O número de cesarianas no Brasil está longe do patamar recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de que apenas 15% dos nascimentos sejam não naturais. Segundo o Ministério da Saúde, a taxa desse tipo de procedimento no Brasil se encontra em torno de 56%, com ampla variação entre os serviços públicos e privados. No Estado de São Paulo a situação não é diferente e, de acordo com o Portal do Governo Estadual, foram realizados pelo SUS 153 mil cesarianas em 2023, o que representa 49,41% do total, bem longe do que é preconizado pela OMS.
Há alguns fatores que explicam o alto número de cesáreas no Brasil, segundo especialistas. A médica assistente Patrícia Melli, do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HC-FMRP) da USP, credita esses altos índices de cesáreas à desinformação da paciente sobre os benefícios do parto normal para a mãe e para a criança.
Outro ponto abordado por Patrícia é o fato do trabalho de parto estar associado ao sofrimento e à dor na cultura brasileira. “As contrações uterinas são naturalmente dolorosas, mas acredito que ao esclarecer o motivo dessa dor, relacionando-a à fisiologia, a paciente compreende e em consequência fica mais receptiva ao parto natural. As contrações ajudam a dilatar o colo do útero, e empurrar o bebê para baixo, permitindo que eles passe pelo canal de parto.”
Sobre a dor durante esse processo, a obstetra destaca os avanços farmacológicos e técnicas não farmacológicas como massagens, hidroterapia, tecnologia de apoio, e até mesmo acupuntura, que ajudam no alívio da dor, e permitem que a paciente passe pelo período de dilatação e trabalho de parto de forma mais confortável e com qualidade.
Baixa remuneração
A remuneração médica, segundo Patrícia, é outro fator que influencia no aumento de partos por cesárea. “O médico que acompanha a paciente durante o parto vaginal precisa dedicar um tempo considerável, geralmente de oito a 12 horas, até que o trabalho seja concluído, enquanto uma cesariana consome cerca de uma hora, no máximo duas horas, dependendo da logística.”
A especialista afirma que esse cenário resulta em uma política de remuneração pouco favorável para o parto vaginal, pois, além de demandar um grande comprometimento de tempo por parte do médico, ele muitas vezes precisa abrir mão de sua agenda de consultas.
De acordo com o Portal do Governo do Estado de São Paulo, para estimular partos normais em Santas Casas e entidades filantrópicas conveniadas ao SUS, o Governo de São Paulo decidiu aumentar em 400% o valor pago aos médicos, comparado ao estabelecido pelo Ministério da Saúde. Desde janeiro de 2024, os valores do programa Tabela SUS Paulista foram reajustados. A remuneração para partos normais subiu de R$ 443 para R$ 2.217, enquanto para cesarianas o valor aumentou em 300%, passando de R$ 545 para R$ 2.182.
No entanto, para a obstetra, o valor adicional pago para o parto vaginal em comparação à cesárea pode não ser um incentivo financeiro significativo. “O recurso mais caro que temos é o tempo, independentemente da profissão, e parto normal demanda horas.”
Patrícia propõe uma política de atendimento multidisciplinar. “A presença de enfermeiras obstétricas ao lado da paciente durante o trabalho de parto poderia otimizar o tempo e os recursos médicos. Assim como a presença de um acompanhante escolhido pela gestante, um direito garantido por lei, que proporciona maior conforto e segurança à paciente.”
A legislação que assegura a escolha e permanência do acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato no Brasil, tanto em estabelecimentos públicos quanto privados de saúde é a Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005.
Dados da OMS
Patrícia explica que a recomendação da OMS, de que apenas 15% dos nascimentos sejam não naturais, é voltada especificamente para mulheres com gestação de risco habitual ou baixo risco, ou seja, quando mãe e bebê não apresentam condições ou fatores que aumentem significativamente a probabilidade de complicações durante a gravidez, o parto ou o pós-parto, enquanto para casos de gestação alto risco essa taxa pode chegar a 30%.
“Na sua maioria, a gestante de risco habitual não possui comorbidades. Ela não é hipertensa, não é diabética, e seu feto cresce de maneira adequada, sem restrições. Além disso, ela não tem nenhuma condição que exija acelerar o nascimento da criança”, comenta a especialista.
Impactos da cesariana
A cesariana é um procedimento cirúrgico que, quando bem indicada, pode salvar vidas, tanto da mãe quanto do bebê. “No entanto, se realizada sem indicação médica, o parto não natural pode ser prejudicial, e ocasionar impactos a curto, médio e a longo prazo na vida da gestante”, diz Patrícia.
A médica lembra que, como procedimento cirúrgico, na cesariana há riscos de infecção e lesões em estruturas próximas ao útero durante o procedimento cirúrgico, como na bexiga e nas alças intestinais. A obstetra também destaca as cicatrizes no útero e no abdômen da paciente ocasionadas pela cesariana, que podem prejudicar uma nova gestação. “A recuperação pós-operatória é mais delicada, e pode dificultar nos cuidados com o recém-nascido”, afirma.
Por outro lado, diz Patrícia, “a pressão exercida sobre o tórax do bebê, que desencadeia a expulsão do líquido amniótico, durante o parto natural, favorece a adaptação do bebê ao ambiente extrauterino”.
Ela conclui lembrando da importância do contato do bebê com a microbiota vaginal e intestinal da mãe para o seu desenvolvimento. “Estudos sugerem que bebês nascidos por cesariana podem apresentar maior propensão a alergias e problemas intestinais devido à falta de contato com essas microbiotas.”
*Estagiária sob supervisão de Ferraz Junior e Rose Talamone
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