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Ambientes de administração e negócios não estão preparados para a diversidade
Doutora em contabilidade, Juh Círico atua em projeto da USP que auxilia pessoas trans e travestis no acesso ao mercado de trabalho formal; pesquisadora critica "diversidade seletiva" das organizações
Empresas ainda não têm estratégias objetivas nem um orçamento específico para Diversidade e Inclusão - Imagem: Vecstock para Freepik
Governança ambiental, social e corporativa (ESG), Diversidade e Inclusão (D&I), Diversidade, Equidade, Inclusão e Pertencimento (DEIP). Estas são algumas das siglas que integram o dicionário corporativo, associando o sucesso empresarial ao seu posicionamento frente a marcadores sociais da diferença, como raça, cor, etnia, gênero, orientação sexual, idade e até religião. Apesar do crescente interesse pelo tema, alguns ambientes tradicionais das organizações ainda não estão preparados para a permanência de pessoas dissidentes de gênero, como transexuais e travestis.
“Infelizmente 90% de mulheres trans e travestis atuam na prostituição, se utilizando desta como fonte primária de renda, porque as empresas não contratam. Empresas brasileiras possuem preconceitos que estão enraizados na cultura das organizações, então não basta ter competências profissionais quando a empresa é preconceituosa, discrimina e não respeita as diferenças”, aponta Juh Círico, doutora em Contabilidade pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisadora de pós-doutorado na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP.
A pesquisadora integra o núcleo Pesquisa e Extensão em Gênero, Raça e Sexualidade (Generas) da FEA e atua no projeto TransFormar, que atua na inclusão, acolhimento e permanência de pessoas trans, travestis e não binárias na área de negócios. “Eu sou a primeira travesti doutora em contabilidade no Brasil, mas não serei a única. O foco da tese foi abrir portas para que outras pessoas trans e travestis possam acessar e também permanecer tanto em ambientes acadêmicos quanto organizacionais”, afirma.
Juh Círico é pesquisadora da USP e investiga questões de gênero na contabilidade - Foto: arquivo pessoal
Em sua pesquisa de doutorado, Juh Círico realizou entrevistas com pessoas trans e travestis que atuam profissionalmente na contabilidade. Duas delas informaram que foram expulsas do curso de mestrado em ciências contábeis. “Por preconceito, [estas pessoas] eram perseguidas principalmente por professores de contabilidade homens, cisgênero, que agiam com transfobia”, explica.
No TikTok, plataforma onde a pesquisadora acumula mais de 180 mil seguidores, ela explica aos fãs que vai deixar de postar vídeos. “Agora a Juhzinha que era do TikTok vai ser a pesquisadora da USP”, e conta que está focada em seu pós-doutorado, em que pretende impactar as vidas de pessoas trans e travestis de todo o Brasil.
Gestão da Diver-cis-dade
Embora o mercado incentive a busca por inovação tecnológica e competitividade, a adaptação às demandas sociais nem sempre vem acompanhada de uma política pela diversidade. Uma pesquisa analisou dados de 143 organizações nos EUA e identificou que houve uma queda no impulso pela equidade e inclusão corporativa em 2023. Apesar de terem avançado na representatividade étnico-racial, com mais mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+ em cargos de liderança, as empresas analisadas não tinham estratégias objetivas nem um orçamento específico para D&I.
“A gestão da diversidade empresarial das organizações brasileiras é muito pautada no acolhimento de pessoas cisgêneras, e não de pessoas trans e travestis. Foi construída uma visão de profissional ideal nos ambientes contábeis, do homem branco, cisgênero, heterossexual e sem deficiência. Eu precisei ser muito forte e contar com uma rede de apoio para poder sobreviver e para poder resistir nesses ambientes”, relata a pesquisadora, que utilizou o termo Gestão da Diver-cis-dade Empresarial em seu trabalho, destacando que apenas demandas de colaboradores cisgênero são contempladas nas organizações brasileiras.
A pesquisadora também demonstra preocupação com o uso da inteligência artificial, que pode tornar os processos ainda mais excludentes e seletivos. “As empresas utilizam tecnologias para atender aos interesses das organizações. O problema começa na raiz, pela cultura organizacional. Se preconceitos como racismo, homofobia, transfobia, sexismo, capacitismo, etarismo, classismo estiverem enraizados na cultura, a empresa vai agir sempre com preconceito, desde o recrutamento e seleção, dificultando, inclusive, a permanência de grupos minorizados, quando raramente são contratados. A gestão da diver-cis-dade é seletiva, escolhendo pessoas com características que correspondem a um padrão corporativo, seja em relação a gênero, raça, idade, condição, entre outros marcadores sociais”, destaca Juh Círico ao Jornal da USP.
"Havia um movimento de rejeição constante", conta a pesquisadora, que apresentou o poema Pedagogia da Resistência em sua banca de doutorado em Contabilidade - Imagem cedida pela pesquisadora
Incluir para permanecer
De acordo com o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), o Brasil registra mais de 500 mil profissionais contábeis, entre contadores e técnicos em contabilidade. Entre os serviços desempenhados, estão a auditoria, a contabilidade fiscal, a consultoria financeira, além da contabilidade gerencial – uma ferramenta de medição e análise das informações financeiras e contábeis de uma empresa. Por meio de relatórios, ela auxilia no planejamento, controle e melhor uso dos recursos.
“Quantas pessoas trans e travestis conhecemos, que fazem parte das nossas vidas, ocupam algum cargo de liderança nas organizações? É preciso superar o discurso batido que basta ter competência. A questão não é formação ou experiência, mas sim quem pode ou não alcançar e permanecer em espaços ‘cisnormativos’”, afirma Akira Aikyo Galvão, atualmente no Programa de Pós-Graduação em Administração na FEA e também integrante do Generas. Akira é uma pessoa trans não binária, autista e escreveu, junto com Juh Círico, um guia prático de diversidade na área de negócios.
Para enfrentar o sexismo e os preconceitos, a publicação propõe soluções práticas para instituições de ensino e organizações, como ações de educação continuada, canais de comunicação, treinamentos específicos sobre diversidade, equidade e inclusão, adaptação de ambientes e materiais, mecanismos de denúncia e promoções. “Inclusão não é sobre fazer concessões; é sobre fazer a coisa certa. A verdadeira inclusão se reflete não apenas nas políticas e práticas, mas na cultura de um lugar”, afirmam as autoras.
Akira Aikyo faz mestrado na FEA e integra o núcleo de pesquisa Generas - Foto: arquivo pessoal
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