“Nós, pessoas LGBTQIAPN+, também produzimos ciência na USP”

Cientistas lançam tecnologia inovadora no Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+, para romper com o pensamento de que pessoas desta comunidade discutem apenas sobre diversidade

 28/06/2023 - Publicado há 1 ano

Arte: Gabriela Varão

Texto: Danilo Queiroz

Cleyton Carneiro (esq.) e Rodrigo Gouvêa são os pesquisadores responsáveis pelo desenvolvimento da Biblioteca de Mapas Auto-Organizáveis IntraSOM – Fotomontagem: Jornal da USP – Fotos cedidas pelos pesquisadores

Procurando romper com o pensamento de que pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ discutem e produzem conhecimentos apenas a respeito de diversidade, representatividade e autoafirmação, cientistas da Escola Politécnica (Poli) da USP desenvolveram uma tecnologia inovadora, lançada neste 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+. A cerimônia de lançamento conta com apoio da Comissão de Inclusão e Pertencimento (CIP) da unidade e do coletivo de diversidade Poli Pride, coordenado pelos estudantes da Poli.

A tecnologia consiste em uma Biblioteca de Mapas Auto-Organizáveis IntraSOM, uma plataforma com diversas variáveis no processamento de dados complexos. Os recursos da ferramenta podem ser utilizados na construção de mapas que preservam características topológicas, o que possibilita aos cientistas compreender melhor variáveis e fenômenos, bem como executar tarefas comuns à ciência de dados.

Neste momento, é duplo o orgulho que Cleyton Carneiro e Rodrigo Gouvêa, cientistas responsáveis pelo desenvolvimento da biblioteca, sentem: pela potencial contribuição social da tecnologia de ponta desenvolvida e por suas existências, em meio aos ambientes científicos predominantemente heteronormativos que já percorreram. Ou seja, que legitimam apenas os saberes de pessoas heterossexuais. E pela potencial contribuição social da tecnologia de ponta desenvolvida.

“Nós, pessoas LGBTQIAPN+, também produzimos ciência na USP. Estamos nesses espaços produzindo conhecimento diariamente”, celebra Carneiro. “Eu não posso me omitir, porque eu entendo que essa omissão implica reforçar a invisibilidade que nos é imposta”, acrescente ele, ao explicar a falta de referências, ainda hoje, na comunidade científica de grupos sub-representados.

Cleyton Carneiro - Foto: Arquivo Pessoal

Cleyton Carneiro – Foto: Arquivo Pessoal

Rodrigo Gouvêa - Foto: Arquivo Pessoal

Rodrigo Gouvêa – Foto: Arquivo Pessoal

Foi buscando referências científicas da comunidade LGBTQIAPN+ que Gouvêa encontrou Carneiro, seu orientador no doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mineral (PPGEMin) e também professor da Poli, no Departamento de Engenharia de Petróleo, no campus de Santos. “Por muito tempo eu não me identifiquei com uma pessoa que fizesse engenharia, porque o meu referencial de engenharia não estava em um corpo gay”, explica Rodrigo. “Encontrar um orientador, assim como eu, me fez entender que produzir ciência é também uma atitude política”, afirma.

Tecnologia posicionada

Na Austrália, no estágio do doutorado-sanduíche, foi que Carneiro descobriu a técnica de auto-organização de dados, base para a construção da biblioteca de mapas auto-organizáveis, também conhecida pela sigla SOM (Self-Organized Maps, em inglês). Ele trouxe a metodologia para a USP, com o objetivo de ser melhor difundida no Brasil, e mais: de forma livre e gratuita, para ser acessada dentro do GitHub, uma plataforma de hospedagem de códigos-fonte.

“A gente percebia que as principais bibliotecas ou softwares de mapas auto-organizáveis eram fechados, ou seja, precisava pagar para acessar. Ou estavam restritos a um ambiente de programação muito específico, com uma linguagem bastante especializada”, explica ele, que também é um dos líderes do grupo de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) Integrações Tecnológicas em Análises de Rochas e Fluidos (InTRA) da USP.

Para que a técnica fosse amplamente utilizada, Carneiro e Gouvêa desenvolveram a biblioteca por meio de uma linguagem mais acessível no mundo da programação, a linguagem Python. “Em meio à avassaladora quantidade de dados que hoje temos disponíveis na sociedade, é fundamental aprender a se comunicar eficientemente”, descrevem, esperando que a ferramenta dissemine a técnica SOM em outras áreas da ciência e tecnologia.

