Dados do IBGE revelam a necessidade de ampliar políticas públicas para comunidades quilombolas

Especialistas explicam que o reconhecimento de territórios quilombolas passa por um processo de compreensão de um modo de vida diverso

 22/08/2023 - Publicado há 9 meses

Texto: Julia Galvão*

Arte: Gabriela Varão**

Recenseadores do IBGE em comunidade quilombola – Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Pela primeira vez na história, as comunidades quilombolas apresentaram um registro dentro do Censo Demográfico. Segundo a pesquisa, o Brasil conta com cerca de 1,3 milhão de quilombolas — cerca de 68% deles vivendo na região Nordeste. Questões como acesso à água, saúde, educação e, principalmente, a titularização de suas terras seguem sendo problemas diretos enfrentados por esses indivíduos. 

O dado em questão apresenta-se de forma essencial para o desenvolvimento de políticas públicas que possam melhorar a qualidade de vida dessas comunidades. Contudo, apesar da primeira contagem populacional realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)  ter acontecido em 1996, foram necessários quase 30 anos para que houvesse a inclusão dessa população. 

“A grande questão é que nós vivemos em um racismo estrutural profundo e é muito difícil admitir e mais difícil ainda superá-lo”, destaca Valéria de Marcos, professora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

Território

O direito ao território por parte dessas comunidades é determinado com a Constituição de 1988, sendo importante destacar que essa é uma conquista pertencente ao Movimento Negro Unificado. Assim a professora explica que esse é um movimento que vai recuperar positivamente a visão do quilombo, local que foi criminalizado durante décadas em decorrência de sua representatividade.

Com a mobilização desses grupos, portanto, passa-se a compreender que, além de uma questão racial, há uma questão territorial e agrária que precisa ser debatida para a permanência desses sujeitos. “Eles começaram a sofrer cada vez mais pressão dos latifundiários para que saíssem de seus territórios sem a garantia de seus direitos”, comenta a professora. 

Além disso, é interessante notar que, com a criação do Artigo 68, outro desafio passa a ser enfrentado por essas comunidades: o de reconhecimento. “É olhar para o seu passado, que é um passado de dor, humilhação, privação e de muitos preconceitos e ter que ressignificar tudo isso”, analisa a especialista.

Valéria de Marcos - Foto: IEA-USP

Valéria de Marcos - Foto: IEA-USP

Outro aspecto importante para o debate dessa questão é o entendimento de que o território apresenta significados profundos para essas comunidades. Segundo Valéria, há a compreensão de um modo de vida enraizado, assim, o pertencimento não envolve a posse de qualquer terra, mas a presença de um território que se estende desde questões físicas — como o direito de existir naquele ambiente — até questões emocionais, como estar em um local que conta com a presença de entes queridos enterrados. 

“A gente está falando de um grupo de pessoas que vive em um determinado território e que, entres essas pessoas, existem vários graus de parentesco, de solidariedade e de se relacionar, não só com a terra, mas também com o território em que elas estão inseridas”, explica. 

Titularidade

Apesar do reconhecimento legal de direito a esses territórios, a professora explica que, na prática, esse processo costuma ser muito mais longo e trabalhoso que o esperado. Antes de tudo, é necessário que a comunidade se autodeclare como quilombola, fator que requer o reconhecimento de um passado construído por memórias complexas. É necessário também que haja a unanimidade no seu interior para o pedido de registro na Fundação Cultural Palmares. 

Questionário básico de recenseamento do IBGE - Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Após essas condições, é realizado um relatório técnico de identificação e delimitação do território, que deve ser realizado por um antropólogo. Apenas assim a delimitação e a titularização podem ser realizadas. Valéria destaca que há projetos que tentam tornar esse processo mais prático, mas que, no geral, ele permanece sendo demorado. 

“Da mesma forma que há uma demora para reconhecer o direito ao acesso desses territórios, há a dificuldade de reconhecer o direito de acesso a todo o resto.” Dessa forma, o acesso à educação básica e superior, saúde, segurança e outros também não chega até essas comunidades como deveria. 

O entendimento de que essas comunidades apresentam práticas únicas de existência é, portanto, essencial para sua compreensão como sujeitos de direito e para a obtenção de maior visibilidade. 

Ação pública

Tamires Arruda Fakih, pesquisadora do Programa de Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, reforça que, atualmente, entre as maiores dificuldades encontradas pelos quilombolas, encontra-se a questão da titularização de suas terras e o conflito com grileiros que se encontram nesses espaços.

“Eu também vejo a descontinuidade das políticas públicas de segurança alimentar, de acesso à comercialização, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) que, embora não tenham sido extintos, foram enfraquecidos demasiadamente nos últimos governos”, analisa a pesquisadora. 

Assim, Tamires avalia que a permanência dessas dificuldades está diretamente ligada a dois fatores presentes na sociedade nacional. O primeiro refere-se ao racismo estrutural, que não garante a essas comunidades a sua autonomia, presença e vida nos seus territórios. O segundo refere-se a uma questão mais pragmática do Estado de retirar e indenizar os terceiros que se localizam nesses locais, sendo primordial a presença de uma fiscalização para identificar quem são os indivíduos que estão cometendo crimes para puni-los devidamente. 

Tamires Arruda Fakih - Foto: Arquivo Pessoal

Tamires Arruda Fakih - Foto: Arquivo Pessoal

Outro ponto de destaque nessa discussão é a forma como os programas de agricultura familiar auxiliam as comunidades quilombolas, já que, segundo a especialista, o Estado realiza a compra dos excedentes de produção desses indivíduos para a sua utilização em programas como o PAA e o PNAES. “Hoje o que falta, de fato, para a gente garantir essa promoção da justiça social para as comunidades quilombolas envolve uma série de articulações que precisam olhar para as especificidades dessas comunidades”, destaca. 

Por fim, Tamires reflete que as políticas que deveriam ser tomadas dizem respeito ao reconhecimento e à titularização de todas as terras que já foram afirmadas como pertencentes às comunidades quilombolas. Além disso, é necessário que a implantação de programas ambientais de conservação e proteção integral sejam diretamente dialogados com as comunidades — que são as principais responsáveis pela proteção, mas que, ao mesmo tempo, apresentam práticas tradicionais de agricultura que precisam ser reconhecidas. 

*Estagiária sob supervisão de Paulo Capuzzo

**Estagiária sob orientação de Moisés Dorado


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