O papel que a cultura teve na resistência à ditadura é tema do novo livro do professor da USP Marcos Napolitano – Foto: Montagem sobre foto do jornal Última Hora / Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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“Se for certo dizer que a cultura não ajudou a derrubar o regime, como os setores mais autênticos e radicais da oposição sonhavam, ela gerou um conjunto de representações e discursos que ajudaram a esquerda a vencer a batalha da memória e explicam, em parte, por que os militares, vitoriosos politicamente e com ampla base nos estratos conservadores ou indiferentes da chamada ‘sociedade civil’, foram aos poucos sendo isolados no processo político e vilanizados no processo histórico, mesmo por aqueles que os apoiaram inicialmente, ou seja, o conjunto dos liberais.”
É embalado por esse equilíbrio analítico que o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Marcos Napolitano conduz o texto de Coração Civil – A Vida Cultural Brasileira sob o Regime Militar (1964-1985). Sem exaltar mas tampouco negar a importância dos agentes e das ações culturais durante a ditadura, o autor oferece um panorama dos enfrentamentos no campo das artes e das ideias que atravessaram o período.
O livro chega pela Intermeios e integra a coleção Entr(H)istória, uma parceria da editora com o Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHS) da USP, como o Jornal da USP anunciou recentemente (leia matéria aqui). Adotando a liberdade do ensaio, Napolitano procura compreender o papel que a cultura teve na resistência à ditadura e, de maneira complementar, como esse papel foi interpretado durante e após o regime militar.
“A resistência aqui analisada, se lembrada de maneira ecumênica, edulcora nosso passado como coletividade que frequentemente se quer democrática e vítima do arbítrio, mas sua monumentalização frequente na memória e na historiografia pouco explica por que certos impasses herdados dos tempos da ditadura ainda continuam a nos desafiar, passados mais de 30 anos do seu fim”, escreve o professor na introdução do volume.

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Napolitano identifica que o debate e a ação cultural, nos anos de exceção, foram vistos não apenas como tática de combate ao regime, mas como o imperativo de uma “boa consciência”, que deveria manter vivos os valores democráticos e libertários. Essa boa consciência, contudo, não correspondia a um bloco homogêneo de resistência.
“A tensão entre frentismo e sectarismo marcou o debate dos atores da resistência. Se esse processo já é um pouco mais conhecido no âmbito da resistência política, ainda é pouco estudado no campo da resistência cultural”, escreve o pesquisador.
Quatro grupos principais são identificados por Napolitano, ainda que cada um tenha sido em si mesmo bastante diversificado. Os liberais atuavam na imprensa e mídia corporativas, associações de profissionais liberais ou como proprietários e gestores da indústria cultural (gravadoras, editoras). Outro grupo era o dos comunistas, que orbitavam o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Os adeptos da contracultura correspondiam a grupos de ação estética radical e artistas marcados pela busca de liberdade comportamental e experimentalismo estético. E finalmente, a “nova esquerda” surgida nos anos 1970, abarcaria diversas tendências, como os católicos progressistas, líderes comunitários e sindicais, militantes trotskistas e intelectuais socialistas acadêmicos.

“Na dança das cadeiras do baile cultural da resistência, as posições desses grandes grupos ora convergiam, ora divergiam, ora se complementavam, ora se anulavam”, escreve o professor. “Se os liberais eram os donos das corporações e empresas culturais, os comunistas e outros setores de esquerda forneciam quadros importantes para a produção de conteúdo dessas empresas. Os intelectuais e produtores culturais ligados à contracultura e à nova esquerda, por sua vez, desconfiavam do nacional-popular [defendido pelos comunistas] como eixo simbólico da resistência cultural, mas tendiam a dar peso diferenciado para o lugar da ‘cultura jovem’ ou da ‘cultura popular’ na construção de formas e valores críticos ao regime.”
Para Napolitano, o saldo dessas aproximações e rupturas foi uma imagem idealizada da cultura de oposição, que ele procura questionar com o livro. “Na época, a cultura tanto uniu como desuniu as oposições, o que não diminui sua importância na educação sentimental e cívica de uma boa parte da sociedade brasileira que não se identificava com os valores da ditadura.”
E qual é o legado dessa educação sentimental e cívica? Comparando o Brasil de 2010, época em que o texto do livro foi composto, com a atualidade, Napolitano tem uma resposta ambígua para a questão.
“No hiato de tempo de sete anos, percebi o quanto o Brasil mudou, rompendo com certas formas de lembrar a ditadura e com o legado da cultura de resistência nela forjada. Ou, pior, percebi o quanto o Brasil não mudou em relação ao passado mais arcaico, dilapidando a herança democrática contida na própria ideia de resistência política e cultural.”
Coração Civil – A Vida Cultural Brasileira sob o Regime Militar (1964-1985), de Marcos Napolitano, Editora Intermeios, 398 páginas, R$ 60,00.

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