Razão e violência. O software do ódio ou da paz?

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 Publicado: 25/09/2024 às 20:18

Xingamento em política é habito antigo. Já foi moda cortar cabeças de rivais.

Shakespeare (1564-1616) que o diga. Atualmente o costume nas redes envolve a produção de imagens agressivas, tensão e cortes. Na sequência, um fragmento permite postagens no celular e na TV.

O impacto de uma imagem e a sua repetição estimulam a vitória de um candidato na disputa política. O perigo não é a informação errada sobre o fato ocorrido, mas a reprodução intensa da violência, do ódio e da mentira. A mentira repetida muitas vezes aparenta ser verdade. Para combatê-la é necessário, igualmente, a repetição de outra mensagem, se possível uma narrativa com maior linearidade, acompanhada (se possível) de um desmentido imediato.

Em razão da monetarização das redes, difunde-se com mais frequência a violência, em linguagem visual, e não propostas, narração sobre projetos.

Repetição e fragmentação são instrumentos básicos para o funcionamento da linguagem visual.

Cada época carrega a sua linguagem (escrita, visual, sonora) predileta. Hoje, causaria risos um político chamar o seu adversário de mentecapto, ou o político A acusar o político B de alcoviteiro ou ainda o político Y nomear seu opositor como calhorda, beócio, energúmeno, paspalho ou palerma. Hoje, a leveza destas palavras sugere riso.

Sociedades violentas e vocacionadas para as armas atiram em presidentes, políticos e estudantes. Fotografam e filmam. Tiro ao alvo é o esporte predileto para quem gosta de armas. No caso de tiro ao presidente, há chance do atirador se tornar protagonista nas redes sociais, antes de ser morto ou preso.

Existem culturas onde a etiqueta prevalece. Os ingleses, por exemplo, não abrem mão da majestade em suas contendas políticas. Como observou Olivier Cromwell (1599-1658) ao tratar da decapitação do rei Carlos I. Ele lembrou da importância em manter a coroa na cabeça do monarca até o desfecho final da execução. Com a restauração da monarquia, Carlos II se manteve fiel à etiqueta. Exumou os restos mortais de Cromwell, falecido em 1658. Conservando a tradição, em 1661, mandou enforcar e cortar a cabeça do defunto. A cabeça foi pendurada na frente do Palácio Westminster, onde estão instaladas as duas Câmaras do Parlamento britânico. Cromwell havia morrido três anos antes, por doença. Trataram o defunto de acordo com a etiqueta, cortaram sua cabeça.

Já os franceses, apegados à ideia de cidadania optaram por decapitar o rei Luís XVI sem pompa. Trataram o rei como um mero cidadão de nome Luís Capeto. Ele foi morto sem qualquer adereço, expressão de sua antiga majestade.

Sobre antropofagia de civilizados

Em 1294, em Berna, o menino Rudolf foi encontrado morto. Em clima de conspiração contra os judeus, a morte foi atribuída a eles. No século 16, uma fonte foi construída em Berna com um homem comendo crianças. Alguns atribuem, em razão do formato do chapéu, ser a figura uma representação de um judeu. Com relação aos comunistas, a mesma metáfora. Seus opositores espalharam pelo mundo uma fábula de que eles comiam crianças. Em tempos de filhos pets, o tema sofreu mutações necessárias. Haitianos comem pets. O objetivo político, no passado e no presente, é semelhante: criar identidade por meio de histórias de horror.

Analistas das culturas

Clausewitz (1780-1831), estrategista prussiano, experiente em diversos combates (entre eles, em Waterloo, contra Napoleão), cunhou a frase “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Escreveu um livro sobre o tema. Usou a razão e a experiência em campo de batalha para deixar de herança a obra Da guerra.

Emoção e razão fazem parte da cultura política. Os pesos variam de acordo com a época e as particularidades históricas, culturais e tecnológicas de cada sociedade. Atualmente a emoção está em alta, manipulada pela via tecnológica.

Entre guilhotinas, tiros e xingamentos; entre sangue, política e guerra, encontramos sociedades com maior ou menor capacidade de reagir a favor da guerra ou da paz. A história nos apresenta alguns líderes, raros, capazes de desmontar a bomba emocional plantada para insuflar e deflagrar o conflito favorecendo o desmonte da política e da democracia.

Mahatma Gandhi, Martin Luther King Jr., Nelson Mandela são exemplos de personagens envolvidos com a negação da violência, com o respeito à dignidade e a valorização da vida humana. Sensibilidade política, direito à não violência e diplomacia fazem parte deste esforço de conciliação desenhado por eles. É possível incluir neste pacote alguns organismos internacionais, apesar das limitações ditadas pela soberania das nações.

Desarmar as “bombas” da violência produzidas em diferentes sociedades marcadas por tradições distintas é um desafio. Demanda conhecimento da vida institucional, cultural e de arte para desmontar as emoções, gatilhos produzidos em diferentes linguagens.

Da fábrica de bombas

Atualmente as redes sociais permitem a rápida identificação, organização e protagonismo instantâneo de políticos hábeis no fabrico de tensão e ódio. Eles encontram no mundo da computação e dos bancos de dados, maneiras de processar enormes quantidades de informação, levando em conta as delicadezas emocionais de cada internauta.

O acesso intenso dos consumidores às redes favoreceu a formação de grupos com hábitos semelhantes de consumo. O reconhecimento envolve perfis emocionais, fragilizando, se necessário, o acesso instantâneo à razão. Exemplo: Eu não devia gastar, mas esta blusinha é uma graça! Um clique no mouse ou toque na tela e pronto. Comprei! Este ingênuo mecanismo de venda capta também insatisfações, ressentimentos, temores. O medo, a raiva e o desejo de consumo criam identidades, formam partidos de raivosos com identidades de interesses próprios. Por exemplo, grupos de entregadores estressados, grupos de estudantes fora da escola, grupos contra mulheres independentes e tantos outros agrupamentos possíveis de serem reconhecidos pela IA. Organizados, se transformam em instrumentos manipulados por partidos políticos. Quanto mais ódio, mais fácil.

