Exposição na USP mostra os impactos de construções realizadas na ditadura militar

Em cartaz no Centro MariAntonia, mostra lembra que a modernização do País durante o governo militar foi baseada na exploração do trabalho, na expropriação de terras e na destruição do ambiente

 11/04/2024 - Publicado há 7 meses

Texto: Julia Alencar*

Arte: Simone Gomes

A exposição no Centro MariAntonia da USP conta com fotografias, filmes, desenhos, revistas, mapas, reportagens e documentos técnicos - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Mais de 20 mil pessoas perderam suas terras e casas com a construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, iniciada em 1974. Outras 3 mil pessoas foram expropriadas por causa da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, no Paraná, inaugurada em 1984. O desabamento do Viaduto Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, em 1971, causou 26 mortes. Essas são algumas informações apresentadas na exposição Paisagem e Poder: Construções do Brasil na Ditadura, em cartaz no Centro MariAntonia da USP até 30 de junho, que aborda as transformações espaciais ocorridas no Brasil durante a ditadura militar (1964-1985).

A partir de um esforço conjunto por parte dos curadores Magaly Pulhez, Paula Dedecca, Victor Próspero, João Fiammenghi e José Lira, a exposição contribui para manter viva a luta por memória, verdade e justiça, desta vez do ponto de vista arquitetônico e urbanístico, incentivando também a formulação de políticas de reparação e memória. “Nós temos uma referência muito imediata da ditadura como um período de repressão aos direitos políticos e civis, de violência, tortura e perseguição, mas, do ponto de vista da expressão espacial das políticas, as pesquisas são muito iniciais”, explica Magaly Pulhez, arquiteta e curadora da exposição, ao Jornal da USP. “As pesquisas sobre as transformações da paisagem e seus impactos ainda estão se constituindo, e pouco se fala sobre terem sido um processo violento. A expansão espacial foi um desdobramento direto das doutrinas autoritárias preconizadas durante o regime. Apesar de representar um contexto de modernização do País, foi uma modernização absolutamente autoritária e conservadora, baseada na exploração do trabalho e na expropriação de terras e recursos naturais. Estudar esse período engloba pensar todos os impactos gerados nele”, completa.

Através de fotografias, filmes, desenhos, diapositivos, revistas, propagandas, mapas, reportagens e documentos técnicos, o visitante é guiado pelos processos de transformação da paisagem brasileira e suas consequências que perduram até a atualidade, muitas vezes ignoradas sob o pretexto da modernização e progresso. As construções expostas, algumas iniciadas antes da ditadura, outras concluídas apenas após seu fim, foram utilizadas pelos militares como propaganda do regime com discursos como “estamos crescendo”, “finalmente, o Brasil grande” e “a Amazônia já era” — no sentido de que finalmente o desenvolvimento estaria alcançando essa região, erroneamente considerada vazia por muitos, inclusive aqueles no poder, segundo Magaly. “A mentalidade de se expandir o desenvolvimento e conectar as regiões brasileiras levou a uma exploração muito intensa, tanto dos recursos naturais quanto das forças de trabalho. Essas grandes obras de infraestrutura estavam intimamente conectadas a um discurso de ampliação do circuito econômico e da segurança nacional, e são um retrato importante do que se doutrinava no regime”, conta.

Obras como a Rodovia Transamazônica, as hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí, avenidas, vias e marginais como o Minhocão, em São Paulo, e a Perimetral, no Rio de Janeiro, as obras do Metrô paulistano e a Ponte Rio-Niterói são apenas algumas das dezenas de obras realizadas no período da ditadura militar que mudaram a dinâmica nacional. Apesar de muito emblemáticas da época, essas obras não são tratadas como ícones na exposição, que buscou chamar a atenção para outros aspectos e consequências do regime. “Existe uma conexão bastante significativa entre essa expansão desenvolvimentista e a transformação do espaço como um todo, do campo e da cidade. São processos que devem ser pensados em associação, porque tiveram muita influência uns nos outros”, reforça a arquiteta.

