Sabina Kundman: paixão e tenacidade

Paulo Roberto Massaro é professor de Língua Francesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 31/07/2017 - Publicado há 7 anos

Paulo Roberto Massaro – Foto: Arquivo pessoal

A nossa Sabina partiu na véspera de seu 85º aniversário de nascimento – 29 de junho deste 2017. Se, por um lado, sua ausência física nos entristece e abate, por outro, consolamo-nos, na profunda certeza de sua indelével presença nas trajetórias de vida de todos os que tiveram o privilégio de apprendre, graças a ela.

No relatório de 2014 do Observatoire de la Langue Française de l’Organisation Internationale de la Francophonie, designa-se por “galáxia francófona” a interação entre planetas onde se nasce e vive em francês; outros nos quais a aquisição da língua francesa se dá através da escolarização, sendo que sua prática se vincula a determinadas relações sociais; por fim, outros planetas ainda, nos quais a aprendizagem desta língua estrangeira é fruto de uma escolha política, ou institucional, bem como de ordem individual em incontáveis casos.

Ao longo dos últimos sessenta e quatro anos, quem teria explorado e vivenciado o planeta FLE[1] no Brasil com mais entrega de si, com maior paixão e tenacidade do que Maria Sabina Kundman? Engajamento reconhecido inclusive pela República Francesa, que a condecorou com a Ordre des Palmes Académiques, no grau de Chevalier, em 1970 e no grau de Officier em 2003.

É igualmente consenso entre seus colegas – brasileiros e franceses – que a sensível senhora de pequena estatura se tornava gigante a cada batalha em prol da oferta plurilíngue e multicultural como um dos elementos essenciais para a melhoria do ensino público brasileiro. Ao longo de sua carreira, por diversas vezes militou junto a organismos franceses e brasileiros na defesa deste ideal. Além de ter participado ativamente da fundação e da consolidação da Associação dos Professores de Francês do Estado de São Paulo, foi responsável por estágios de formação continuada de professores de línguas estrangeiras lotados nos Centros de Ensino de Línguas (CEL), promovidos pela então denominada Coordenadoria Especial de Normas Pedagógicas (Cenp) da Secretaria Estadual de Educação, com o apoio do Consulado Geral da França em São Paulo e da Aliança Francesa.

A progressiva solidificação da Cadeira de Língua e Literatura Francesa da Universidade de São Paulo, cujas atividades foram iniciadas em 1934 – mesmo ano da criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras -, não teria sido possível sem a articulação entre catedráticos enviados pelos Serviços Culturais da Embaixada da França no Brasil e a equipe de professores locais, dentre os quais Maria Sabina Kundman foi, sem sombra de dúvida, um dos expoentes.

O Curso de Língua e Literatura Francesa apresenta, do ponto de vista acadêmico, dois momentos bem significativos: um primeiro, de 1934 a 1974, marcado pela presença dos professores franceses como regentes do curso, e o segundo, a partir de 1974, caracterizado pela regência pedagógica e administrativa de professores locais.

(KUNDMAN, 1994)[2]

 

Apaixonada pelos Estudos Linguísticos e Didáticos, soube como poucos colegas de sua época não só acompanhar, mas principalmente se apropriar das extremamente rápidas transformações tecnológicas e teórico-metodológicas ocorridas a partir de meados dos anos 60 no domínio do ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras. A metodologia Estrutural Global Áudio-Visual, a guinada comunicativa, as abordagens ditas não convencionais, a Teoria do Lúdico, o desenvolvimento na América Latina dos pressupostos fundadores do Francês Instrumental, a Abordagem por Tarefas, o Francês com Objetivos Específicos, a Perspectiva Accional e seus desdobramentos no campo do ensino a distância marcam a relevância de uma postura didática unívoca que Maria Sabina Kundman sempre cultivou e defendeu persistentemente: o sujeito-aprendiz no centro da ação pedagógica.

Raro não é ouvir depoimentos das centenas de alunos da Graduação em Letras (Habilitação: Francês) que lembram do imenso prazer que sentiam ao aprender a língua-cultura francesa durante suas aulas, que, embora globalmente orientadas por determinado livro didático, eram sempre enriquecidas por pilhas de documentos extras, por ela concebidos. Se a pilha diária podia causar certo estranhamento por aparente confusão, ao olhar mais atento, a organicidade se revelava na rebuscada atenção à diversidade dos perfis de aprendizagem, dos analíticos aos sintéticos, dos visuais aos auditivos, bem como aos múltiplos percursos de aprendizagem. E às trajetórias individuais.

Sabina nos incentivava a gravar a própria voz usando os diálogos do material didático. Para tal, conseguiu o apoio institucional do laboratório de rádio da ECA, onde podíamos gravar nossas vozes em estúdio de gravação (naquele momento, o laboratório de áudio da Letras só existia enquanto sala vazia, vindo a ser instalado algum tempo depois). Posteriormente, podíamos nos escutar e comparar nossa prosódia e entonação com as gravações originais das fitas cassete que acompanhavam o livro. Se hoje a internet está repleta de sítios que oferecem esse tipo de possibilidade ao aprendiz de idiomas, no final da década de 80 ou início da década de 90, isso talvez nem se cogitasse no ensino superior.

