Enfrentar o racismo na medicina passa pelo acolhimento imediato das vítimas

Caso de racismo em UTI de hospital privado de São Paulo chama a atenção para importância do letramento racial dos profissionais de saúde

 10/07/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Silvana Salles

Arte: Gabriela Varão

Na formação do médico há muito pouco de matéria específica ou treinamentos tendo a questão racial como central. Como não há muitos médicos negros, a incidência do racismo na saúde tende a ser grande - Foto: Freepik

A denúncia de um caso de racismo recente, ocorrido dentro da UTI de um hospital privado na zona sul de São Paulo, chama a atenção para a urgência do letramento racial de profissionais de saúde e da criação de canais de acolhimento para as vítimas. Essa é a avaliação de dois integrantes do Grupo de Pesquisa sobre Saúde da População Negra – Race.ID, da Faculdade de Medicina (FM) da USP.

O caso em questão ocorreu na unidade Jabaquara do Hospital São Luiz e foi revelado pelo portal Alma Preta. Segundo a reportagem do portal, ao perguntar sobre sua alta, uma paciente negra ouviu do médico plantonista que ele iria deliberar com a equipe e retornaria com sua “carta de alforria”, deixando o local aos risos. Internada com princípio de pneumonia, a paciente denunciou o ocorrido à enfermeira. O médico, então, voltou para se desculpar pelo comentário, dizendo que era apenas uma “brincadeira”, que fazia sempre. Ao tentar explicar ao médico por que a “brincadeira” foi infeliz, a paciente ainda teve de ouvir dele: “até que você argumenta bem”.

Ainda segundo o relato, a namorada da paciente procurou a ouvidoria do hospital para denunciar a atitude do plantonista, mas não obteve uma resposta satisfatória. A paciente acabou deixando o hospital se sentindo desrespeitada e também com a percepção de não ter recebido o cuidado adequado para seu quadro de saúde.

“Muitas vezes, quem está cometendo essa, que é chamada tecnicamente de microagressão, não percebe que está agredindo. Mas eu sempre falo que a microagressão é microagressão para quem comete. Para quem recebe, ela não é micro”, comenta Julio Cesar de Oliveira, médico assistente do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e do Hospital das Clínicas (HC) da FM, onde é também coordenador do Centro Perioperatório. Na avaliação do médico, em um episódio como o que ocorreu no hospital da zona sul, o fundamental teria sido garantir o acolhimento imediato à paciente que foi vítima de racismo, pois o efeito da agressão foi imediato.

Julio Cesar de Oliveira - Foto: Arquivo Pessoal

Julio Cesar de Oliveira – Foto: Arquivo Pessoal

Julio é membro cofundador do Race.ID e doutorando no programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da FM. No doutorado, ele está pesquisando o viés implícito de médicos residentes por meio de testes de associação implícita. Esse tipo de teste é um experimento comportamental que permite medir as preferências implícitas de uma pessoa quanto à raça, gênero, idade e outros marcadores de diferença. Por serem implícitas, as pessoas tendem a não perceber que têm essas preferências. No entanto, os preconceitos “silenciosos” têm consequências bastante problemáticas.

“No Brasil e fora dele, a gente vê episódios de racismo de uma forma reincidente. E aí, o problema do episódio de racismo não é sempre o episódio exatamente de citar a raça explicitamente. Mas é dar um tratamento inadequado, não valorizar uma queixa, não fazer um encaminhamento adequado, não fazer um exame clínico adequado”, afirma Julio. “Se o racismo fosse uma doença, provavelmente já teria alguém pesquisando um remédio para ela”, completa.

Grupo de pesquisa Race.ID – Fotos: Reprodução/Instagram/@race.id.fmusp

A professora Ana Claudia Germani, do Departamento de Medicina Preventiva da FM e coordenadora do Race.ID, lembra que os efeitos do racismo na qualidade do atendimento médico são visíveis nos inúmeros indicadores que mostram as desigualdades enfrentadas pela população negra na saúde.

“Tem muitas pesquisas que mostram desde o impacto sobre os jovens negros, que morrem mais; as mulheres grávidas negras, que recebem menos anestesia no momento do parto, e as crianças negras, que morrem mais. As pessoas negras têm uma expectativa de vida menor, então a gente tem bem menos pessoas idosas negras na população. O grau de pessoas com uma comorbidade, com uma, duas, três doenças também é maior entre as pessoas negras”, lembra a docente.

