Utopias medievais retrataram a procura pelo Éden perdido

“Em Busca do Paraíso Perdido” mostra como o Ocidente medieval imaginou sociedades perfeitas a partir do cristianismo

 12/11/2021 - Publicado há 2 anos
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Detalhe da capa do livro Em Busca do Paraíso Perdido: as Utopias Medievais – Foto: Divulgação

Utopia é um termo criado por Thomas More para batizar uma ilha imaginária na qual habitava a sociedade perfeita. Apareceu pela primeira vez em seu livro de 1516 e, desde então, tornou-se o termo definitivo para nomear toda comunidade livre das mazelas sociais e naturais identificadas por seus autores.

O que o novo livro de Hilário Franco Júnior, historiador e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, propõe é que o termo também pode ser usado para falar de sociedades perfeitas imaginadas muito antes da publicação da obra do próprio More. Como é o caso da Idade Média, foco de Em Busca do Paraíso Perdido: as Utopias Medievais.

“A motivação em estudar as utopias medievais decorre, justamente, do desejo de perceber como a crítica ao presente histórico gerou fantasias ou colocadas no próprio presente, mas em outro espaço, ou colocadas no próprio espaço, porém em outro tempo”, escreve Franco no prefácio da obra.

O professor Hilário Franco Júnior – Foto: Arquivo pessoal

Conforme o professor aponta no livro, até hoje os estudos sobre a Idade Média negligenciam um olhar mais atento para as utopias. Parte disso teria a ver com certa recusa em se falar propriamente em utopias anteriores à obra de More. “Em razão desse léxico tardio, muitos defendem que ‘utopia’ e ‘utópico’ só são aplicáveis ao período posterior a More, argumentando que a Idade Média tinha os olhos mais voltados para o Outro Mundo do que para este, objeto das transformações pretendidas pelo pensamento e pelo sentimento utópicos.”

Outra razão apontada por Franco para essa resistência envolve argumentos de ordem filosófica, que tenderiam a ver qualquer utopia de maneira negativa. “Enraizou-se tanto no senso comum como entre certas correntes intelectuais o entendimento de que os sonhos coletivos são digressões vãs, quimeras infantis, miragens perigosas”, escreve o historiador. “Acusou-se as utopias de, em nome da busca de uma situação reputada perfeita para a sociedade, terem servido ao longo da história a muitos totalitarismos.”

O professor concorda com parte da crítica, mas acredita que limitar-se a ela é simplificar um objeto complexo. Porque a utopia é frequentemente tirânica em sua manifestação histórica, mas sempre, para a alma, um dos maiores exercícios de liberdade humana. “Utopia é negação de um presente medíocre e sufocante, daí ser uma constante histórica, presente em todas as épocas, inclusive a medieval.”

A utopia e o Éden

Segundo Hilário Franco Júnior, para o Ocidente medieval cristão a situação perfeita já havia existido no início dos tempos. O problema é que ela tinha sido perdida graças ao pecado original de Adão e Eva, que comeram do fruto proibido e foram expulsos do Paraíso. “Porque a Europa medieval cristã não via em Adão e Eva personagens míticos, e sim históricos, ancestrais de todos os humanos, sua contaminada progenitura espalhada pelos diferentes cantos da Terra não poderia deixar de carregar todas as vicissitudes humanas”, escreve o historiador. “Se o casal primordial tivesse continuado no Éden, não existiriam diversos povos, idiomas, costumes e religiões, não haveria papas, reis, guerreiros, comerciantes, artesãos e camponeses, não ocorreriam fomes, epidemias, invasões e guerras.”

Foi assim que o cristianismo medieval estabeleceu a distinção entre dois estados, um anterior ao pecado de Adão e Eva, no qual um lugar de delícias estava acessível à humanidade, e um posterior, que exilou o primeiro casal e toda sua descendência no mundo. A situação penosa do exílio – trabalho árduo, dores do parto, doenças, envelhecimento e morte – não impediria, entretanto, a humanidade de sonhar com esse mundo anterior de pureza, ordem, justiça, paz, abundância, liberdade, igualdade e fraternidade.

“O que tinha sido realidade no Éden restava apenas no plano da esperança”, escreve Franco. “Por esse motivo, embora a Queda tenha marcado o início do espaço e do tempo terrenos para o homem, este não deixou de muito especular sobre a localização do Éden, pois nunca perdeu a memória dele. Desejou-se, buscou-se o espaço do qual o homem havia sido exilado, o espaço por excelência que lhe fora desde então vetado.”

Toda a noção de utopia produzida na Europa medieval, explícita ou implicitamente, teria derivado do modelo edênico, um local simultaneamente concreto e inacessível, terreno mas dotado de conotações celestes. “Se com a expulsão ele fora perdido pelo homem, contudo não desapareceu, crença bastante enraizada e que se estenderia até bem depois de Thomas More”, escreve o professor.

“Imaginou-se sucedâneos do Paraíso terreal em variados locais”, prossegue. “Alguns distantes e concretos, como o país dos brâmanes, a Antília ou a Terra austral; outros distantes e fantasiosos, como as terras de Preste João, a ilha das amazonas ou o Eldorado; outros supostamente próximos, como a Gruta do Amor de Tristão e Isolda, a floresta de Robin Hood ou a Siena pintada por Ambrosio Lorenzetti; outros imaginários e de localização imprecisa, como a Cocanha, o reino do Graal ou a ilha da Utopia.”

Como todas as épocas, escreve Franco, a Idade Média também sonhou com uma situação ideal que ultrapassasse as insuficiências de sua realidade natural e social. “Chamar tais sonhos coletivos de ‘utopias’ é legítimo, e estudá-los, necessário, pois, como já se disse com justeza, a história faz as utopias e as utopias fazem a história. Como toda sociedade arcaica que, por meio de seus mitos, ritos, festividades e crenças, colocava-se em constante contato com o mundo supra-humano, de certa forma vivenciando mais o passado e o futuro que as posteriores civilizações industriais, também o Ocidente medieval cristão questionava-se insistentemente sobre seu destino. Por que os primitivos parentes haviam pecado e jogado seus descendentes no mundo?”, conclui Franco.

Capa do recém-lançado livro do professor Hilário Franco Júnior – Foto: Divulgação

Em Busca do Paraíso Perdido: as Utopias Medievais, de Hilário Franco Júnior, Ateliê Editorial e Editora Mnêma, 528 páginas, R$ 102,60.


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