A exposição reitera que, apesar de ter sido pintado como um período de grandes avanços tecnológicos e de infraestrutura, ainda assim é “um avanço que se dá de maneira desconectada da realidade da relação entre a indústria e seus trabalhadores, no sentido de que os trabalhadores permanecem rebaixados e desqualificados. No caso da construção civil, o avanço tecnológico é possibilitado pelo rebaixamento salarial e repressão sindical”, explica a arquiteta. Em textos que acompanham as fotografias e documentos da exposição, esses processos são explicados com maior profundidade, divididos em cinco eixos principais, indissociáveis uns dos outros.

Urbanização, planejamento, circulação

Num dos eixos da mostra, intitulado Urbanização, Planejamento, Circulação, a exposição explica o processo de crescimento populacional, que resultou na compactação de áreas centrais e crescimento da ocupação periférica. “O processo de valorização do solo urbano por meio de construções, como foi o caso das linhas do Metrô em São Paulo, em especial a linha norte-sul, faz com que a população mais empobrecida — em sua maioria a classe trabalhadora — vá buscar outros territórios a serem ocupados. Bairros inteiros foram construídos pelos próprios trabalhadores, que tiveram que arcar com os custos de produção de suas próprias casas por não terem acesso ao programa habitacional do BNH (Banco Nacional de Habitação)”, conta Magaly.

O eixo ainda trata dos planos diretores de desenvolvimento integrado, explicando a consolidação das empresas de engenharia consultiva no País — responsáveis por desenvolver diversos projetos e serviços, como a empresa Hidroservice, que atuou na construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho (BA), do Aeroporto do Galeão, no Rio, e da via elevada Minhocão, em São Paulo. Outro destaque é o desabamento do Viaduto Paulo de Frontin, no Rio: a obra se iniciou em 1969, apesar de diversos protestos populares, e quando colapsou, matando 26 pessoas, operava em um ritmo de 24 horas de trabalho todos os dias, viabilizado pela precarização das condições de trabalho, segundo os textos apresentados na exposição. O viaduto, assim como grande parte das construções do período, alterou significativamente o ambiente e cotidiano em que foi construído, uma vez que não foi projetado tendo em vista os impactos sociais de sua construção.

Contemplando a construção do Centro Administrativo da Bahia, da Ponte Rio-Niterói, da Avenida Perimetral, no Rio, dos terminais rodoviários de Belo Horizonte (MG) e Fortaleza (CE) e do Estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, a exposição busca reforçar os impactos de construções que foram projetadas sem considerar os habitantes locais, alterando as dinâmicas urbanas e contribuindo para o aumento da população periférica, tudo possibilitado pela exploração dos operários e simultânea expulsão deles dos centros que ajudavam a construir.

Moradia, especulação, espoliação

Intimamente ligado a questões de urbanização, o mercado imobiliário foi beneficiado pelas políticas de financiamento habitacionais propostas por meio do BNH e do Sistema Financeiro de Habitação (SNH), benefício esse que se refletiu de forma seletiva na população. Conforme as áreas centrais foram ganhando valor com as construções em curso, o custo de vida nelas também cresceu. Para a classe média, a verticalização e adensamento dominavam o mercado, aglomerando cada vez mais pessoas em apartamentos menores e prédios mais altos. As periferias metropolitanas ganharam conjuntos habitacionais (Cohabs) e as classes populares encontraram nas favelas e bairros autoconstruídos a resposta às necessidades jamais atendidas, uma vez que receberam não mais do que 15% de todos os recursos manejados pelo BNH, conforme explicado nos textos da exposição.

O eixo Moradia, Especulação, Espoliação contempla o crescimento das incorporadoras imobiliárias, que culminou na simplificação e padronização das plantas e também no crescimento de condomínios fechados, como é o caso das torres Ilhas do Sul, em São Paulo, e dos loteamentos murados, como os de Alphaville, de forma que as condições precárias de trabalho se mantiveram as mesmas, assim como a qualidade do ambiente construído. A população de baixa renda não aceitou passivamente a precarização de suas condições de vida, a exemplo da favela Brás de Pina, no Rio de Janeiro, que resistiu à realocação para um conjunto habitacional e conquistou um projeto de reurbanização da favela, desenvolvido com a participação dos próprios moradores. Essa ruptura influenciou políticas de urbanização desenhadas no pós-redemocratização.

