Como político, intelectual e estrategista, Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924) tinha todas as qualidades necessárias para se destacar na “era dos extremos”, conforme a expressão do historiador britânico Eric Hobsbawn (1917-2012). Por isso, foi apontado por Hobsbawm como o personagem de maior impacto individual na história do século 20. Hoje, exatos 150 anos após o seu nascimento – que se deu em 22 de abril de 1870 -, ainda é possível ouvir os ecos de suas ideias, tanto em seus pontos positivos como negativos.
Nascido na bucólica Simbrsk, cidade do interior da Rússia, Lênin foi antes Vladimir Ilitch Ulyanov, nome dado por seu pai, Ilya Ulyanov, que trabalhava como inspetor das escolas públicas da região. “Era uma pessoa que tinha um cargo com algum status no sistema educacional da Rússia czarista. Sua família era como uma de classe média alta”, afirma Osvaldo Coggiola, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, especialista em história contemporânea.
O caráter quase nobre de sua família, obtido graças aos serviços prestados pelo pai ao governo do czar, concedeu a Vladimir Ulyanov certos privilégios que ele não se recusava a usar quando
necessário. No entanto, dois golpes atingiriam os Ulyanov e transformariam totalmente a dinâmica da família: a morte do pai, em 1886, e a condenação de Aleksandr, irmão mais velho de Vladimir, um ano depois. “O irmão se engajou no movimento revolucionário e participou de uma conspiração para matar o czar, sendo enforcado por isso quando o plano falhou”, diz Coggiola.
Segundo o professor, a morte do irmão marcou a vida de Vladimir, e agiu como impulsionador para um engajamento político muito forte. “Isso aconteceu com a família toda: a mãe e a irmã também passaram a apoiar seu maior envolvimento em questões políticas, o que explica muitos traços de sua personalidade”, aponta Coggiola. Depois desses acontecimentos, os Ulyanov foram isolados pela camada burguesa da cidade, o que provocou uma raiva direcionada aos nobres e liberais que Vladimir alimentaria até o final de sua vida.
A má fama que a família carregou a partir de então foi um empecilho em vários outros momentos. Recusado na Universidade de São Petersburgo e expulso da Universidade de Kazan, Vladimir Ulyanov precisou estudar por conta própria e só conseguiu um diploma depois da insistência da mãe para que o deixassem prestar a prova de Direito em São Petersburgo, na qual passou sem falhas. “Com 20 anos, já formado, se vinculou ao círculo revolucionário, sem participar de ações terroristas como seu irmão, mas tentando formar um partido operário, o partido social-democrata”, afirma o professor.
Sempre trabalhando para disseminar sua interpretação das ideias de Marx, Vladimir foi preso em 1895 e mandado para a Sibéria dois anos depois. De acordo com Coggiola, lá ele cumpriu o resto de sua pena com bastante tempo para estudar e escrever. “Durante esse período ele acabou produzindo o que se tornaria depois uma de suas obras mais importantes, O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, na qual ele analisa as relações de produção mundial e o crescimento da divisão de classes no país.”
Competitivo, obstinado e estrategista
Foi em 1901 que Vladimir usou pela primeira vez o pseudônimo Lênin, nome com o qual publicou seu primeiro grande desvio da ortodoxia marxista, Que Fazer?, em 1902. No texto, o revolucionário traça um plano de ação derivado de um partido unificado, no qual todos exerceriam um papel de acordo com o que fosse previamente decidido. E foi justamente esse ponto o causador de uma ruptura no Partido Social Democrata Russo. “Lênin defendia que só poderia ser filiado ao partido quem participasse ativamente dos trabalhos propostos. Ele queria colocar uma fronteira clara em quem era membro do partido e quem não era”, explica Coggiola.
Seu colega Julius Martov, por outro lado, queria um partido tradicional, que aceitasse filiados com outros interesses. Assim, diz Coggiola, Lênin coordenou os bolcheviques, grupo que detinha os filiados mais radicais e que aceitavam sua ideia de centralismo democrático, enquanto Martov liderou os mencheviques, que “eram mais relaxados em relação às próprias normas e tinham uma aliança com a burguesia liberal, que não queria fazer a revolução”, conta o professor, que vê nos mencheviques uma forma de reivindicação tolerante em relação ao governo, o que mostrava a fragilidade política do grupo.
Em 1905, depois de várias derrotas na Guerra Russo-Japonesa, teve início uma revolta em São Petersburgo. Reivindicando melhores condições de trabalho, reformas econômicas e o fim dos privilégios da estrutura absolutista, manifestantes marcharam em protesto até o Palácio de Inverno para entregar uma petição ao czar Nicolau II. Sob comando do czar, a polícia abriu fogo e milhares de pessoas foram mortas ou ficaram feridas no episódio conhecido como “Domingo Sangrento”, o que levou Lênin a ensaiar a Revolução Russa.
