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Alfabetização cartográfica ajuda a entender mapas e suas imperfeições

Impressos ou digitais, mapas são distorcidos e trazem visões de mundo, objetivos e linguagem de quem os produz; Laboratório de Cartografia e Geoprocessamento da USP estuda o tema

09/06/2021

Karina Tarasiuk

Do ponto de vista da cartografia, que busca representar graficamente uma área geográfica, os mapas são imperfeitos e distorcidos. A explicação para isso está na impossibilidade de representar em um plano cartesiano algo que não é plano. Para representar a superfície curva da Terra é necessário fazer projeções. Existem muitas delas, de vários tipos, mas poucas são utilizadas com frequência. 

“Cada projeção pode preservar ou distorcer a forma, o tamanho ou os ângulos do mapa. Não há nenhuma projeção sem deformação, mas, dependendo do objetivo do mapeamento, algumas são toleráveis e outras não.” A explicação é da professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em São Paulo, Rúbia Gomes Morato. Desde 2015, ela coordena o Laboratório de Cartografia e Geoprocessamento da USP, conhecido como Labcart.

Quanto maior a extensão da área mapeada, mais distorções são incorporadas porque torna-se necessário transformar mais curvatura para o plano. Em mapas de áreas reduzidas, há menos distorções. Já nos mapas-múndi, é possível ver todo o globo. “É análogo a ver uma pessoa de frente e de costas ao mesmo tempo. É impossível produzir uma representação que dê conta disso sem distorções”, explica Rúbia.

A Projeção de Mercator é a mais conhecida e utilizada. Ela foi criada pelo geógrafo, cartógrafo e matemático Gerhard Mercator (1512-1594). É do tipo conforme, ou seja, mantém o formato dos continentes, mas altera o tamanho da área. É uma projeção considerada eurocêntrica, já que amplia a área da Europa e da América do Norte e reduz a área da África e das Américas Central e do Sul.

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Rúbia Gomes Morato, coordenadora do Labcart - Foto: Arquivo pessoal

“Os mapas são um modelo simplificado da realidade”, ressalta Rúbia, “com a seleção das informações consideradas mais relevantes por quem realiza o mapeamento. Essa seleção é necessária para reduzir a complexidade”. 

O autor do mapa pode valorizar alguns elementos e desconsiderar outros. O que o mapa destaca ou não revela a visão de mundo de quem o elaborou e os interesses envolvidos, podendo incluir preconceitos e a omissão de informações inconvenientes. Os mapas também são uma forma de legitimar uma visão de mundo. “Então é muito importante ser cartograficamente alfabetizado, para avaliar criticamente os mapas, identificando os problemas”, alerta a professora da USP.

O mapa-múndi pode ser invertido?

Os mapas que vemos mais frequentemente têm o norte para cima. Do ponto de vista técnico, explica Rúbia, é necessário que o mapa tenha uma orientação definida, mas a escolha do norte para cima é uma convenção. “Poderia ser o sul, o leste ou o oeste. Essa convenção vicia o nosso olhar,  e algo diferente disso chega a causar estranhamento.  Há quem pense que está errado, mas não há problema algum. Pelo contrário, o exercício de ver o mundo de outra forma nos ajuda a ganhar mais consciência sobre o modo como os mapas são feitos.”

O artista uruguaio Joaquín Torres García produziu a América invertida em 1943, que chama a atenção para a necessidade da América do Sul se apresentar com a sua própria visão, e não reproduzindo visões de mundo de fora. Existe também uma tirinha da Mafalda que explora essa questão.

América Invertida (1943), de Joaquín Torres García – Imagem: Reprodução/ Wikipédia

Tirinha da personagem Mafalda, criada pelo cartunista Quino – Imagem: Reprodução/ La Baldrich

“Os mapas permitem organizar, apresentar e estudar relações entre aspectos da realidade que não ficam visíveis de outra maneira. Isso ajuda a entender o mudo, identificar problemas e pensar em propostas de intervenção mais direcionadas e eficientes”, responde Rúbia.

