O retorno dos polímatas

Por Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da USP

 24/01/2023 - Publicado há 1 ano

O polímata é um personagem típico dos séculos 17 e 18 que pode ser definido como alguém que se interessa e aprende muitos assuntos. Não que não tivessem existido antes disso, uma vez que pensadores como Pitágoras (570 a.C.) e Da Vinci (1452) são considerados polímatas. Durante a Renascença eles aumentaram muito em número e foram responsáveis por grandes avanços no conhecimento. Os polímatas continuam entre nós, mas numa proporção pequena da população.

O recente livro de Peter Burke (O Polímata) faz uma análise dos polímatas utilizando 500 polímatas ocidentais. Entre eles há três brasileiros: José Mariano da Conceição Veloso (1752), Gilberto Freyre (1900) e Darcy Ribeiro (1920).

Burke classifica os polímatas em centrífugos e centrípetos: enquanto os primeiros acumulam conhecimentos sem se preocupar com as conexões, os polímatas centrípetos são naturalmente conectores de informações e com isso criam sínteses. Para Burke, os polímatas vivem numa “zona de tensão” entre o centrífugo e o centrípeto, o que é, por um lado, uma espécie de tortura intelectual e, por outro, um enorme prazer de poder visualizar o todo e suas partes em conexão.

Após um período de protagonismo do polímata renascentista, houve uma fase de decadência deste tipo de intelectual, período esse de controvérsia sobre a capacidade humana de reter e processar informações. A principal controvérsia é que, a partir de um certo momento no fim do século 18, eles começaram a ser malvistos pela sociedade. Isto porque a quantidade de conhecimento aumentou muito durante o Renascentismo devido ao aperfeiçoamento na impressão do livro – a ferramenta primordial do polímata.

O livro impresso, como conhecemos, começou a ser desenvolvido durante a Idade Média. Porém ele já existia antes e inicialmente era desenhado como uma espécie de “obra de arte”. Os livros antigos eram pintados à mão e constituíam peças tão exclusivas que o preço de um único exemplar, calculado aos valores de hoje, poderia atingir o valor de um carro de luxo dos mais caros. Os polímatas, assim, eram em geral indivíduos abastados, que podiam se dedicar ao avanço do conhecimento por puro diletantismo. Alguns eram bibliotecários, como Leibniz (1646), e podiam se aproveitar de estarem imersos em locais cheio de livros.

O surgimento do livro impresso se deu gradativamente ao longo dos séculos 15, 16 e 17. Levou todo esse tempo porque foi necessário o desenvolvimento de várias tecnologias que precisaram ser compiladas e por fim Gutenberg inventou a prensa de tipo móvel. Antes disso, foi necessário aperfeiçoar a confecção dos tipos de metal, das tintas e do papel. Só quando os três atingiram um certo grau de maturidade tecnológica é que uma explosão na produção de livros causou, no século 17, a primeira crise do conhecimento. Isso porque, como muito mais gente passou a ter acesso ao conhecimento ao mesmo tempo que mais livros eram lançados, os polímatas passaram a ser vistos como charlatães. Uma indagação na época era: como alguém pode saber tudo, se há tanto conhecimento disponível?

E a crise piorou. No século 18, com o aumento ainda maior na produção de livros, começou a ficar claro que não há como uma única pessoa memorizar e processar tudo. Os polímatas aí começam a ser deixados de lado e, ao mergulhar no século 19, teve início um grande processo que levou à era da especialização. Até mesmo as ideias do economista escocês Adam Smith sobre a divisão de trabalho poder aumentar a produção, o que fundamentou a revolução industrial, foram usadas no domínio do conhecimento. O raciocínio é: se tivermos vários especialistas produzindo conhecimento separadamente e depois juntarmos as peças, produziremos muito mais do que se esperarmos que os polímatas centrípetos juntem tudo e façam sínteses.

