A eleição de Ailton Krenak para a Academia Brasileira de Letras é um acontecimento de grande importância. Um membro do povo indígena finalmente na ABL, que é uma instituição respeitadíssima do mundo acadêmico brasileiro e da cultura erudita, sinaliza uma abertura e uma renovação dessa casta de notáveis. E desde já ele anuncia sua intenção de abrir a Academia Brasileira de Letras para vários outros idiomas e línguas brasileiros; uma expansão desse universo linguístico para o qual a própria academia é uma referência é fundamental. E quero aproveitar para comentar um pouco mais sobre quem é Ailton Krenak, esse ativista, escritor, filósofo, indígena maravilhoso, que tem tido uma atuação fundamental na divulgação e na reflexão sobre os direitos dos povos indígenas, sobre uma reversão de perspectiva sobre a nossa vida atual e, afinal, sobre o desgaste dos modelos ocidentais de explicação e de organização social no mundo como nós vivemos.
Krenak é alguém que, junto com Davi Kopenawa, tem apontado isso de uma maneira muito aguda e, portanto, a partir daí, exigido uma revisão do nosso modo de pensar e do modo de estar no mundo, onde, por exemplo, ele opõe o conceito de cidadania ao de florestania; o de cidadania estaria muito ligado ao modelo urbano ocidental industrialista, asséptico, higiênico, ao contrário da floresta, que é orgânica, onde todos os seres vivos vivem misturados e não há uma prevalência do cogito cartesiano, do sujeito racional e do individualismo.
Krenak, além de tudo, tem sido um pensador muito agudo, influente e incisivo no campo da arquitetura e do urbanismo. Essa ideia de vida selvagem, que pode vir a ser um modelo futuro para as nossas cidades, é justamente a de se contrapor a essa assepsia e pensar que as cidades podem ser lugares também do convívio de muitos seres viventes e de uma presença muito mais intensa da natureza, de uma renaturalização dos rios, córregos, da presença verde. Então, isso surge como provocações importantíssimas no momento em que a gente vê as nossas cidades tomadas por alagamentos, por insalubridade, por dificuldades estruturais que vieram desse modelo seguido a partir de uma matriz europeia que, claramente, está desgastada.
Krenak, no seu livro Futuro Ancestral, que é o mais recente da sua produção, aponta uma ideia muito importante, na qual ele se contrapõe à noção de humanidade como acesso igual de todos. Diz que, na verdade, apesar da importância de organizações como a ONU, como a OMS, no fundo, essas organizações, no seu funcionamento, acabam mantendo também uma ideia, uma ilusão, de que todos os seres viventes podem alcançar um grau de humanidade que, no entanto, não está disponível para todos, porque esse clube da humanidade é exclusivo e há uma sub-humanidade que nunca vai ser incluída e que é sempre alvo de violência, que parece sempre disponível para o extermínio. Ele aponta o dedo nessa ferida de uma maneira que essa noção de humanidade iluminista precisa ser repensada à luz das realidades periféricas e dos países que emergiram da luta anticolonial, num nacionalismo que tem também que ser totalmente revisto.
Espaço em Obra
A coluna Espaço em Obra, com o professor Guilherme Wisnik, vai ao ar quinzenalmente quinta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.
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