(PHILIPPOV, no prelo)[3]

 

Para além das atividades de laboratório, as canções francesas, as míticas de Piaf, sem dúvida, mas também o hit-parade das rádios internacionais marcaram indelevelmente nossa memória de alunos. De generosidade ímpar, dispunha-se a emprestar, fornecer livros, revistas, histórias em quadrinhos, discos, fitas cassete; em suma, tudo o que pudesse de alguma forma rentabilizar o progresso da aquisição-aprendizagem de FLE.

Da mesma forma, orientandos de mestrado e doutorado não teriam conseguido desenvolver suas respectivas pesquisas sem o acesso ilimitado a seu acervo pessoal. Aliás, quantas vezes a última publicação da área, ou, pelo contrário, a mais rara no Brasil, não chegou à nossa residência em pacote de presente, enviada pela profª. Sabina, fosse por táxi, em São Paulo, fosse por sedex 10, em outras cidades, no momento mais inesperado? Quantos telefonemas (por vezes interurbanos) não foram feitos bem cedinho para “tão só” motivar e incentivar?

Dentre as inúmeras ações que marcaram sua trajetória, destaca-se ainda sua determinação na implementação e coordenação dos Cursos Extracurriculares de Francês, vinculados academicamente ao Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e administrativamente ao Serviço de Cultura e Extensão da mesma instituição. Além de ter oportunizado o acesso à aprendizagem da língua-cultura francesa a milhares de aprendizes oriundos tanto da comunidade interna quanto da comunidade externa à Universidade, o projeto garantiu a instauração de um verdadeiro laboratório de pesquisa-ação, no qual licenciandos e pós-graduandos em Francês puderam testar procedimentos inovadores e produzir materiais didáticos especializados. Focalizando a prática docente sob uma perspectiva crítico-reflexiva, permitindo tanto a experimentação de estratégias de ensino criativas quanto a descrição científica e ainda a análise crítica do processo de aquisição-aprendizagem de uma língua estrangeira, os Cursos Extracurriculares de Francês, criados por ela em 1999[4], desencadeiam assim, até a presente data, o aperfeiçoamento das competências profissionais dos participantes do projeto, professores em serviço.

Constantemente vigilante a tudo o que se produzia academicamente, sua participação em congressos, simpósios e cursos de formação continuada era caracterizada por sua mão levantada, pedindo a palavra, incansável, quando se tratava inclusive de redigir moções pleiteando o plurilinguismo na rede pública de ensino. Entrando e saindo das salas de comunicações, lá estava Sabina, caderneta na mão, onipresente, persistente em buscar referências bibliográficas pertinentes e verdadeiramente engajada em compartilhá-las.

Realmente digna do raríssimo título de Professora na essência do termo, a aguerrida senhora semeou, fez brotar e desabrochar os projetos de mestrado e/ou doutorado de seus orientandos, fertilizando-os, dia a dia, com a água da dúvida para que nunca nos contentássemos com respostas unívocas, tendo em vista a complexidade dos fenômenos que assegurariam, por hipótese, a aquisição de língua(s)-cultura(s).

A chama de sua vida terrestre se apagou, mas sua luz continuará para sempre sobre cada um de nós, por ela formados: diretamente, através de disciplinas ministradas nos níveis de graduação, pós-graduação e de cursos de extensão oferecidos, pela supervisão de estágios de prática docente, ou ainda pela orientação em nível de pós-graduação; assim como indiretamente, pelo convívio. Professores, tradutores, editores, profissionais, em suma, que trabalham atualmente em múltiplos contextos, em diferentes Estados brasileiros e até mesmo no exterior, promovendo, cada um a seu modo, o entrelaçamento da língua-cultura materna à língua francesa e às culturas francófonas. A nós, restam as saudades do brilho do seu olhar e da ternura do timbre de sua voz.

 

[1] Francês, Língua Estrangeira.

[2] KUNDMAN, Maria Sabina. Língua e Literatura Francesa. Estudos Avançados. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. 1994, vol.8, n.22, pp.437-443. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141994000300060.

[3] Trecho da contribuição de Renata Philippov para a seção Canto coral (coleção de depoimentos) da obra de MASSARO & OLIVEIRA. Ensino e aprendizagem de francês no Brasil: múltiplas veredas de pesquisa, em homenagem a Maria Sabina Kundman (no prelo).

[4] Após a aposentadoria de sua idealizadora em 2002, a continuidade do projeto foi sucessivamente assegurada pelos professores doutores Véronique Braun Dahlet, Lígia Fonseca Ferreira, Verónica Galindez Jorge, Paulo Roberto Massaro e Eliane Gouvêa Lousada.


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