Neste primeiro ano eu quero enfatizar duas áreas de pesquisa, em que a USP pode ajudar muito. Uma é o que a gente chama de restauração florestal urbana — vamos fazer um estudo para ver o que vai acontecer com a cidade de São Paulo com 1,5 grau de aquecimento, ou 2,5 graus de aquecimento, e entender como a restauração florestal urbana poderia amenizar esses impactos. Outra prioridade, junto com o Cemaden e outras universidades, será criar um curso para o ensino fundamental e médio, para ensinar às crianças e aos jovens o risco das mudanças climáticas, o risco do desmatamento, do fogo, etc. Queremos preparar as crianças para o que está acontecendo, porque a gente percebe que é muito difícil mudar o comportamento dos adultos. Então, a gente precisa começar a fazer esses cursos, que já existem em outros países.
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Ações humanas estão provocando um ecocídio planetário, diz carlos nobre
Pesquisador vinculado ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) vai assumir nova cátedra de Clima e Sustentabilidade da USP
Carlos Nobre foi um dos palestrantes do USP Pensa Brasil 2024, em agosto deste ano. Ao fundo, tela com o título da palestra: Emergência Climática, Desafios para a Humanidade – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Ecocídio. Se você ainda não conhece esta palavra, é bom ir se familiarizando com ela, pois esse é o que nos aguarda num futuro muito próximo se não começarmos a reduzir imediatamente — e drasticamente — as emissões de gases de efeito estufa para a atmosfera: um “suicídio ecológico”, que poderá extinguir milhares de espécies, aniquilar biomas e tornar grande parte do planeta inabitável até mesmo para nós, seres humanos. Palavras de Carlos Nobre, pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo.
Um dos climatologistas mais renomados do País, Nobre será o primeiro titular de uma nova cátedra criada pela USP, com o intuito de agregar esforços e fomentar novas iniciativas de pesquisa sobre os temas Clima e Sustentabilidade. A cerimônia de posse e lançamento da cátedra será no dia 18 de dezembro, às 14 horas, na Sala do Conselho Universitário; ocasião em que Nobre proferirá a conferência Emergência Climática: Desafios e Perspectivas para a Humanidade. O evento será transmitido on-line pelo site e pelo canal do IEA. Inscrições podem ser feitas neste link.
“Se a gente continuar emitindo gás carbônico como emitimos hoje, o aquecimento vai chegar a 2,5 graus em 2050, e aí atingiremos muitos pontos de não retorno, que vão liberar uma quantidade gigantesca de gás carbônico”, afirma Nobre, em entrevista ao Jornal da USP. A partir daí, reações em cadeia podem elevar a temperatura da Terra a níveis ainda mais alarmantes, rapidamente. “Se você chega a 4 graus, a Terra começa a esquentar tanto os oceanos que não só acaba com a biodiversidade oceânica como libera uma quantidade gigantesca de metano que está congelado no fundo dos oceanos, principalmente no Ártico. Se esse metano é liberado, na metade do próximo século a temperatura já terá aumentado entre 8 e 10 graus. Nesse nível de aquecimento, grande parte da superfície terrestre é inabitável para seres humanos e você tem a sexta maior extinção de biodiversidade do planeta.”
Especialista em ciências atmosféricas, mudanças climáticas e suas interações com os sistemas naturais da Terra — em especial, com a Amazônia —, Nobre fez carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), onde atuou como pesquisador durante três décadas e contribuiu para vários relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC). Foi ele quem formulou, no início dos anos 1990, a hipótese de “savanização” da floresta amazônica, causada por uma combinação de efeitos do desmatamento e do aquecimento global, que pode levar parte do bioma ao colapso nas próximas décadas.
Nobre, de 71 anos, conversou com o Jornal da USP por telefone em 25 de novembro, logo após retornar da Conferência do Clima das Nações Unidas (COP 29) em Baku, no Azerbaijão. A reunião terminou de forma frustrante, com uma promessa de apenas US$ 300 bilhões por ano dos países ricos para ajudar os países menos desenvolvidos a enfrentar a crise climática, em vez de US$ 1,3 trilhão por ano, que era o valor almejado nas negociações.
Leia abaixo os destaques da entrevista.
O senhor acaba de retornar de Baku. Qual o seu sentimento ao final de mais essa COP?
