Sede do CNPq, em Brasília - Foto: Herivelto Batista / ASCOM-MCTIC

Mudanças no CNPq e Capes preocupam pós-graduação da USP

Governo federal estabeleceu áreas prioritárias para projetos de pesquisa; regra pode afetar financiamento de programas de pós da Universidade

31/07/2020

Por Herton Escobar

Alterações fundamentais nas regras para concessão de bolsas e recursos das principais agências de fomento à pesquisa do governo federal poderão impactar profundamente as atividades de pesquisa e pós-graduação na USP e em outras instituições públicas de pesquisa a partir deste ano, segundo fontes da academia. Em alguns casos, os programas mais prejudicados deverão ser, justamente, os de maior excelência em pesquisa.

No âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), as mudanças remetem a uma portaria de março deste ano (Portaria 1.122), que estabeleceu as prioridades da pasta, “no que se refere a projetos de pesquisa, de desenvolvimento de tecnologias e inovações”, para o período de 2020 a 2023. O texto define 25 áreas prioritárias de pesquisa, com forte viés tecnológico, e determina que essas prioridades sejam observadas por todas as entidades vinculadas ao ministério — entre elas, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), duas agências de fomento essenciais ao desenvolvimento da pesquisa científica no Brasil.

Segundo o texto, CNPq e Finep “deverão promover, no que couber, ajustes e adequações necessários nas respectivas linhas de financiamento e de fomento, para incorporar, em seus programas e ações, as prioridades estabelecidas na presente portaria”.

Áreas prioritárias de pesquisa definidas pelo MCTI para o período 2020-2023
Tecnologias
Estratégicas
Tecnologias
Habilitadoras
Tecnologias
de Produção
Tecnologias para o
Desenvolvimento Sustentável
Tecnologias para
Qualidade de Vida
• Espacial• Inteligência Artificial• Indústria• Cidades inteligentes• Saúde
• Nuclear • Internet das coisas• Agronegócio • Energias renováveis• Saneamento básico
• Cibernética • Materiais avançados • Comunicações • Bioeconomia• Segurança hídrica
• Segurança pública• Biotecnologia• Infraestrutura• Resíduos sólidos • Tecnologias assistivas
• De fronteira• Nanotecnologia• Serviços• Poluição
• Desastres naturais
• Preservação ambiental

O problema é que grande parte das pesquisas desenvolvidas nos programas de pós-graduação da USP — e, possivelmente, de outras universidades públicas de pesquisa Brasil afora — não se encaixa nessas prioridades de viés tecnológico, segundo um levantamento feito pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG) da Universidade.

Mais de 50% dos coordenadores consultados pela PRPG disseram que “apenas uma parte minoritária” ou “praticamente nenhuma” das áreas de pesquisa de seus respectivos programas constava na lista de prioridades do MCTI. No caso das Ciências Humanas, esse índice chegou a 92%, comparado a 37% nos programas de Ciências da Vida e 52%, nas Ciências Exatas.

Infografia: Beatriz Abdalla/Jornal da USP

Isso não significa que grandes temas como Inteligência Artificial, indústria, agronegócio e saúde — que fazem parte da lista do MCTI — não estejam contemplados nos programas de pós-graduação da USP. A questão é que as pesquisas realizadas nas universidades costumam ser mais focadas na geração de conhecimento (ciência básica), e não em desenvolvimento tecnológico, que tradicionalmente é uma função exercida pela indústria. Também não costuma haver um direcionamento institucional daquilo que deve ser estudado; cada pesquisador investiga aquilo que considerar mais importante ou interessante dentro da sua área, conforme preconiza a chamada “liberdade de cátedra”.