A segunda crise do conhecimento culminou, nos séculos 19 e 20, na era da especialização. As universidades ocidentais começaram a se modificar rapidamente e as novas universidades fundadas no século 20 (como a USP) acabaram fazendo reformas (no caso da USP, em 1969) que levaram à extinção dos catedráticos e à implantação da departamentalização.

É impossível negar que esse processo tenha sido fortemente benéfico para o mundo. Graças à especialização, o avanço do conhecimento foi um evento sem precedentes na história humana. Os avanços tecnológicos em todas as áreas do conhecimento mudaram completamente a qualidade de vida do ser humano, que agora conhece muito mais sobre si próprio e sobre o ambiente que o cerca.

Nesse momento estamos no meio do tsunami de conhecimento originado pelos eventos dos séculos 19 e 20 e, ao iniciar o 21, a produção de conhecimento já entra no que provavelmente será visto como a terceira crise, que é dada pelo avanço ao acesso de conhecimento de forma digital. Mas será mesmo uma crise ou uma oportunidade? David Epstein, em seu livro sobre generalistas e especialistas, mostra uma série de evidências de que o generalismo tem inúmeras vantagens sobre o especialismo. É verdade, mas temos de lembrar que podemos ver hoje coisas que os polímatas do Renascentismo não podiam. O grande tsunami de conhecimento dos séculos 20 e 21 nos possibilita uma visão de mundo muito diferente do que tinham os polímatas nos séculos 17 e 18.

Olhando somente para o conhecimento científico, que tem bancos de dados que permitem análises quantitativas bastante razoáveis, já se pode vislumbrar o avanço gigantesco oriundo do tsunami. Pode-se inclusive começar a especular sobre algumas das consequências dele.

Um trabalho publicado na revista Nature em 2023 reporta uma análise bibliométrica de 45 milhões de papers (trabalho científico clássico publicado nas revistas científicas ao redor do mundo) e quatro milhões de patentes. Os autores mostram que o nível de disrupção (papers que causam mudanças drásticas no conhecimento humano) vem diminuindo exponencialmente desde a década de 1940 no mundo. Há inúmeras consequências e discussões a partir destas análises. Uma delas se relaciona à especialização. A diminuição no nível de disrupção parece ser uma espécie de diluição dos trabalhos disruptivos num mar de trabalhos que avançam o conhecimento preexistente. Estes últimos são muito importantes; afinal, são eles que acabam nos levando a produzir novas tecnologias e aperfeiçoá-las para o benefício da sociedade. Mas há um aspecto nas análises dos autores que é relevante para o tema dos polímatas e da especialização. Esta última se aprofundou tanto que parecemos viver numa “torre de babel”. Especialistas falam apenas as suas próprias línguas, citam apenas os trabalhos mais relacionados aos de suas áreas e fazem relativamente poucas conexões entre diferentes “ilhas” de especialistas.

Não temos como saber exatamente o que vem pela frente, pois estamos ainda no meio do processo, mas há algumas lições que toda essa cadeia de eventos nos deixa. Uma delas é que parece haver necessidade de um “retorno dos polímatas” no sentido de começarmos um processo centrípeto de interconexões das ilhas de especialidade e de sínteses que nos levem a novos patamares de conhecimento. Se olharmos a nossa volta, há diversos sinais de que as abordagens interdisciplinares estão começando a dominar o cenário de produção intelectual. Como o trabalho polimático do século 21 é distinto do dos séculos 17 e 18, prefiro, ao invés de polímatas, chamar essa nova classe de pensadores de neopolímatas. Estes generalistas centrípetos provavelmente irão revolucionar o conhecimento neste século? É só olhar em volta com cuidado e veremos que o paradigma da especialização está ruindo como um castelo de cartas, da mesma forma que começou a ruir o castelo dos polímatas no século 18. Para o dia a dia podemos deixar a seguinte pergunta: de que vale ter todo o conhecimento do mundo na palma da mão em nosso telefone celular se não interconectarmos essas informações?

(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo)


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