A biblioteca também foi projetada para representar uma tecnologia posicionada, já que são inúmeras as aplicações do software. “Isso porque essa seria uma forma visual de transcrever a realidade. No caso dos mapas auto-organizáveis, isso é um grande diferencial, porque a partir do aprendizado de máquina [machine learning] você consegue traduzir esses dados complexos de uma forma que consiga interpretar humanamente”, explica Gouvêa.

Dados dispostos em mapas auto-organizáveis – Fotos cedidas pelos pesquisadores

Dentre as áreas da ciência, é possível aplicar a tecnologia na geologia, mapeando condições sísmicas; na medicina, agrupando informações similares de um estímulo neuronal numa tomografia; e até mesmo em um questionário social. Um exemplo prático e fácil de compreender a utilização de mapas auto-organizáveis é no Questionário de Inclusão e Pertencimento da USP, desenvolvido pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da Universidade, e divulgado recentemente

No questionário havia muitas perguntas, como cor da pele, orientação sexual e idade, dispostas em um formulário. Graficamente, é difícil representar essas informações, pois pertencem a categorias distintas. No entanto, os cientistas resolveram testar a biblioteca SOM utilizando o questionário. 

“Tomando como referência o questionário da PRIP, em um formulário da CIP da Poli decidimos transformar as respostas. Para a nossa surpresa, conseguimos perceber relações que aparentemente não são tão evidentes”, contam. “Por exemplo, qual a relação do sistema de ingresso na universidade com a evolução acadêmica de estudantes?”, propõem, ao explicar que a similaridade das respostas torna-as mais próximas visualmente na representação dos mapas auto-organizáveis.

Segundo eles, a técnica permitirá difundir o humanismo digital, quando áreas das ciências humanas passam a utilizar também as tecnologias no desenvolvimento de pesquisas. “De maneira alguma a ferramenta vai anular a atuação de um cientista social, mas vai ser um ferramental para compreender melhor a base de dados com que ele está lidando”, pontuam.

Por uma ciência inclusiva

“Quantos cientistas LGBTQIAPN+ você conhece?” Essa é a provocação que os responsáveis pelo desenvolvimento da biblioteca digital propõem. Uma das referências LGBTQIAPN+ na ciência é Vladimir Távora, professor de paleontologia da Universidade Federal do Pará, onde Carneiro se graduou.

Os dois também afirmam a importância que é ter uma ciência diversa, composta com os mais variados grupos sociais em relação a gênero, sexualidade, cor da pele e região. “É por isso, que, às vezes, são comuns erros presentes nas tecnologias, como o fenômeno do racismo algorítmico. O banco de dados está treinado a reproduzir essas violências porque faltam desenvolvedores com condições de vida distintas”, ressaltam.

Gouvêa também celebra os avanços de grupos sub-representados, que pouco a pouco vão avançando nas carreiras acadêmicas, mesmo que ainda em menor grau. “Foi a primeira vez que tive um orientador assumidamente LGBTQIAPN+. Pode parecer algo pequeno, mas para mim é como se eu pudesse perceber que a ciência pode também ter a minha cara. Isso nos fez perceber o quanto é preciso diversificar o laboratório que compomos ”, comemora ele, o primeiro de sua família a ingressar e ser doutor em uma universidade.

É esse o sentimento que pretendem despertar: inquietude e inconformismo com uma ciência não engajada e não compromissada com a sociedade. “A gente ainda é um ponto de diferença na engenharia, com base no que é normativo. Fora do recorte sexual, ainda somos privilegiados, pois somos homens brancos”, pontuam. “Utilizemos desse lugar de fala para discutir representatividade e ciência. E, mais, para difundir que não basta incluir grupos sub-representados na Universidade, é preciso também garantir a permanência adequada”, acrescentam.

Atualmente, segundo o Questionário de Inclusão e Pertencimento da PRIP, a USP possui 9,8% dos docentes que se identificam como não heterossexuais, além de 45,9% de estudantes de graduação também não heterossexuais. Para Carneiro, professor da Poli, é desconfortável romper com o imaginário social de que gays não podem assumir uma posição de destaque na engenharia. É preciso ter orgulho, segundo ele, para que essa sensação não paralise quem se considera homossexual, bissexual, trans ou travesti.

“Se a gente se preocupasse tanto com o desconforto, não viveríamos. Acredito que somos mais resistentes a isso, de seguir apesar do desconforto. Foi por conta de um professor LGBTQIAPN+ que percebi que havia espaço na ciência para pessoas como eu”, explica ele, ao assumir a responsabilidade em ser referência, enquanto docente e pesquisador da comunidade. “Minha produção científica até melhorou ao passo que entrei em contato com estudantes negros, indígenas e pessoas de outras regiões do Brasil, para além do eixo centro-sul”, conta.

Lançamento da Biblioteca de Mapas Auto-Organizáveis em Python


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