Carlos Gilberto Carlotti Júnior - Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Carlos Gilberto Carlotti Júnior – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Assim, caso a distribuição de recursos do CNPq — seja na forma de bolsas ou financiamento de projetos — passe a ser dirigida preferencialmente para essas Áreas Prioritárias, como prevê a portaria do MCTI, isso exigirá todo um replanejamento e redirecionamento da pós-graduação universitária para atender a essas prioridades. “O financiamento é um indutor de comportamento”, diz o pró-reitor de Pós-Graduação da USP, Carlos Gilberto Carlotti Júnior. “Ou o pesquisador vai ter que mudar de área, ou vai ficar sem financiamento.”

Excelência ameaçada

Os programas mais afetados deverão ser, justamente, os mais antigos e de maior excelência em pesquisa, porque são eles que mais dependem de bolsas e recursos do CNPq para suas pesquisas, segundo o pesquisador Raul Abramo, professor do Departamento de Física Matemática do Instituto de Física da USP. “Quanto maior a qualidade da pesquisa, maior é a dependência do CNPq”, afirma ele. “Quem mais perde com isso, portanto, são os grupos de excelência.”

Luis Raul Abramo - Foto: Divulgação/IFSC

Raul Abramo – Foto: Divulgação/IFSC

Abramo é um pesquisador internacionalmente reconhecido no campo da cosmologia, ciência que se dedica ao estudo da estrutura e do funcionamento básicos do Universo — exemplo de uma área de pesquisa fundamental que não consta na lista de prioridades do MCTI.

“Na USP (possivelmente no Brasil), não há praticamente nenhum departamento ou programa de pós-graduação de qualidade que não será afetado de modo significativo por mudanças no nível de financiamento de bolsas pelo CNPq — mesmo aqueles programas que já são atuantes nas novas áreas prioritárias do CNPq”, diz uma carta preparada por Abramo, em nome da PRPG, e enviada à presidência do CNPq em junho.

A USP tem 264 programas de pós-graduação, com 14 mil alunos de mestrado e 15 mil de doutorado. Cerca de 25% dos bolsistas da Universidade são financiados pelo CNPq.

Aglomerado de galáxias MACS J0416 — Cosmologia estuda as forças e as estruturas que regem a evolução do Universo – Foto: Nasa

O resultado das mudanças, segundo os pesquisadores, não será o almejado pelo ministério, que busca acelerar o processo de transformação do conhecimento científico em novas tecnologias, processos e produtos, capazes de gerar riqueza para o País. Pelo contrário, diz Carlotti, corre-se o risco de causar uma “involução da ciência no Brasil” a médio e a longo prazo, porque os pesquisadores serão obrigados a direcionar seus esforços para atender a demandas específicas, pré-determinadas pelo governo, em detrimento da pesquisa básica e da própria inovação tecnológica, que, muitas vezes, deriva de descobertas elementares, aparentemente sem aplicação prática. 

A técnica de PCR, por exemplo, usada para fazer diagnósticos de covid-19, e considerada uma das ferramentas biotecnológicas mais importantes da atualidade (tanto que seu inventor, Kary Mullis, recebeu o Prêmio Nobel de Química, em 1993), só foi inventada graças a uma série de pesquisas básicas sobre os mecanismos que controlam a replicação do DNA nas células e sobre a biologia molecular de bactérias extremófilas, que vivem nas águas escaldantes de fontes hidrotermais. A intenção das pesquisas que levaram a essa tecnologia não era desenvolver um método de diagnóstico molecular de doenças, apenas entender como a vida funcionava. É a chamada “pesquisa básica” na sua essência, guiada apenas pela curiosidade científica.

A técnica de PCR hoje usada para fazer diagnósticos de covid-19 foi inventada a partir de uma série de pesquisas básicas. Na foto, uma máquina de PCR e kit de reagentes para diagnóstico – Foto: SPPU

“Acho que o CNPq está cometendo um erro primário de definição do que é ciência”, afirma Carlotti. A ideia por trás das mudanças, segundo o professor, é que se o investimento for mais dirigido, os resultados práticos das pesquisas serão mais rápidos, o que não é necessariamente verdade. “Ela parte do princípio que a ciência deve ser altamente aplicada; e que só se deve investir naquilo que pode trazer resultados imediatos, mas sabemos que não é assim que funciona”, diz. “Você pode fazer esse raciocínio a partir do momento em que o conhecimento já está gerado, mas não partir do princípio de que só esse tipo de investimento é adequado.”