Os mapas na Era Google

Os mapas evoluíram muito com a tecnologia.  Um ponto positivo dessa mudança é a possibilidade de trabalhar com uma quantidade muito maior de dados. É possível gerar modelos digitais de terreno com dados centimétricos, ou elaborar um mapeamento com informações de imagens de satélites com muitos detalhes. A quantidade de informação é cada vez mais precisa. 

No entanto, há uma questão negativa, segundo a geógrafa e pesquisadora no Labcart da USP Michelle Odete dos Santos. “Muitas pessoas que não se atêm ao aprendizado teórico da cartografia vêm elaborando mapas e informações que, muitas vezes, estão, do ponto de vista da linguagem cartográfica, incorretos.” 

A qualidade da informação também pode ser comprometida. “Hoje em dia, utilizando a tecnologia, temos uma série de parâmetros para construir essas informações, mas muita gente não tem o conhecimento necessário para isso e dissemina informações incorretas ou sem qualidade”, lembra Michelle. 

A pesquisadora vê o Google Maps de forma positiva, como uma ferramenta de democratização. “Vai muito além de apenas um guia de ruas porque consegue apontar, em tempo próximo do real, locais específicos com tridimensionalidade. Você tem que ter apenas um celular e a vontade de mexer.” 

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Michelle Odete dos Santos, pesquisadora do Labcart - Foto: Arquivo pessoal

Ela cita ferramentas importantes do programa, como imagens de satélites. “Isso traz um conhecimento diferenciado do espaço, uma visão mais abrangente da distribuição do espaço do próprio dia a dia. Além disso, é uma ferramenta importante para trabalho, como o caso de motoristas de aplicativo. É uma ferramenta para acrescentar e democratizar essa informação mais cotidiana.”

Carro do Google Street View que coleta imagens usando câmeras especiais, além de fazer automaticamente a combinação das fotos tiradas com a localização através de GPS - Foto: Pixabay

Google Maps é uma ferramenta de GPS com aplicativo disponível para celulares que permite ver o trajeto e rotas de trânsito, entre várias outras funcionalidades - Foto: Pixabay

Já Rúbia destaca outro ponto. Apesar de muito útil, o Google Maps também é sujeito a pressões políticas e comerciais. “Em regiões de conflitos sobre fronteiras, por exemplo, o Google apresenta a versão da fronteira mais conveniente, de acordo com a localização de quem acessa”, explica a coordenadora do Labcart.

A quantidade e a qualidade das informações são variáveis de acordo com o poder econômico das áreas. Há informações mais precisas e em maior quantidade acerca dos bairros valorizados economicamente. Nesses bairros, a velocidade de atualização é maior. Ao mesmo tempo, falta informação sobre as periferias urbanas, pequenas cidades do interior e comunidades.

“Há pressões de prefeituras e interesses turísticos e imobiliários para que o Google reduza a visibilidade de elementos indesejados ou inconvenientes na paisagem. Há pressão para evitar termos como favelas, não pela estigmatização que as favelas sofrem, mas numa tentativa de torná-las invisíveis para não desvalorizar empreendimentos imobiliários”, Rúbia exemplifica.

Mapeadores colaborativos

Existem iniciativas colaborativas, como o Openstreetmap e o YouthMappers, que contam com voluntários que vivem e conhecem áreas onde os mapeamentos oficiais são deficitários. Esses grupos realizam ações de mapeamento voltadas para enfrentar problemas locais, frequentemente com o uso de softwares livres em smartphones.  

O treinamento dos voluntários é importante, pois o ideal é que participem da definição das estratégias e se tornem autônomos para a realização dos mapeamentos. A capacitação de mulheres, indígenas, negros e outros grupos vulneráveis, segundo Rúbia, é outro ponto relevante.

Por meio de iniciativas assim, agentes de saúde vêm sendo treinados para tornar o trabalho de combate a epidemias mais eficiente em periferias urbanas, líderes comunitários realizam levantamentos das demandas em suas áreas de atuação, localidades atingidas por catástrofes se organizam para a recuperação. “Existem trabalhos belíssimos”, conta Rúbia.

Acompanhe as atividades do Labcart pelo Facebook www.facebook.com/labcartusp ou pelo site http://labcart.fflch.usp.br