Fotomontagem de Guilherme Castro/Jornal da USP com imagens de Pixabay e Marcos Santos/USP Imagens

Fotomontagem de Guilherme Castro/Jornal da USP com imagens de Pixabay e Marcos Santos/USP Imagens

Rouanet, um iluminista dos trópicos

Com a morte de Sérgio Paulo Rouanet – filósofo, diplomata, autor de uma debatida mas essencial lei de incentivo à cultura –, o Brasil fica cada vez mais preso em um deserto de homens e ideias

 08/07/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 11/07/2022 às 13:43

Texto: Marcello Rollemberg

Arte: Guilherme Castro

Há várias formas de se medir a riqueza ou a pobreza de um país. Índices de inflação, histeria do dólar, o tamanho da fome dos habitantes. São critérios, por assim dizer, tangíveis. Mas há os intangíveis, daqueles que não fazem a Bolsa de Valores oscilar, mas que dizem muito sobre uma sociedade. A temperatura da democracia, as discussões em alto nível – ou não –, tudo isso diz muito sobre um país. E também como a cultura e a memória são tratadas. Quando, por exemplo, um pensador daqueles que têm porte e autoridade intelectual morre, um país fica mais pobre. Pode ser um clichê – talvez realmente o seja –, mas também é uma verdade. Diante disso, pode-se dizer que o Brasil terminou o último domingo, dia 3, muito mais pobre com a morte de Sérgio Paulo Rouanet, aos 88 anos – diplomata, ex-ministro da Cultura (quando criou uma importante lei de incentivo), filósofo, tradutor, membro da Academia Brasileira de Letras, catedrático do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP). Escolha um título intelectual de relevância: ele estará apenso à biografia de Rouanet. Sua morte, então, é daquelas que empobrecem um país já tão depauperado (e desrespeitado) intelectualmente nos últimos tempos. Às favas o clichê e o fato de a morte de Rouanet não ter interferido no preço do petróleo. Deveria.

“Rouanet teve um papel muito importante na cultura brasileira. Ele foi alguém muito dedicado aos valores do Iluminismo e direitos humanos. Esse foi um dos grandes focos da sua obra”, afirma Renato Janine Ribeiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP), presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência  (SBPC) e ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff. “Era um homem de muitos talentos, além de ser uma pessoa absolutamente adorável, de excelente trato, generoso”, relembra o professor, amigo de longa data do pensador e de sua mulher, a socióloga e filósofa Barbara Freitag.

Renato Janine Ribeiro - Foto: Reprodução/Vermelho

Renato Janine Ribeiro - Foto: Reprodução/Vermelho

Esses muitos talentos aos quais se refere Janine podem ser traduzidos em sua imensa curiosidade intelectual. Formado em Direito pela PUC do Rio de Janeiro, aos 20 anos já assinava críticas literárias em jornais cariocas e aos 21 anos entrou na carreira diplomática, o que o levou a países como Suíça, Alemanha e Dinamarca. E, quatro décadas mais tarde, em 1992, assumiu a cadeira número 13 da ABL (onde coordenou uma série de pesquisas sobre Machado de Assis), graças aos diversos artigos e livros que escreveu, como O Homem é o Discurso – Arqueologia de Michel Foucault – era profundo conhecedor da obra do pensador francês – , Imaginário e DominaçãoA Razão Cativa e Itinerários Freudianos em Walter Benjamin.

Esse último livro, por sinal, pode ser também uma síntese de duas paixões de Rouanet: a psicanálise e o intelectual alemão Benjamin. “Outra coisa muito importante para Sérgio Rouanet era a psicanálise. Ele tinha um conhecimento profundo sobre psicanálise, sobre Freud. Ele busca mostrar como Freud contribui para a libertação da razão dos seus preconceitos, como ele permite liberar a razão de uma série de limitações”, explica Renato Janine.

“Ele tinha uma relação muito forte com a filosofia moderna e contemporânea. Ele traduziu uma parte dos escritos de Walter Benjamin. Nossa geração foi introduzida aos textos de Benjamin pelas traduções do Rouanet”, complementa Martin Grossmann, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) e coordenador da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência do IEA-USP. “Ele foi o primeiro titular da cátedra, entre 2016 e 2017, e como titular ele propôs um programa que está registrado no site do IEA. Desse material transcrevemos tudo, e um dos livros da coleção da cátedra é justamente desse programa, que ele planejou exclusivamente para o IEA. Esse talvez seja o último compromisso mais público que teve antes de morrer”, relembra Grossmann, para quem Rouanet era um “iluminista dos trópicos”. Essa condição é referendada pela professora Cremilda Medina, também da ECA, em recente artigo publicado no Jornal da USP (leia a íntegra aqui).