Direcionar investimentos em pesquisa para temas específicos é válido e faz sentido em algumas situações, avalia Carlotti, desde que isso não seja feito em detrimento do apoio ao restante da ciência como um todo. As melhores agências de fomento do mundo, segundo ele, tipicamente direcionam entre 10% e 15% de seu financiamento para áreas específicas, que necessitam de um estímulo mais robusto, enquanto mantêm o restante dos recursos sob livre demanda. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), por exemplo, possui vários programas de pesquisa direcionados a temas específicos, como biodiversidade, bioenergia e mudanças climáticas, mas jamais deixa de investir de forma ampla no restante da ciência. O financiamento dirigido é sempre a exceção, nunca a regra.

O dirigismo exagerado, segundo Carlotti, inibe a criatividade e diminui as oportunidades para a realização de pesquisas disruptivas, capazes de produzir resultados verdadeiramente inovadores, e não apenas incrementais. “A ciência fica mais superficial, porque você só vai pesquisar aquilo que sabe que vai dar certo”, avalia Carlotti, que é professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, especialista em neurocirurgia e biologia molecular. 

"O CNPq está cometendo um erro primário de definição do que é ciência"

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Ciência básica, humanas e sociais

A definição das Áreas Prioritárias do MCTI foi duramente criticada pela comunidade científica após a publicação da Portaria 1.122, em 19 de março, pelo fato de ela não contemplar as ciências humanas ou sociais, e nem mesmo a pesquisa básica, de uma forma geral.

A pressão foi tanta que, uma semana depois, o ministério publicou uma série de adendos à portaria, incluindo um parágrafo que diz: “São também considerados prioritários, diante de sua característica essencial e transversal, os projetos de pesquisa básica, humanidades e ciências sociais que contribuam para o desenvolvimento das áreas (prioritárias) definidas (na portaria).”

O primeiro edital a incorporar os conceitos da portaria foi o do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), que oferece apoio financeiro a alunos de graduação que queiram se envolver com atividades de pesquisa. A pré-chamada do edital, divulgada no site do CNPq em 23 de abril, dizia que as bolsas “(deveriam) estar vinculadas a projetos de pesquisa que apresentem aderência a, no mínimo, uma das Áreas de Tecnologias Prioritárias” do MCTIC; e que essa aderência (deveria) ser explicitamente apresentada no texto do projeto submetido no âmbito do edital interno” — o que reforçou a preocupação da comunidade científica, apesar das modificações feitas na portaria.

O CNPq cedeu novamente à pressão e modificou a versão final do edital, publicada em 11 de maio, para dizer que as bolsas deveriam contemplar “preferencialmente” — e não obrigatoriamente — projetos de pesquisa ligados às Áreas Prioritárias do MCTI. Em entrevista ao Jornal da USPo presidente do CNPq, Evaldo Vilela, reconheceu que a proposta inicial era equivocada para o Pibic, e disse que interviu junto ao ministro Marcos Pontes, do MCTI, para alterar o edital “dentro do possível”.

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O recuo foi mantido no mais recente edital para bolsas de mestrado e doutorado do CNPq, lançado em 15 de julho. “As propostas poderão contemplar projetos de pesquisa em todas as áreas do conhecimento”, diz o texto da chamada. A aderência às Áreas Prioritárias do MCTI, porém, foi mantida como um dos critérios de avaliação das propostas, correspondendo a cerca de 10% do valor total da nota.

Mais uma vez, a modificação serviu para amenizar os prejuízos, mas não resolveu o problema. “Pode parecer pouco, mas 10%, num processo altamente competitivo, é uma margem significativa”, avalia Carlotti. Dessa forma, diz ele, os pesquisadores que não tiverem “criatividade suficiente” para vincular seus projetos a alguma dessas áreas prioritárias poderão ser prejudicados na obtenção de bolsas.

