Instituto de Estudos Brasileiros da USP recebe livro do século 16

Publicado em 1543 pelo médico belga Andreas Vesalius, De Humani Corporis Fabrica inovou os estudos de anatomia humana

 Publicado: 11/06/2024

Texto: Ricardo Thomé*

Arte: Olívia Rueda**

Com 700 páginas e escrito em latim, livro foi trazido da Itália em 1914 pelo médico Alfonso Bovero – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Em abril deste ano, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP foi presenteado com uma relíquia da Universidade. Trata-se do livro De Humani Corporis Fabrica, publicado em 1543 pelo médico belga Andreas Vesalius (1514-1564), conhecido como o “pai da anatomia moderna”. Referência no estudo da anatomia humana, a obra é uma das mais antigas em posse da USP — que tem Crônica de Nuremberg, de Hartmann Schedel, de 1493, como título mais antigo do acervo. O livro foi trazido da Itália em 1914 pelo médico ítalo-brasileiro Alfonso Bovero e ficou na Faculdade de Medicina da USP por vários anos, até ser transferido para o Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. Ele foi doado para o IEB “por questões de estrutura para a manutenção da obra”, como explica a supervisora técnica do Serviço da Biblioteca do IEB, bibliotecária Daniela Piantola.

Andreas Vesalius retratado em Portrait of a Man Dressed in Black, por Jan Van Calcar - Foto: Wikipedia / PDM 1.0

Inovação científica e tipográfica

Escrito em latim, De Humani Corporis Fabrica – ou Da Organização do Corpo Humano – é dividido em sete partes ou “livros”, cada um sobre uma parte específica da anatomia humana: Livro I (ossos e juntas), Livro II (músculos), Livro III (coração e vasos sanguíneos), Livro IV (sistema nervoso), Livro V (órgãos abdominais), Livro VI (órgãos da região torácica) e Livro VII (descrição do cérebro). Um dos destaques da obra são as ilustrações. O Livro I traz desenhos de crânios, num dos primeiros estudos de etnologia comparada, enquanto o Livro VI já sugere uma semelhança entre o coração e um músculo. As ilustrações mais famosas são as dos músculos, no Livro II.

De Humani Corporis Fabrica tem nas representações dos músculos, que compõem o Livro II, sua marca registrada – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Seja por meio dos desenhos, cuja autoria e número de autores são postos em discussão — o nome mais forte é o do italiano Jan Steven van Calcar —, seja por meio do texto, os estudos de Vesalius foram importantes para romper com alguns mitos da sua época e explicar questões em aberto no que diz respeito à anatomia humana. Suas ilustrações mostram, por exemplo, que homens e mulheres possuem a mesma quantidade de costelas e de dentes — à época, muitos acreditavam que os homens possuíam um par de costelas e dois dentes a mais do que as mulheres. 

A museóloga Bianca Dettino, supervisora técnica da Coleção de Artes Visuais do IEB, dá ênfase também à representação do sistema nervoso. “Em sua obra, Vesalius já colocava os nervos conectados ao cérebro, à cabeça, e não ao coração, como se achava antes. As veias, por sua vez, corriam direto para o coração. Esse foi um grande avanço e estabeleceu uma anatomia muito próxima daquela que se tem hoje.”

Bianca conta que, para fazer o livro, Vesalius pendurava os corpos, de forma que o ilustrador pudesse registrar cada etapa do processo de dissecação. Isso se mostra evidente à medida que as páginas passam e o modelo vai perdendo a estabilidade conforme perde as partes de seu corpo.

No estágio final da ilustração, o corpo que serviu de base para os estudos de Vesalius, após a dissecação, já não tinha mais sustentação para ser mantido de pé, o que também foi registrado nas ilustrações – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Outra curiosidade são páginas intercaladas do livro, que juntas formam uma imagem contínua e trazem, ao fundo, referências à cidade de Roma e seus aquedutos, como mostra a foto abaixo:

Páginas intercaladas do livro formam uma imagem contínua, com o cenário que faz referências à cidade de Roma – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Com 700 páginas, o livro é majoritariamente composto de textos. Ele traz inovações também com relação à impressão, como aponta Mônica Bento, supervisora do Laboratório de Conservação e Restauro do IEB: “O final de uma palavra inteira no final de uma página se repete no começo da página seguinte”. Ela conta que os cadernos são todos demarcados com uma letra específica, pois, “na hora de desmontar, tem-se um mecanismo para saber que todas as páginas que tiverem determinada letra grafada pertencem a um mesmo caderno”.

Folhas de papel de trapo

O exemplar em posse da USP já passou por uma restauração pelo projeto Fapesp em 2000, e foi digitalizado. As especialistas creem que a capa-pergaminho que o envolve sugere uma restauração ainda anterior. Mônica explica que uma das principais razões pelas quais o livro está bem preservado é sua matéria-prima: “As folhas são de papel de trapo, mais resistente que o industrial, que tem uma carga química muito maior”.

No IEB, a obra deve receber uma caixa adequada para ficar armazenada – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

As regiões do livro em que mais se observam manchas e sinais de oxidação, poluição e idade são justamente aquelas que mais entraram em contato com a mão humana: as orelhas das páginas (que estão engorduradas) e as primeiras páginas — as páginas do meio estão mais bem conservadas. Além disso, o livro tem marcações com tinta ferrogálica, que é ácida e corrói o papel. Essas partes terão de ser restauradas. O livro deve passar por uma nova restauração, agora no IEB.

Antigas anotações foram feitas com tinta ferrogálica, nociva à conservação do livro, que por isso deve ser restaurado – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A história por trás da história

De Humani Corporis Fabrica traz consigo muitas histórias, a começar pelo método utilizado pelo autor para seus estudos, como conta Bianca: “Vesalius fazia a dissecação do corpo humano utilizando os corpos de criminosos, de homens condenados à morte e de pessoas que morreram de pragas, a maioria desenterrada de cemitérios. Embora nessas circunstâncias a dissecação fosse permitida, ele foi condenado pela Inquisição a fazer uma peregrinação em Jerusalém e morreu pouco depois”.

A ligação entre Vesalius, dissecação de corpos e a religião está exposta logo na primeira ilustração do livro. Na imagem, vê-se o autor apontando para a autópsia e para Deus, enquanto, ao seu redor, figuras como Cláudio Galeno (que fazia dissecação em macacos), Hipócrates (o pai da medicina) e Aristóteles se fazem presentes.

A primeira ilustração do De Humanis Corporis Fabrica reproduz uma dissecação, que é assistida por personagens como Hipócrates, Aristóteles e Galeno – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Das páginas para as telonas

Em 2022, a obra de Vesalius inspirou o documentário De Humani Corporis Fabrica, dirigido pela francesa Verena Paravel e pelo inglês Lucien Castaing-Taylor. O filme, que foi gravado ao longo de vários anos em diferentes hospitais de Paris, procura refletir, a partir da obra do médico belga, sobre a carne humana como paisagem a ser percebida. Ao lado, o trailer da obra, que foi exibida nos festivais de Cannes, de Toronto, e de Nova York, em 2022.

* Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro

**Estagiário sob supervisão de Simone Gomes


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