No entanto, isso só seria realmente possível depois do fracasso da Rússia na Primeira Guerra Mundial, que eclodiu em 1914. O czar, que já havia destruído todo resquício de popularidade no “Domingo Sangrento”, utilizou seus recursos em uma guerra imperialista que deixou seu povo em uma situação de miséria ainda pior. “Era o melhor cenário para uma revolução e Lênin teve papel decisivo nisso”, afirma Coggiola. Segundo ele, além de convocar os trabalhadores para abandonar a guerra estrangeira e lutar pelo poder em seu próprio país, ele precisou convencer grande parte do seu partido a tomar o governo.
A revolução de março de 1917 levou ao poder o menchevique Alexander Kerensky, que falhou em retirar o país da guerra, erro que lhe custaria a governança. “Nesse período Lênin também fez aliança com pessoas de fora dos bolcheviques, em especial Trotsky, que ingressou no partido apoiando suas ideias e fazendo com que eles ganhassem a maioria”, explica o professor. Em outubro do mesmo ano os bolcheviques organizaram uma insurreição que deu início à ditadura de um partido único, que combateria qualquer oposição.
Segundo Coggiola, um dos períodos mais conturbados do governo foi o que se deu entre a Revolução de outubro 1917 e a proclamação oficial da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1922. A família imperial russa dos Romanov – o czar, esposa e filhos – foi fuzilada em julho de 1918 por tropas bolcheviques. “O governo bolchevique se mostrou muito forte ao conseguir sobreviver à guerra civil que se instaurou entre os que eram a favor do partido e os contra-revolucionários”, afirma o professor. Mas a situação só foi realmente amenizada quando ele organizou a Nova Política Econômica (NEP), que pretendeu voltar parcialmente à economia capitalista.
“Durante todos esse anos Lênin permaneceu como uma das figuras mais importantes não só do partido bolchevique mas também de toda a Rússia, embora tenha tido uma participação política mais esporádica no último ano de vida”, conta Coggiola. Lênin morreu em janeiro de 1924, em decorrência de sucessivos acidentes vasculares. Na linha para o governo estavam Stálin e Trotsky, que disputaram o poder por um tempo, até Stálin ganhar graças aos contatos que tinha. Trotsky foi exilado da URSS, fixando-se no México, onde foi assassinado anos depois a mando de Stálin, tamanha era a rivalidade entre eles.
O legado
O que se seguiu foram anos de forte repressão política no país e um crescimento econômico seguido de tensões internacionais. “O regime que havia sido considerado revolucionário acabou se transformando em uma ditadura monstruosa que perseguiu opositores e matou pessoas”, afirma o professor. O governo de Stálin durou 29 anos e, apesar de violento, transformou a URSS em uma potência mundial e deu ao país um papel decisivo na derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Na sequência, o governo de Nikita Sergueievitch Krushev foi marcado pela crise dos mísseis de Cuba, pela construção do Muro de Berlim, por erros políticos e pela desorganização econômica, herdada depois por Leonid Ílitch Brejnev. Ao longo dos 18 anos em que esteve no poder, Brejnev teve que equilibrar a estagnação econômica e os gastos com a corrida armamentista contra os Estados Unidos.
Depois de dois governantes que mal terminaram um ano no poder, a URSS teve seu último secretário-geral, Mikhail Gorbachev, que conduziu o fim da Guerra Fria com os Estados Unidos e marcou o enfraquecimento do Partido Comunista. Tentando amenizar a crise institucional que se alastrava, Gorbachev propôs duas reformas, a glasnot, que defendia uma abertura política, e a perestroika, que visava a uma reformulação econômica no país. Entretanto, segundo Coggiola, isso não foi suficiente e em 1991 a União Soviética se dissolveu em 15 novas nações independentes. “A partir daí houve uma ascensão da democracia, embora só três presidentes tenham assumido até hoje”, diz ele. O professor se refere a Boris Iéltsin, Vladimir Putin e Dmitri Medvedev. Iéltsin presidiu a Rússia de 1991 a 1999 e Putin (2000-2008 e 2012 até hoje) se alternou na direção do país com Medvedev (2008-2012), ora como presidente, ora como primeiro-ministro, mas sempre mantendo para si o poder real. O atual mandato de Putin vai até 7 de maio de 2024.
No histórico de governos totalitários e vitalícios, Putin parece ser só mais um que pretende se manter no poder pelo que tempo que conseguir. De acordo com o professor, isso também é consequência da obra de Lênin, peça-chave da história da Rússia. “Em primeiro lugar seu legado mais direto foi a formação da União Soviética. O acontecimento político mais importante da história do século 20, que foi decisivo em momentos como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria”, aponta ele.
Ainda para Coggiola, a maior herança de Lênin foi o conjunto de políticas suficientemente coerentes que formaram a teoria leninista. “Não cabe aqui fazer um debate sobre seus pontos positivos e negativos. Em qualquer hipótese, ele foi um dos poucos líderes da história a ter toda uma teoria política com seu nome”, afirma o professor. Para o bem ou para o mal, Lênin foi uma figura extremamente importante, e suas ideias são atualmente lembradas como forma de entender e de, talvez, mudar o mundo. Como a confirmar a presença do revolucionário no mundo contemporâneo, até hoje a múmia de Lênin repousa na Praça Vermelha, no centro de Moscou, à vista do público.