O ideal, segundo Carlotti, em vez de fazer acomodações, seria revogar a portaria do MCTI.

Nova política de bolsas

Outra mudança importante, que começa a ser implementada neste ano, diz respeito à política de concessão de bolsas de pós-graduação do CNPq. Pelo sistema vigente até agora, os programas de pós-graduação das universidades recebiam uma cota fixa de bolsas, que permaneciam à disposição de seus alunos, sem prazo de validade definido. Quando um aluno terminava o curso, a bolsa passava para outro, selecionado pelo orientador, e assim por diante, sucessivamente. Agora, as cotas deixam de existir e as bolsas passam a ser distribuídas por meio de editais, vinculadas a projetos de pesquisa, definidos pelos programas e previamente aprovados pelo CNPq.

O primeiro edital nesses moldes foi anunciado em 15 de julho, numa transmissão ao vivo pelo YouTube — que deixou muitas dúvidas no ar e foi seguido de outra live, no dia 23 de julho, organizada pela Universidade Federal do Paraná.

A mudança fundamental é que as bolsas não permanecem mais à disposição dos programas e passam a ser atreladas a projetos de pesquisa específicos, com prazos de validade específicos (24 meses para mestrado e 48 meses, para doutorado). Os programas continuam sendo os interlocutores entre a agência e os alunos, mas uma vez concluída a bolsa, ela volta automaticamente para o CNPq, para ser redistribuída por novo edital. “Não estamos avaliando cursos, estamos avaliando projetos de pesquisa”, disse o presidente do CNPq no anúncio do edital. “Isso é central.”

É uma mudança que faz sentido do ponto de vista conceitual, segundo Carlotti, e que busca tornar mais cristalina a diferença entre CNPq e Capes: uma agência financia pesquisa científica e a outra, formação de recursos humanos. O impacto sobre os programas de pós-graduação da USP, segundo ele, vai depender de como a mudança for implementada, e principalmente dos critérios de julgamento para a concessão das bolsas. Se o critério fundamental for a qualidade dos projetos apresentados, “a USP provavelmente não será muito prejudicada”, avalia ele.

Evaldo Vilela, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). – Foto: Divulgação/Fapemig

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgou uma carta aberta ao presidente do CNPq, em 22 de julho, enumerando “vários problemas” que, segundo a entidade, “tornam insustentável” a implementação do edital — apesar de ser compreensível a intenção de atrelar as bolsas a projetos de pesquisa”, como já fazem várias das fundações estaduais de amparo à pesquisa. “Propomos possíveis soluções para corrigir esses problemas em uma nova futura Chamada, reformulada com regras claras e objetivas, e que deve ser amadurecida em conjunto com a comunidade acadêmica”, diz a carta, subscrita por dezenas de entidades do setor.

“Ao mesmo tempo que financia pesquisa básica, o CNPq tem obrigação de trabalhar em conjunto com outras instituições para transbordar esse conhecimento da pesquisa em benefício da sociedade”, justificou Vilela, em uma conversa virtual com a PRPG da USP, transmitida ao vivo pelo YouTube em 28 de maio. “Já fizemos muito, mas não dá para continuar fazendo do mesmo jeito”, completou ele, referindo-se às contribuições históricas da pós-graduação para a ciência brasileira.

Segundo Vilela, é essencial que a pesquisa científica “gere prosperidade” para o País, e que as bolsas gerem resultados concretos e verificáveis, “além da titulação do aluno”.

Agrônomo, entomólogo e ecólogo, especializado em comportamento de insetos e pragas agrícolas, Vilela assumiu a presidência do CNPq em 17 de abril. Até então, era presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap). Ele ressaltou, ainda, a necessidade de a comunidade científica permanecer unida e apoiar o CNPq nesse momento de transformação.


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