Eu não fiquei muito tempo lá; fiquei três dias e meio. Mas, assim, eu não vi nenhuma grande discussão. O que todo mundo dizia o tempo todo era que precisamos adotar metas “alinhadas com 1,5 grau” (de aquecimento)1. Olha, meu amigo, nós estamos muito próximos disso. Faz 16 meses que a temperatura já atingiu 1,5 grau e, se ela continuar nesse patamar em 2025, há uma alta probabilidade de a ciência bater o martelo e dizer que ultrapassamos esse limite. As metas do Acordo de Paris falam em reduzir 43% das emissões até 2030 e zerar as emissões líquidas até 20502. Se batermos 1,5 agora, já em 2025 ou 2026, não existe nenhuma possibilidade de segurar o aquecimento nesse patamar; aí os estudos já mostram que a gente atingiria 2,5 graus em 2050. É um ecocídio para o planeta! E não houve nenhuma discussão na COP de Baku —pelo menos no tempo em que eu estive lá — sobre a realidade desse risco.
O que o senhor está dizendo é que as negociações diplomáticas estão totalmente desconectadas do que a ciência está mostrando, sobre a realidade do clima. E aí, como é que a gente muda isso?
Foi uma infelicidade ter colocado três COPs em países petrolíferos3. Acho que o caminho agora é colocar COPs em países muito vulneráveis; países como o Brasil e vários outros. A COP 30, em Belém, vai ser a mais desafiadora, porque ela não vai mais poder falar em zerar as emissões em 2050; vai ter que antecipar muito! Interessante que, no final da reunião do G204, o presidente Lula fez uma declaração muito inovadora: que nós precisamos zerar as emissões líquidas em 2040 ou, no máximo, em 2045. Por sinal, eu estou liderando um estudo com grandes cientistas brasileiros, demonstrando a viabilidade de o Brasil zerar suas emissões em 2040, zerando o desmatamento, acelerando a transição energética, reduzindo as emissões agropecuárias e, principalmente, criando grandes projetos de restauração florestal. Vamos apresentar esses dados no início do ano que vem.
Mas não adianta só o Brasil, tem que ser um esforço global. Se o aquecimento permanecer em 1,5 grau em 2025, vamos ter que acelerar muito todos os processos. E para acelerar, veja bem, nem mesmo aqueles US$ 1,3 trilhão vão ser suficientes. Teremos 15 anos para zerar as emissões líquidas do mundo inteiro. Se insistirmos nas metas do Acordo de Paris não vai ter jeito; a temperatura vai subir 2,5 graus, ou até mais, até 2050.
O senhor tem usado esse termo "ecocídio", que é uma palavra forte, mas um tanto enigmática. O que ela significa, exatamente?
Se a gente continuar emitindo gás carbônico como emitimos hoje, o aquecimento vai chegar a 2,5 graus em 2050, e aí atingiremos muitos pontos de não retorno (tipping points), que vão liberar uma quantidade gigantesca de gás carbônico. Por exemplo, a floresta amazônica: se passar do ponto de não retorno5, você joga uns 250 bilhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera. O solo congelado (permafrost) da Sibéria e do norte do Canadá: se passar de 2,5 graus, você emite mais de 200 bilhões de toneladas de gás carbônico, e lá tem muito metano, que tem um poder de aquecimento 20 a 30 vezes maior do que o dióxido de carbono. Então, só com esses dois tipping points — e tem muitos outros —, a gente vai emitir uns 500 bilhões de toneladas de gás carbônico e o aquecimento vai passar de 3 graus, podendo chegar a 4 graus.
Aí, se você chega a 4 graus, a Terra começa a esquentar tanto os oceanos que não só acaba com a biodiversidade oceânica como libera uma quantidade gigantesca de metano que está congelado no fundo dos oceanos, principalmente no Ártico. Se esse metano é liberado, na metade do próximo século a temperatura já terá aumentado entre 8 e 10 graus. Nesse nível de aquecimento, grande parte da superfície terrestre é inabitável para seres humanos e você tem a sexta maior extinção de biodiversidade do planeta6. O mínimo que ela vai causar é a morte de 65% de todas as espécies de plantas e animais, marinhas e terrestres. Então, ecocídio é isso: a gente gerar um suicídio ecológico da vida no planeta.
Incluindo nós, seres humanos?