No final de 2022, a revista científica The Lancet publicou um dossiê com dados demonstrando o impacto do racismo, da xenofobia e de outras formas de discriminação na saúde das pessoas mundo afora. Baseando-se em uma extensa revisão da literatura médica, os autores do dossiê concluíram que a discriminação baseada em raça, cor da pele, etnia, casta, status migratório, religião ou pertencimento a um povo originário ocorre em todos os contextos nacionais analisados e é um determinante fundamental para a saúde coletiva.

Três dimensões do racismo

Julio explica que o racismo tem três dimensões: estrutural, institucional e interpessoal. Ele avalia que o ocorrido no Hospital São Luiz foi um caso de racismo interpessoal mas, para prevenir novas ocorrências, a punição ao profissional de saúde não é suficiente, pois não toca todas as dimensões. “A gente sempre pensa na punição, mas outras pacientes pretas vão estar nesse mesmo leito em algum momento e elas vão passar por médicos ou por profissionais de saúde que possivelmente vão ter a mesma atitude. E a reação vai ser a mesma? Então, o quanto isso serviu para o meu hospital se capacitar, o meu profissional se capacitar e eu tomar algum tipo de atitude, que seja uma atitude que melhore o atendimento para todo mundo”, reflete.

Para o pesquisador, reduzir o racismo estrutural envolve a implementação de políticas de inclusão e promoção da diversidade. O racismo institucional pode ser enfrentado com a criação de programas de capacitação e fluxos para acolher vítimas e lidar com as denúncias. O racismo interpessoal, por sua vez, deve ser enfrentado principalmente com educação. Ele diz que tudo isso já está presente na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra desde 2009, embora não tenha sido muito implementado nos espaços educacionais.

“A gente não tem, então, bem explicitado nas diretrizes curriculares, nem da graduação nem da pós-graduação, o que é exatamente esse cuidado com a saúde da população negra. A gente tem escritas recomendações de respeitar raça/cor, etnia, religião etc., mas o que ensinar, como ensinar, qual a competência tem que ter, não tem dentro do currículo. Tem muito pouco de matéria específica ou de treinamentos específicos tendo a questão racial central. E como não tem muitos médicos negros, a incidência do racismo na saúde tende a ser grande”, afirma Julio.

A professora Ana Claudia lidera algumas iniciativas que procuram dar conta de inserir o debate racial nos cursos de graduação da FM. Ela conta que ministra aulas que discutem o impacto do racismo na saúde da população negra em módulos de disciplinas obrigatórias do 1º e do 4º anos de medicina.

Além disso, junto com o professor José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, ela é responsável pela disciplina optativa Formação do profissional de saúde e combate ao racismo, que será oferecida para os alunos da FM e de outras unidades da USP no próximo semestre. A disciplina, que começou a ser oferecida em 2021 ainda no formato on-line, conta com a participação de profissionais de saúde negros convidados em cada aula. O próprio Julio, do Race.ID, é um deles.

Disciplina optativa Formação do profissional de saúde e combate ao racismo - Foto: Reprodução/Instagram/@race.id.fmusp

“A gente tem inserções bastante pontuais ainda. Mas, felizmente, com a entrada dos alunos pelas políticas afirmativas, a gente sabe que eles têm trazido a pauta e que outros professores também têm se aberto à discussão. Acho que é um movimento progressivo, mas ainda muito tímido. E a gente tem essa disciplina optativa, que é um complemento e aberto aos diferentes cursos da saúde. Esse é outro espaço que a gente vem notando uma demanda crescente ao longo dos anos”, diz a professora.

O outro lado

Procurada pela reportagem do Jornal da USP, a Assessoria de Imprensa do Hospital São Luiz enviou uma nota lamentando o ocorrido em sua UTI e comunicando que remeteu o caso ao Conselho de Ética Médica do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Veja a íntegra da nota a seguir:

NOTA

O Hospital São Luiz do Jabaquara repudia qualquer tipo de discriminação, reafirma seu compromisso institucional com o enfrentamento e o combate ao racismo, e lamenta profundamente o ocorrido.

O caso em questão já foi encaminhado para o Conselho de Ética Médica, ligado ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), para a devida apuração e adoção das medidas cabíveis.

A diretoria do hospital tentou contato com a paciente, porém não obteve sucesso nos números cadastrados, e segue à disposição para acolhimento e demais esclarecimentos.


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