Peça conta a história de Dora, guerrilheira torturada na ditadura militar

Em cartaz no Teatro da USP, na Cidade Universitária, espetáculo retrata a vida de Maria Auxiliadora Lara Barcellos por meio de cartas trocadas entre a jovem e sua mãe

 Publicado: 31/10/2024 às 17:03

Texto: Mirela Costa*
Arte: Diego Facundini**

Mulher branca de cabelos pretos.

Maria Auxiliadora Lara Barcellos - Foto: Memorial da Resistência de São Paulo

A anatomia do corpo humano encontra a anatomia do Brasil na peça Dora, em cartaz neste fim de semana (dias 1º, 2 e 3) no Teatro da USP (Tusp), na Cidade Universitária, em São Paulo. Escrita, dirigida e interpretada por Sara Antunes, a montagem retrata a trajetória de Maria Auxiliadora Lara Barcelos, conhecida como Dora.

Estudante de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e guerrilheira na luta armada contra a ditadura militar (1964-1985), a jovem enfrentou prisão, torturas e exílio, até seu suicídio na Alemanha, em 1976, aos 30 anos. O espetáculo, baseado em trechos de cartas trocadas entre Dora e sua mãe, leva o público a refletir sobre utopia, relações familiares e as marcas da repressão na história do País.

Nesta sexta-feira (1º) e sábado (2), as sessões acontecem às 20 horas, e no domingo (3), às 18 horas, com entrada gratuita. 

Estudante de medicina e guerrilheira

Maria Auxiliadora Lara Barcelos nasceu em 25 de março de 1945, na cidade de Antônio Dias, em Minas Gerais. Primeira filha de Clélia Lara Barcellos e Waldemar de Lima Barcellos, passou a infância entre diversas cidades do Brasil por causa do trabalho do pai. Em 1965, aos 20 anos, iniciou sua graduação na UFMG, onde desenvolveu fascínio pela área da psiquiatria.

“O lugar de estudante foi muito presente durante toda a vida dela. Um dia antes de morrer, ela contou que queria seu diploma”, relata Sara Antunes. Em entrevista ao Jornal da USP, a atriz destaca a consciência de gênero da jovem, que ocupou espaços em que a presença feminina era minoritária. “Ela entrou na Faculdade de Medicina em terceiro lugar em uma época em que 90% dos alunos eram homens”, enfatiza.

Em 1968, Dora aderiu ao movimento estudantil e, posteriormente, ao grupo guerrilheiro Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). No ano seguinte, foi presa e sofreu torturas e assédios nos órgãos de repressão. Sua liberação aconteceu apenas em 1970, quando o embaixador da Suíça, Giovanni Enrico Bucher, sequestrado por um comando da VPR, foi solto em troca da dispensa de 70 presos políticos. Exilada do Brasil, a jovem viveu no Chile, na Bélgica, na França e na Alemanha, onde tirou a própria vida.

Mulher branca de cabelos castanhos.

Sara Antunes interpreta Dora, além de dirigir e escrever o espetáculo - Foto: Dani Braga

A saudade do Brasil é um tema recorrente nas cartas de Dora - Foto: Annelize Tozetto

"Mamãe, mamãe, não chore"

Na peça, ao acender das luzes no palco, o público se depara com uma sala de estudos anatômicos, com diversos tipos de manuscritos em suas paredes. Os papéis, que se revelam pedaços de cartas escritas por Dora à sua mãe durante o período de prisão e exílio, combinam emoção, saudade e dor à história da repressão política durante a ditadura militar no Brasil. O monólogo elaborado por Sara Antunes é composto por trechos e interpretações dos escritos da militante.

A atriz conta que relatar a vida de Dora por meio das cartas foi uma forma de agregar intimidade e conexão a uma trajetória marcada por transgressões e violência. “As palavras trocadas com a mãe, Clélia, guardam a história do nosso País. Ao mesmo tempo, elas carregam o componente humano da conversa sensível entre duas mulheres”, complementa. Ao compor um jogo audiovisual entre projeções, sons e texto, Sara leva a plateia a ser atravessada pelos sentimentos de Dora.