Cremilda Medina

Cremilda Medina - Foto: Arquivo pessoal

“Sua reflexão traduz um misto de poética e de argumentação, diríamos, racional. Qualquer texto de Rouanet transcende, na palavra poética, o argumento lógico árido ou reducionista. Diria que o poeta arbitra a liberdade metafórica, quebra os muros da razão fechada, a autoria ensaística se abre, afeta à condição humana. (…) Em segundo plano ou no plano paralelo e cruzado com a estilística poética, os enraizamentos conflitivos de sua reflexão ultrapassam, no meu entender, a dialética. Ele nos empurra, permitam-me a ousadia, no rumo das contradições multiléticas”, escreve Cremilda.

Uma lei da cultura que não quis chamar de sua

De todas e tantas qualificações que Rouanet amealhou em suas quase nove décadas de vida e em meio à sua substantiva obra intelectual, talvez ele seja mais lembrado por algo que ele, nos últimos tempos, nem gostava muito de falar: a Lei de Incentivo à Cultura, de 1991, que, para um certo desconforto de seu criador, passou a ser conhecida como “Lei Rouanet”.

 “A Lei Rouanet é uma lei que ele fez adotar quando foi ministro da Cultura, mas ele jamais a chamou de ‘Lei Rouanet’, só de Lei de Incentivo à Cultura. Não era uma pessoa vaidosa, não era uma pessoa que procurava impactar. Ele era uma pessoa de alta qualidade nisso tudo”, afirma Renato Janine, da FFLCH e da SBPC. “Como ministro da Cultura, ele teve um papel difícil, já que o presidente Fernando Collor assumiu o governo tendo algo contra a cultura. Ele nomeou para o ministério da Cultura uma pessoa que teve uma gestão bastante equivocada, e após protestos — que lembram até a situação de hoje, um  governo que não gosta da cultura — ele chamou Sérgio Rouanet, que na época era embaixador do Brasil na Dinamarca, para o ministério. Ele restabeleceu o lugar de protagonismo e importância da cultura”, contextualiza Janine.

Martin Grossmann: “Onde está a arte? Geralmente ela é vista através do mundo da estética ou relacionada a eventos, mas a arte não tem esse papel, principalmente dentro da universidade” - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Martin Grossmann - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

“Fragilidade, intermitência e percalços relacionados a uma política pública para a cultura sempre existiram no Brasil. O papel do Rouanet foi dar ordem, dar um norte para as políticas culturais no País. A cultura sempre pediu algo maior e mais estruturado, e a fragilidade sempre foi maior. Tanto que, em alguns momentos, até se pensou em extinguir não só o ministério, mas também toda a cultura, dessa estrutura da governança”, completa Martin Grossmann, da ECA e do IEA.

O papel de Rouanet, além de dar um norte para a cultura brasileira em meio à barafunda em que ia se transformando o governo de Fernando Collor – e que culminaria com o impeachment do presidente em 1992 –, foi também emprestar prestígio a um governo que se desfazia a olhos vistos. “Rouanet fez uma reflexão crítica, na filosofia, da lei anterior, a chamada ‘Lei Sarney’, e em cima dos problemas que encontrou propôs algo muito mais sofisticado, muito mais estruturado, mas que nunca foi implementado por completo. É uma lei que tinha três bases, mas a que foi implementada mesmo foi apenas a de mecenato, que também é a mais criticada, porque o dinheiro que poderia vir para o governo administrar vai para empresas privadas”, explica Grossmann.

De fato, a face visível da “Lei Rouanet” – com o perdão do filósofo – acabou sendo essa da figura de um mecenas empresarial, tão atacada atualmente – a ponto de ser subvertida e desestruturada. A recente derrubada dos vetos presidenciais às leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc talvez ajude a promover uma nova perspectiva no ambiente cultural. A Lei Rouanet deixava claro em sua constituição que ela teria três bases: um fundo nacional de cultura, que nunca foi instaurado, um fundo de investimento cultural e artístico e o mecenato. Do tripé inicial, vingou apenas o último “pé” – que o governo atual derrubou, “sabotando a cultura e destruindo intencionalmente as políticas culturais”, como afirma Martin Grossmann.

Mas se a Lei de Incentivo à Cultura que se efetivou não foi aquela pensada inicialmente, não é culpa de Sérgio Paulo Rouanet. Ele fez, no final das contas, o trabalho físico e intelectual mais difícil: dar corpo àquilo que estava descosturado, incentivar a estrutura basilar de qualquer país que quer ser visto como nação competente e com uma sociedade atuante e pensante. A cultura é isso, e pensemos em cultura lato sensu, aquela cujo centro “está em toda parte”, como certa vez disse o ex-reitor da USP Miguel Reale. A lei pensada por Rouanet cumpriu, bem ou mal, seu papel durante quase três décadas. Mas, ainda assim, se essa cultura vem sendo sabotada e vista como uma inimiga a ser, mais do que vencida, dizimada, a culpa não é da lei, de quem a criou e nem dos artistas.

Com entrevistas feitas por Mariana Carneiro


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