantes da Faculdade de Economia da Universidade de Amsterdã se manifestaram por maior diversidade racial e de gênero entre os professores e pesquisadores da área, alegando que a falta de representatividade limita o debate e a pluralidade de ideias na disciplina; processo semelhante ao “Movimento por uma Economia Feminista”, liderado por estudantes e professores da Universidade Nacional de Quilmes, na Argentina, com o objetivo de promover uma análise sobre a desigualdade de gênero na economia e na sociedade em geral.

No ambiente de incertezas e de rápidas transformações da sociedade e do conhecimento em que vivemos, os questionamentos sobre a teoria econômica e sobre o perfil dos cursos de graduação em economia apresentam utopias para a construção de uma sociedade que deve responder aos desafios sociais e ambientais contemporâneos. Utopias necessárias para conectar a teoria econômica com as demandas contemporâneas, que poderão romper com princípios da economia neoclássica. Infelizmente, alterar currículos em direção a um conhecimento exclusivamente técnico e instrumental, como presente nas tendências de reformas curriculares nacionais, é flertar com a crescente distopia da teoria econômica.

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