No fundo da sala principal da exposição, uma parede inteira é dedicada à reportagem Os Grandes Números do Brasil, publicada pela revista Realidade em 1975. Nela, gráficos mostram a evolução do Brasil do ponto de vista econômico, com gráficos ilustrativos sobre fatores relevantes como o PIB, o orçamento nacional, o desenvolvimento de cada setor e o crescimento populacional. A reportagem, publicada logo após o chamado “milagre econômico”, ilustra como a imprensa brasileira divulgou o discurso de crescimento econômico e benefícios para o País sem mencionar que foi viabilizado por políticas de arrocho salarial e endividamento externo, que mais tarde teriam alto custo social.

Extrativismo, produção, ambiente

Para realizar as diversas construções em andamento no Brasil inteiro, o governo intensificou as atividades de exploração de recursos naturais, assim como a construção de instalações para viabilização desses processos. O mapeamento e extração de bauxita, ferro, cobre, manganês e sal-gema são indissociáveis da construção de barragens, usinas hidrelétricas e redes de eletrificação, assim como da recolonização do território e expropriação de terras e meios de vida de povos nativos, explicam os curadores nos textos da exposição. O eixo Extrativismo, Produção, Ambiente chama a atenção do visitante para a violência e autoritarismo que permeavam o discurso desenvolvimentista da época, em especial contra os direitos dos povos originários e tradicionais, explicitando as consequências sociais e ambientais do Programa Grande Carajás, da construção do Pavilhão de Exposições do Anhembi — que aumentou consideravelmente a exploração do alumínio, que tem como matéria-prima a bauxita —, da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, que custou a vida de cerca de 100 trabalhadores, da Operação Amazônia e da construção da Rodovia Transamazônica.

Novamente, esse ritmo intenso de construção e extração de recursos naturais só foi possível por meio da precarização das condições de trabalho — tanto por meio do arrocho salarial e repressão sindical quanto pelo descaso com a segurança dos trabalhadores —, o que intensificou a luta dos operários por direitos, resultando nas greves de Contagem (1968) e Osasco (1968) e no Levante de Tucuruí (1980), também analisadas na exposição. O discurso desenvolvimentista e a expansão da exploração dos recursos naturais afetaram fortemente as comunidades locais: “A região amazônica nunca foi vazia. Ela foi sempre povoada, inicialmente pelos povos originários indígenas, depois por povos tradicionais ribeirinhos e extrativistas, que sofreram e ainda sofrem os impactos desse povoamento absolutamente predatório disfarçado de progresso. Eles (os exploradores) entram arrasando terras, contaminando córregos, eliminando flora, fauna, e simplesmente destruindo os meios de vida dessas comunidades, e até hoje elas estão ameaçadas por essa mentalidade”, explica a curadora.

Território, segurança, integração

No eixo Território, Segurança, Integração, o foco é para a forma como o período da ditadura civil-militar representou um momento único de sistematização e intensificação de processos de planejamento territorial, desenvolvimento regional, infraestruturas de conexão e fixação de atividades econômicas no interior do País, sobretudo motivado por um discurso de “necessidade de combate ao inimigo interno”, ou seja, os opositores da ditadura. Em outras palavras, a recolonização de áreas com a instalação de grandes infraestruturas, visando ocupar os “vazios demográficos”, era uma estratégia de combate aos críticos do regime por meio da dominação e apagamento, segundo a exposição.

Órgãos como a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) – traz ainda a exposição – foram esvaziados de seu propósito inicial, sendo utilizados a favor do capitalismo monopolista do Centro-Sul e do latifúndio regional, e tornando-se máquinas de corrupção e inoperância social. As grandes empreiteiras também foram centrais nesse processo de dominação, consolidadas durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), mas fortemente beneficiadas pelas políticas de proteção e incentivo e seu relacionamento com o aparato estatal. Além de investirem em transporte, energia, aeroportos, portos, trens e rodovias, as empreiteiras desempenharam um papel crucial na diversificação e crescimento do setor, apoiando-se na precarização das condições de trabalho e rebaixamento salarial dos operários para tal.

