Dentro de um olhar: peça de teatro desmistifica o amor entre uma pessoa cis e trans

Com elenco majoritariamente feminino, dramaturgia escrita por aluna da USP nasce com tentativa de romper olhar preconceituoso para o amor; a seguir, confira um dos trechos que compõem uma das cenas do espetáculo

Enredo traz a história de amor de Liz e Laura, cercadas por questões que envolvem alcoolismo, dependência emocional e toxicidade - Foto: Divulgação/Cia Recôncavo

 21/07/2023 - Publicado há 10 meses     Atualizado: 24/07/2023 as 14:01

Danilo Queiroz (estagiário)*

Um olhar! O amor e o preconceito começa pelo olhar. A falta do olhar que uniu duas almas poderia separá-las? É o que apresenta Dentro de um Olhar, peça de teatro que foge à norma heterocisnormativa, lógica social que não permite enxergar os afetos entre pessoas cis e transgênero. Em cartaz desde o ano passado na cidade de São Paulo, o espetáculo chega, dessa vez, ao Teatro da USP entre os dias 25 e 28 de julho. Os ingressos são gratuitos e disponibilizados uma hora antes no local. 

Não é apenas no amor entre pessoas com identidades de gênero distintas que a história de Liz e Laura se construiu. Há outros temas que circulam a narrativa, como dependência emocional, toxicidade e alcoolismo. O enredo foi pensado para apresentar ao público que essas questões podem estar presentes em qualquer relação humana, entre casais cis, trans ou transcentrados – ou seja, um casal formado por pessoas trans.

A equipe técnica é composta majoritariamente por mulheres, com a presença também de homens trans. A direção artística é de Mayla Fernandes e a trilha sonora ao vivo é de Amanda Ferraresi, egressa do curso de Violoncelo do Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. O Jornal da USP conversou com Myra Gomes, dramaturga da peça e recém ingressante da Escola de Artes Dramáticas (EAD), escola técnica de formação de atores e atrizes, da Universidade.

Um dos motivos que levaram a atriz a escrever esse enredo está no seu processo de transição e autoafirmação enquanto travesti. De forma exclusiva, ela conta que a primeira versão do texto, escrita em 2019, se baseou numa história de amor heterocisnormativa, ou seja, entre um homem e uma mulher heterossexuais e cisgêneros, isto é, que se identificam com o gênero que lhes foram atribuídos ao nascer. Isso porque esse sentimento é quase sempre negado socialmente para pessoas trans, travestis, não-binárias e agênero.

“O amor não é dado para pessoas como nós, corpos dissidentes. O amor é dado para pessoas heterocisnormativas. Esse sentimento nasce com o olhar, assim como o desamor. Dentro de um olhar surgiu quando eu comecei a me enxergar da forma como eu sempre fui. Eu descobri uma travesti também pode ser amada à medida que a peça foi transicionando comigo”, afirma Myra Gomes.

Myra Gomes é dramaturga da peça e recém ingressante da EAD / USP - Foto: Divulgação/Cia Recôncavo

As apresentações ganham um novo significado a cada apresentação. Para Myra, “o teatro é vivo. O texto está lá, fixo, mas o olhar do público é complementar à peça. Os olhares dos personagem e da plateia se cruzam e as cenas passam a ganhar um novo sentido.” “É como se a gente possibilitasse ao público enxergar aquele relacionamento pela cortina da janela da casa daquele casal”, complementa.

Teatro vivo e ‘trans’formador

Foi a partir do olhar, que a atriz também se reconheceu no teatro. Ela descobriu que ali também era o seu lugar, quando passou a conviver com Wallie Ruy, travesti, professora e inspiração de Myra nas artes. “O olho no olho sempre me fascinou. É muito lindo ver que o palco também é espelho das nossas vivências. Afinal, a vida também imita a arte”, celebra ela, que sonha em ser diretora artística.

A dramaturga também admite que o texto é como se fizesse parte dela. Com uma linguagem poética, as cenas adquirem um tom profundo e reflexivo. Além disso, também há presença de elementos audiovisuais na montagem do enredo, com gravações realizadas na USP.

Para Myra, apresentar essas questões é muito importante para romper com a ideia que pessoas da comunidade LGBTI+ discutem apenas sobre representatividade e diversidade. “A peça nunca foi apenas sobre o amor entre pessoas com identidades de gênero distintas. Há muitas elementos presentes, que reforçam que antes de serem uma personagem cis e trans, elas são humanas”, explica.

Na cena descrita com exclusividade pelo Jornal da USP, Liz passa a relembrar traumas vivenciados na infância, antes de sua transição. A cena desperta muitas emoções e gatilhos por envolver inúmeras violências - doméstica, emocional, transfobia. Elementos da natureza também são utilizados para explicar o amor, por meio da dramaturgia.

Cena de "Dentro de Um Olhar", peça de Teatro no TUSP - Imagem: Jornal da USP / informações cedidas pela dramaturga

Por dentro de "Um Olhar"

Dentro de um Olhar foi contemplado com a segunda edição do Edital de Múltiplas Linguagens da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Em cartaz desde o ano passado, o espetáculo já percorreu alguns teatros e escolas públicas da cidade.

O papel da peça não é ser educativo ou pedagógico, mas reflexivo. “Para nós, travestis, cansa explicar o que somos e o que sentimos. Nosso objetivo é mostrar para as pessoas que relacionamentos tóxicos existem independente do gênero ou cor da pele”, pontua a dramaturga. “De algum modo, as pessoas acabam se reconhecendo, esse também é o papel do teatro”, completa.

A chegada da peça na USP representa também uma oportunidade de tornar a arte acessível para os estudantes, docentes e funcionários. Ficou curioso para saber mais sobre a peça? Confira agora o calendário das apresentações:

Serviço

Dentro de um Olhar

Classificação: 14 anos

Duração: 60 minutos

Julho

  • Teatro da USP – R. do Anfiteatro, 109, Anfiteatro Camargo Guarnieri

Quando: 25 a 27 de julho, às 20 horas (sessão extra dia 27/07, às 18 horas)

  • Centro Cultural da Diversidade – R. Lopes Neto, 206 – Itaim Bibi 

Quando: 28 a 30 de julho, na sexta e sábado às 20 horas, e no domingo, às 18 horas

* 28 e 29 de julho com interpretação de LIBRAS

Agosto

  • Centro Cultural Municipal Olido – Av. São João, 473 – Centro Histórico de São Paulo

19 a 27 de agosto, aos sábados, às 19 horas, e aos domingos, às 16 horas ( sessão extra dia 19 de agosto, às 16 horas)

*Sob supervisão de Antonio Carlos Quinto


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.