O glacê do funcionamento das novas tecnologias é a repetição.

O software de reconhecimento emocional utilizado pelos políticos envolvidos na caça aos votos transforma ressentimentos e injustiças sociais em agremiações políticas. As informações processadas permitem montar a bomba do ódio. Atualmente, a tecnologia garante um gatilho (identidade) com altas doses de emoção (ódio) e fragmentação do pensamento dificultando o acesso, imediato, à razão.

O software da violência é adequado às disputas políticas. Ele roda rápido e agrega internautas.

Perigo à vista.

É necessário produzir um outro software apetitoso, afetuoso, rápido o suficiente para mobilizar, mais e melhor, do que o movido pelo ódio.

Alguém produziu este software?

Da paz

Existem culturas onde a paz foi e é objeto de reflexão política. Para pensar sobre o tema sigo a trilha, ingênua, dos anos de 1960. Flor no cabelo, paz e amor.

Gandhi, personagem formado em Direito na Inglaterra, na University College London, instituição pública, disciplinado, atento às demandas populares, buscou as raízes do problema no funcionamento do Congresso e Parlamento indiano. Escutou os vilarejos. Sempre. Elaborou uma teoria baseada na desobediência civil como direito à não violência. Proposta aparentemente inútil, num primeiro momento, correspondeu a uma revolução da paisagem mental das lutas pela independência.

O primeiro passo nos seus ensinamentos era não reagir à violência de modo automático. Dificílimo. Ele ensinou e treinou os seus correligionários. Na sequência, o exercício exigia manter a dignidade nos confrontos consigo mesmo e com o opositor. Difícil. Depois, não heroicizar a violência e a guerra. Duro. Caminhando, sugeriu saudar à vida, não humilhar ninguém e valorizar a escuta dos pequenos problemas cotidianos. Educou caminhando, passo a passo.

A frase para a venda do software Gandhi era: “Olho por olho, o mundo acabará cego”.

Hoje

No debate da disputa eleitoral para a Prefeitura de São Paulo em 2024, o candidato especialista em redes sociais deu o start do seu software do tipo ódio. Estimulou a raiva a partir do ponto fraco de cada candidato. (É bom lembrar que todos os humanos têm pontos fracos.) Escolheu o gatilho (uma carteira de trabalho ou um pai, entre outras provocações) para doer no coração do opositor.

Os candidatos tendentes ao uso de softwares menos agressivos caíram na arapuca. Movidos pela indignação, instantaneamente passaram a utilizar o mesmo software do concorrente, o da violência. Mas, como não são especialistas no mata-mata, deu ruim. Participaram da cena para ser repetida milhares de vezes nas mídias do opositor.

Repetição, o crack político da linguagem visual.

Explico:

Não há nada pior para uma filha do que amar o pai e ser acusada de abandono. Olionaldo Francisco de Pontes, Naldo, pai de Tabata Amaral, cometeu o suicídio aos 39 anos lutando contra o crack. O candidato desceu aos infernos e ativou o gatilho contra a sua opositora. Culpou Tabata pela morte do pai, supostamente abandonado pela filha. Mentira pesada. Montou a arapuca esperando o revide, um impulso inconsciente, em direção ao uso do software da violência. O dele.

A resposta, diante da mentira criminosa, segundo a lição de Gandhi, é não reagir. Dificílimo. O segundo passo do ensinamento é manter a lucidez, compreender o gatilho acionado pelo opositor. A acusação, no caso analisado, criava uma relação falsa entre a morte do pai da candidata e uma viagem, uma bolsa de estudos, prêmio por sua dedicação nos afazeres escolares. É violento para quem se esforça na escola, ganhar uma bolsa e ter a trajetória transformada em egoísmo. Dói. O enfrentamento da dor exige controle da emoção e acesso instantâneo da razão.

Compreender a lógica processada pelo software da violência ajuda a enfrentar o desafio.

Desmerecer a educação, a bolsa de estudos? Por quê?

Trata-se de contrapor o esforço necessário nos estudos, em olimpíadas de matemática, e a “facilidade” de ganhar fortunas rapidamente como empreendedor/comunicador. Sonho mentiroso de venda fácil. Provavelmente o software da violência esteja introduzindo um tema para um debate futuro. Uma declaração de guerra fake entre a educação e o empreendedorismo. Material para as redes.

Observando diferentes contextos, mas apreciando o azeite da história, relembro a violência das lutas pela independência, conflito sangrento entre ingleses e os revolucionários indianos. Os números de mortos giraram em torno de 100 milhões ao longo do processo de independência. Entre tantas mortes, é sugestivo compreender as diversas estratégias políticas utilizadas em meio à luta. A violência se apresentava como única alternativa para obter a independência do império colonial inglês. Pensar uma outra estratégia parecia inútil, fadada ao insucesso. Mas, surpreendentemente, a receita de desobediência civil funcionou. A Marcha do Sal (1930), caminhada de 400 km durante 25 dias em direção ao litoral, exemplifica uma ideia inusitada sendo posta em prática por Gandhi e seus apoiadores. Gandhi valorizava, ao caminhar, a escuta em cada pequena cidade onde parava para descansar.

Resumo da ópera: prezado leitor, embora a razão experimente a maior crise da modernidade, ela ainda é capaz de produzir softwares, rápidos o suficiente, para evitar o gatilho da violência, em favor da paz possível.

Doce ilusão?

Aposto no software Gandhi.

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