Um dos textos da exposição trata da Usina Hidrelétrica de Itaipu, projetada e financiada em conjunto pelos governos brasileiro e paraguaio. Nele, o visitante pode compreender melhor como a construção, iniciada em 1973, foi um marco do autoritarismo do governo vigente e seus avanços de dominação sob o pretexto de integração e desenvolvimento. A hidrelétrica, hoje a maior do mundo, acarretou impactos violentos na paisagem, meio ambiente e população local, submergindo as Sete Quedas, importante marco geográfico, e expropriando cerca de 3 mil pessoas de suas terras, destaca a exposição. Foi de sua construção também que surgiram movimentos que perduram até hoje, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na mostra, além de fotografias da construção de Itaipu, estão também reportagens escritas na época, ilustrando a percepção popular e os discursos acerca das políticas governamentais.

São Paulo, cidade-metrópole

Por meio dos textos de apoio, o eixo focado na Região Metropolitana de São Paulo, intitulado São Paulo, Cidade-Metrópole, deixa explícito ao visitante que a cidade foi um epicentro de mudanças espaciais e embates entre grupos políticos de esquerda e de direita. De acordo com a exposição, por volta dos anos 1970 São Paulo se torna uma representação emblemática das contradições decorrentes da modernização conservadora e autoritária que se consolidava no País, com grandes volumes de recursos públicos voltados para a construção civil e mercado imobiliário no Centro, ao mesmo tempo em que áreas carentes de qualquer infraestrutura básica são dominadas por conjuntos habitacionais carentes de projetos urbanos integrados e com irregularidades fundiárias e condominiais — como a “Cohab de Itaquera” e o “Conjunto dos Conjuntos” Cidade Tiradentes — e loteamentos periféricos autoconstruídos.

As obras do Metrô, por exemplo, são um claro caso em que a população de classe média e alta foi priorizada em detrimento das classes mais empobrecidas e periféricas. “Apesar de ter maior demanda, a linha Leste-Oeste Vermelha só foi concluída anos depois da Norte-Sul Azul, que atende áreas mais abastadas da metrópole. A última estação da linha Vermelha, Itaquera, é extremamente longe da Cidade Tiradentes, por exemplo, que é lar para muitos dos trabalhadores das construções do período. A expansão periférica não foi contemplada pela expansão da malha ferroviária, apesar de ter sido uma obra muito importante para a mobilidade urbana”, explica Magaly.

A consolidação do ABC Paulista como o maior polo metalúrgico e automobilístico do País também foi central no avanço da resistência contra políticas autoritárias da ditadura: foi em meio às lutas contra o arrocho salarial e repressão sindical que ocorreram as famosas greves do ABC (1977-1978), que se irradiaram rapidamente para a capital e outras cidades de São Paulo, além de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Foi a partir dessas greves que foram criados o Partido dos Trabalhadores (1980) e a Central Única dos Trabalhadores (1983), fomentando a crise que deu fim ao regime, conforme se lê na exposição.

Além das imagens e documentos expostos, Paisagem e Poder também conta com seis projeções. Todas as projeções são compilados de vídeos e filmes, retratando a vida urbana, celebrações de inauguração, processos de construção e outros momentos emblemáticos do período da ditadura, como a Passeata dos Cem Mil (1968), a greve na UnB (1977) e o evento de refundação da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Salvador (1978).

A mostra ainda conta com uma programação paralela: um curso de difusão, oferecido pelos quatro curadores e pelo diretor José Lira, que se iniciou no último dia primeiro e vai até a primeira semana de maio, totalizando cinco aulas, todas as segundas-feiras; um ciclo de exibição de cinema, com curadoria específica para chamar atenção aos temas centrais da exposição, que será realizado em maio, com as datas e programação ainda não divulgadas; e um seminário de pesquisa, programado para o final de junho, com o intuito de reunir pesquisadores desse período para discutir temáticas relacionadas à exposição e à historiografia da arquitetura, do urbanismo e da paisagem no período 1964-1985.

A exposição Paisagem e Poder: Construções do Brasil na Ditadura está em cartaz desde 19 de março até 30 de junho, com visitação de terça a domingo e feriados, das 10h às 18h, no Edifício Joaquim Nabuco do Centro MariAntonia da USP (Rua Maria Antonia, 258, Vila Buarque, região central de São Paulo, próximo às estações Higienópolis-Mackenzie e Santa Cecília do Metrô). Entrada grátis. Mais informações estão disponíveis no site do Centro MariAntonia ou no telefone (11) 3123-5202. 

* Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro


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