Sim, incluindo a gente; porque nos últimos 250 mil anos de evolução do Homo sapiens a temperatura nunca passou dessa de hoje. Mesmo no tempo do Homo erectus, dois a três milhões de anos atrás, a temperatura nunca passou muito disso — chegando a uns 2 graus de aquecimento, no máximo. Então, se a temperatura aumentar 4 graus, o que acontece é que o nosso corpo perde a capacidade de eliminar calor e a gente entra em estresse térmico. Idosos, bebês e pessoas doentes só sobrevivem cerca de meia hora nessa situação; pessoas adultas, saudáveis, sobrevivem cerca de duas horas. Nesse cenário (de 4 graus de aquecimento), todas as regiões equatoriais ao nível do mar e todas as regiões de latitudes médias no verão se tornarão inabitáveis. Somente as regiões polares e o topo das montanhas — dos Alpes, dos Andes, do Himalaia, etc. — serão habitáveis.
Como é possível que, diante de um cenário tão catastrófico como esse que acabou de descrever, o mundo continue incólume, incapaz de adotar medidas verdadeiramente eficazes para mudar essa trajetória? O senhor acha que as pessoas ainda não entenderam o tamanho do problema, ou já entenderam, mas ainda assim preferem não agir, em função de questões políticas ou econômicas?
Acho que não entenderam; porque os seres humanos, normalmente, só entendem algo quando o risco de vida já ficou para ontem, né? Parece que as pessoas só vão acreditar quando a coisa explodir mesmo. Não entenderam ainda que, se continuarmos com as emissões atuais, nós vamos realmente fazer o ecocídio do planeta em torno do fim deste século ou início do próximo.
Em setembro, o senhor deu uma entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo que teve grande repercussão, em que o senhor dizia que estava “apavorado” com a velocidade das mudanças climáticas. Passados três meses e tendo visto o que aconteceu na COP do Azerbaijão, qual é o seu sentimento hoje? Continua apavorado?
Continuo apavorado, porque até mesmo essa meta de 43% de redução de emissões até 2030 parece quase impossível de ser atingida. As emissões em 2024 já estão maiores do que em 2023. Mesmo com US$ 1,3 trilhão por ano a partir de 2026 seria muito desafiador. E mesmo que a gente conseguisse zerar as emissões líquidas em 2050, é aquilo que eu falei: a temperatura pode subir 2,5 graus, e aí pronto; é tipping point, ponto de não retorno, Amazônia secando, permafrost descongelando, milhares de centenas de espécies entrando em extinção. Por isso eu continuo apavorado, porque se a gente não reduzir rapidamente as emissões e começar a remover muito gás carbônico da atmosfera, com milhões e milhões de quilômetros quadrados de restauração florestal em todo o mundo, a gente vai chegar a esse ponto.
Qual é o papel dos cientistas nesse cenário daqui para a frente? O que mais pode ser feito? O que mais pode ser dito, que já não tenha sido dito muitas e muitas vezes?
O papel dos cientistas é fazer o que a gente chama de advocacia responsável (advocacy). Os cientistas têm que entender que eles têm uma responsabilidade de comunicar esses riscos para a sociedade. E, é claro, temos que continuar avançando com as pesquisas, produzindo conhecimento.
O que o senhor acha de soluções tecnológicas para a crise climática? Até que ponto podemos contar com novas tecnologias para impedir, ou pelo menos adiar, esse ecocídio para o qual estamos caminhando?
Eu sou muito voltado para soluções baseadas na natureza. Por exemplo, existe a possibilidade de aumentar a escala da restauração de biomas. Fala-se muito da possibilidade de restaurar entre 6 e 7 milhões de quilômetros quadrados nas próximas décadas, de todos os biomas do mundo, o que retiraria de 5 a 6 bilhões de toneladas de gás carbônico da atmosfera por ano. É muita coisa. A restauração não só remove os gases de efeito estufa como baixa a temperatura no nível do solo, diminui as ondas de calor, protege a biodiversidade e traz outros benefícios. Precisamos muito avançar tecnologicamente nessas soluções.
Mas o mais importante — lembrando que cerca de 80% das emissões de gases de efeito estufa, historicamente, vêm da queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural) — é avançar com a transição energética. Ela está ocorrendo, mas é muito lenta para combater as mudanças climáticas. Precisamos acelerar muito a implementação das energias renováveis que já existem — solar, eólica, hidrogênio verde e até mesmo biocombustíveis — e buscar várias outras fontes de energias renováveis; por exemplo, dos oceanos.
O que o senhor planeja fazer com essa nova cátedra da USP?
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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