
Utopia é um termo criado por Thomas More para batizar uma ilha imaginária na qual habitava a sociedade perfeita. Apareceu pela primeira vez em seu livro de 1516 e, desde então, tornou-se o termo definitivo para nomear toda comunidade livre das mazelas sociais e naturais identificadas por seus autores.
O que o novo livro de Hilário Franco Júnior, historiador e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, propõe é que o termo também pode ser usado para falar de sociedades perfeitas imaginadas muito antes da publicação da obra do próprio More. Como é o caso da Idade Média, foco de Em Busca do Paraíso Perdido: as Utopias Medievais.
“A motivação em estudar as utopias medievais decorre, justamente, do desejo de perceber como a crítica ao presente histórico gerou fantasias ou colocadas no próprio presente, mas em outro espaço, ou colocadas no próprio espaço, porém em outro tempo”, escreve Franco no prefácio da obra.

Conforme o professor aponta no livro, até hoje os estudos sobre a Idade Média negligenciam um olhar mais atento para as utopias. Parte disso teria a ver com certa recusa em se falar propriamente em utopias anteriores à obra de More. “Em razão desse léxico tardio, muitos defendem que ‘utopia’ e ‘utópico’ só são aplicáveis ao período posterior a More, argumentando que a Idade Média tinha os olhos mais voltados para o Outro Mundo do que para este, objeto das transformações pretendidas pelo pensamento e pelo sentimento utópicos.”
Outra razão apontada por Franco para essa resistência envolve argumentos de ordem filosófica, que tenderiam a ver qualquer utopia de maneira negativa. “Enraizou-se tanto no senso comum como entre certas correntes intelectuais o entendimento de que os sonhos coletivos são digressões vãs, quimeras infantis, miragens perigosas”, escreve o historiador. “Acusou-se as utopias de, em nome da busca de uma situação reputada perfeita para a sociedade, terem servido ao longo da história a muitos totalitarismos.”
O professor concorda com parte da crítica, mas acredita que limitar-se a ela é simplificar um objeto complexo. Porque a utopia é frequentemente tirânica em sua manifestação histórica, mas sempre, para a alma, um dos maiores exercícios de liberdade humana. “Utopia é negação de um presente medíocre e sufocante, daí ser uma constante histórica, presente em todas as épocas, inclusive a medieval.”
A utopia e o Éden
Segundo Hilário Franco Júnior, para o Ocidente medieval cristão a situação perfeita já havia existido no início dos tempos. O problema é que ela tinha sido perdida graças ao pecado original de Adão e Eva, que comeram do fruto proibido e foram expulsos do Paraíso. “Porque a Europa medieval cristã não via em Adão e Eva personagens míticos, e sim históricos, ancestrais de todos os humanos, sua contaminada progenitura espalhada pelos diferentes cantos da Terra não poderia deixar de carregar todas as vicissitudes humanas”, escreve o historiador. “Se o casal primordial tivesse continuado no Éden, não existiriam diversos povos, idiomas, costumes e religiões, não haveria papas, reis, guerreiros, comerciantes, artesãos e camponeses, não ocorreriam fomes, epidemias, invasões e guerras.”
Foi assim que o cristianismo medieval estabeleceu a distinção entre dois estados, um anterior ao pecado de Adão e Eva, no qual um lugar de delícias estava acessível à humanidade, e um posterior, que exilou o primeiro casal e toda sua descendência no mundo. A situação penosa do exílio – trabalho árduo, dores do parto, doenças, envelhecimento e morte – não impediria, entretanto, a humanidade de sonhar com esse mundo anterior de pureza, ordem, justiça, paz, abundância, liberdade, igualdade e fraternidade.
“O que tinha sido realidade no Éden restava apenas no plano da esperança”, escreve Franco. “Por esse motivo, embora a Queda tenha marcado o início do espaço e do tempo terrenos para o homem, este não deixou de muito especular sobre a localização do Éden, pois nunca perdeu a memória dele. Desejou-se, buscou-se o espaço do qual o homem havia sido exilado, o espaço por excelência que lhe fora desde então vetado.”
Toda a noção de utopia produzida na Europa medieval, explícita ou implicitamente, teria derivado do modelo edênico, um local simultaneamente concreto e inacessível, terreno mas dotado de conotações celestes. “Se com a expulsão ele fora perdido pelo homem, contudo não desapareceu, crença bastante enraizada e que se estenderia até bem depois de Thomas More”, escreve o professor.
“Imaginou-se sucedâneos do Paraíso terreal em variados locais”, prossegue. “Alguns distantes e concretos, como o país dos brâmanes, a Antília ou a Terra austral; outros distantes e fantasiosos, como as terras de Preste João, a ilha das amazonas ou o Eldorado; outros supostamente próximos, como a Gruta do Amor de Tristão e Isolda, a floresta de Robin Hood ou a Siena pintada por Ambrosio Lorenzetti; outros imaginários e de localização imprecisa, como a Cocanha, o reino do Graal ou a ilha da Utopia.”
Como todas as épocas, escreve Franco, a Idade Média também sonhou com uma situação ideal que ultrapassasse as insuficiências de sua realidade natural e social. “Chamar tais sonhos coletivos de ‘utopias’ é legítimo, e estudá-los, necessário, pois, como já se disse com justeza, a história faz as utopias e as utopias fazem a história. Como toda sociedade arcaica que, por meio de seus mitos, ritos, festividades e crenças, colocava-se em constante contato com o mundo supra-humano, de certa forma vivenciando mais o passado e o futuro que as posteriores civilizações industriais, também o Ocidente medieval cristão questionava-se insistentemente sobre seu destino. Por que os primitivos parentes haviam pecado e jogado seus descendentes no mundo?”, conclui Franco.

Em Busca do Paraíso Perdido: as Utopias Medievais, de Hilário Franco Júnior, Ateliê Editorial e Editora Mnêma, 528 páginas, R$ 102,60.