Em uma das cartas, Dora pede que a mãe lhe envie uma manga pelos correios para que ela se recorde do cheiro da fruta e das sensações do Brasil."

Nas apresentações, a atriz se utiliza de projeções para retratar imagens de Dora - Foto: Annelize Tozetto

Com o apoio de áudios reais gravados por Clélia, o espetáculo também explora a dimensão da maternidade. “A Dora tem a idade da minha mãe, então também é uma forma de eu conversar com ela”, afirma Sara. Ao final da peça, a mãe da atriz participa da encenação e estabelece um vínculo entre diferentes gerações de mulheres. “É um pouco da Dora e um pouco da Sara naquela sala de anatomia experimental e afetiva”, completa.

Entre as músicas e os compositores que marcaram os anos 1970 e a vida da estudante – como Tropicália, Violeta Parra e Torquato Neto –, a trilha sonora da obra inclui a canção Mamãe, Coragem, de Gal Costa. Os versos Mamãe, mamãe, não chore/ A vida é assim mesmo, eu fui embora” ressoam pelo palco e manifestam as aflições do confinamento e a esperança pelo reencontro.

Montagem da obra

“Enquanto eu estava envolvida em outros projetos, sentia que as cartas e documentos me olhavam e me instigavam a estrear logo a peça. Então, eu finalmente decidi colocá-la em cena”, explica a atriz. Em 2016, ela começou a pesquisar a história de Dora após ser convidada pelo diretor José Barahona para atuar no documentário Alma Clandestina, que é uma biografia da militante.

Mesmo com o filme gravado e concluído, Sara conta que ainda desejava se envolver artisticamente com a obra. A atriz, então, idealizou um espetáculo inicialmente planejado para 2020. Com o isolamento social durante a pandemia de covid-19, o projeto foi adaptado para o curta De Dora por Sara, lançado na Mostra de Cinema Tiradentes, em janeiro de 2021.

Satisfeita com os resultados do curta, mas ainda com o desejo de levar a obra aos palcos, Sara continuou suas pesquisas sobre a vida de Dora e apresentou a peça em plataformas digitais. “Conforme eu estudava a história dela, encontrava mais cartas que ainda não tinha lido. É interessante perceber como a pesquisa é viva: você mexe com a memória e ela também mexe com você”, relata.

Assim que os teatros reabriram, após a pandemia, a atriz fez duas aberturas do processo no Theatro Municipal de São Paulo e na Mostra de Direitos Humanos de João Pessoa (PB). Após temporada no Sesc Ipiranga, em São Paulo, em setembro e outubro deste ano, a encenação seguiu para os palcos do Tusp.

"Gosto de emprestar a sensibilidade artística do meu corpo para que a Dora continue falando", afirma Sara Antunes - Foto: Luísa Nico

Memória na Universidade

Formada em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e pela Escola de Arte Dramática (EAD) da USP, Sara afirma estar empolgada com o seu retorno à Universidade para a apresentação de Dora. “Eu quero mesmo é tocar os alunos, professores e moradores do Crusp (Conjunto Residencial da USP) com a encenação.”

Sara reitera a importância de trazer o espetáculo para as discussões no ambiente universitário. “Contar a história de Dora é importante porque nos ajuda a pensar em como tornar a existência da mulher menos violenta no mundo de hoje”, acrescenta.

As sessões serão seguidas de debates com profissionais, pesquisadores e estudiosos das áreas de literatura, história e medicina. Nesta sexta-feira (1º), a convidada será Ana Germani, médica sanitarista e professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. Já no domingo (3), serão Maria Sueli Perez, ex-militante exilada no Chile, e Jean Tible, professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH.

A peça Dora está em cartaz nesta sexta-feira, dia 1º, às 20 horas, sábado, dia 2, às 20 horas, e domingo, dia 3, às 18 horas, no Teatro da USP (Tusp), localizado no Centro Cultural Camargo Guarnieri (Rua do Anfiteatro, 106, Cidade Universitária, em São Paulo). Entrada grátis. Os ingressos podem ser retirados no local uma horas antes do início da apresentação.

*Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro


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